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    Ilustração: Carvall

questões monetárias

O fim do dinheiro no país dos pixelados

Com o Pix a pleno vapor, cai a circulação de papel-moeda e bancos fecham cada vez mais agências; economia digital, no entanto, ainda exclui parte dos brasileiros

Amanda Gorziza e Lianne Ceará | 17 set 2021_15h30
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Elizângela Peixoto, de 36 anos, é dona de uma loja de cosméticos em Jaguaribara, município de 11 mil habitantes no sertão cearense. A vida inteira esteve acostumada a lidar com dinheiro em espécie – chegou a trabalhar vários anos como correspondente bancária, administrando saques e depósitos dos moradores da cidade. De uns tempos para cá, no entanto, ela começou a notar uma mudança. Ao menos em sua loja, Peixoto tem se deparado com cada vez menos cédulas de dinheiro. “As pessoas hoje compram muito mais no cartão de crédito e por meio do Pix. Elas entram na loja e já perguntam: ‘aceita Pix?’”, conta a empresária. “Acho que daqui a um tempo não vai mais existir dinheiro físico.”

A previsão de Peixoto não é descabida. A digitalização da economia vem se acelerando a olhos vistos no Brasil. Desde que o Banco Central lançou o Pix, ferramenta que permite fazer transferências instantâneas pelo celular, a circulação de dinheiro em espécie no Brasil diminuiu 5%. Em números absolutos: quando a ferramenta foi lançada, em novembro do ano passado, havia 358 bilhões de reais em cédulas e moedas circulando no país; mais recentemente, em setembro deste ano, o meio circulante nacional caiu para 342 bilhões.

Esse fenômeno, que agora começa a ser percebido até mesmo em cidades do interior como Jaguaribara, foi acelerado pelo Pix, mas já vinha se consolidando há anos, à medida que os bancos passaram a oferecer um número maior de serviços online. “O papel-moeda vem perdendo espaço de forma gradual no Brasil, e o Pix, nesse cenário, acabou facilitando muito a transferência online de dinheiro”, explica Fernando Antônio de Barros Júnior, professor do Departamento de Economia de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP). “Pessoas que nunca haviam feito um TED [transferência eletrônica disponível] na vida já usaram o Pix para fazer algum tipo de transferência monetária pelo celular.”

Dados obtidos pela agência Fiquem Sabendo revelaram que, entre novembro de 2020 e junho deste ano, o Banco Central registrou 2,4 bilhões de transações feitas através do Pix. Durante esse intervalo de tempo foram movimentados mais de 1,6 trilhão de reais no país, e as operações feitas por meio da nova plataforma representaram quase o triplo do número total de transferências registradas por TED e DOC [documento de ordem de crédito].

Talvez tão importante quanto a tecnologia do Pix foi o momento em que a ferramenta foi lançada. A pandemia foi, de certa forma, um catalisador para que as operações bancárias se digitalizassem de vez: com menos pessoas frequentando as agências físicas devido ao isolamento social, disparou o interesse por meios virtuais de pagamento. Segundo o Banco Central, a quantidade de saques realizados no Brasil caiu 13 pontos percentuais entre o último trimestre de 2019 e o último de 2020, enquanto o uso do cartão de crédito subiu. Com esse empurrão, o Pix não teve dificuldades em se popularizar.

A outra face mais visível desse processo foi o fechamento, em ritmo acelerado, das agências bancárias. Em agosto de 2019, segundo o Banco Central, havia 21 mil estabelecimentos como esse espalhados pelo país. Um ano depois, o número caiu para 19,9 mil; dois anos depois, em agosto de 2021, passaram a ser 18,4 mil. A tendência ainda é de queda. “A necessidade dos usuários de ir até uma agência tem diminuído”, afirma Ecio Costa, professor de economia da Universidade Federal de Pernambuco. “A pandemia forçou muita gente a se digitalizar, então esse espaço físico acabou perdendo o sentido.”

 

A “virtualização” da economia, no entanto, ainda esbarra em alguns obstáculos da realidade brasileira. “Temos um setor informal muito grande e por isso o dinheiro em espécie faz parte do cotidiano de boa parte das pessoas”, ressalta Barros Júnior, professor da USP. De acordo com o economista, locais que têm uma atividade econômica maior demandam mais papel-moeda e, portanto, as cédulas vão necessariamente circular mais. O dinheiro em espécie, além disso, ainda tem espaço na rotina das pessoas que são refratárias a novas tecnologias e à população que não tem conta em banco além, é claro, de continuar presente na corrupção, já que a circulação de cédulas facilita esquemas de lavagem de dinheiro.

Embora tenha avançado bastante, portanto, a digitalização das operações bancárias ainda cria hoje um descompasso que afeta parte da população, sobretudo os mais pobres. Segundo uma pesquisa produzida em 2019 pelo Banco Central, 87% dos brasileiros que recebiam até dois salários mínimos ainda tinham como principal meio de pagamento o dinheiro em espécie. Essa proporção muda drasticamente quando se considera os brasileiros com renda superior a dez salários mínimos: nesse grupo, apenas 41% das pessoas têm o dinheiro em espécie como principal meio de pagamento. Entre os brasileiros que recebem até dois salários mínimos, apenas 65% têm conta em banco; entre os que recebem entre dez e vinte salários mínimos, a proporção é bem maior, de 93%.

Enquanto isso, nos últimos anos, vem crescendo o número de cidades que não têm acesso a bancos. Levantamento realizado pela piauí com dados do Banco Central mostra que, em agosto deste ano, 43% dos 5.570 municípios brasileiros não tinham agência bancária. Cinco anos atrás, em agosto de 2016, a proporção era de apenas 36%. Parte considerável desses municípios que não têm agência conta, ao menos, com postos de atendimento bancário – isto é, estabelecimentos que desempenham as funções básicas de uma agência, mas que não podem oferecer determinados serviços, como tesouraria e operações de câmbio. Ainda assim, 478 cidades brasileiras (ou seja, 8,5% do total), onde vivem atualmente cerca de 2,8 milhões de brasileiros, não têm nem agências nem postos de atendimento bancário.

As cidades abandonadas pelos bancos têm, em geral, um mesmo perfil: são municípios pobres e com população pequena. Alguns nunca tiveram nem agências nem postos porque, para as empresas, muitas vezes não compensa manter estruturas físicas nesses locais. “Cidades pequenas não têm uma escala grande o bastante para que seja atrativo instalar uma agência”, diz Barros Júnior, professor da USP. O retorno financeiro, ele explica, é pequeno diante dos custos com aluguel, manutenção, funcionários e conta de luz.

É o caso de São Luís do Piauí (PI), município de menos de 3 mil habitantes que fica a 300 km de Teresina. Moradora da cidade, onde é dona de uma loja de roupas, Edilza Carvalho, de 25 anos, raramente vai ao banco – não por falta de necessidade, mas por falta de opção, já que não há agências nem postos de atendimento na região. Carvalho faz saques e pagamentos por meio de aplicativos bancários e também na lotérica que fica no Centro da cidade. O limite das transações é pequeno, mas, como suas transferências geralmente são de baixo valor, ela consegue se virar. O mesmo, porém, não acontece com seu marido. Até ser demitido recentemente da empresa de móveis onde trabalhava, ele precisava pegar a estrada todo mês para receber seu salário, que era depositado numa conta do Banco do Brasil. A cidade mais próxima onde existe uma agência desse banco é Picos, a 40 km de São Luís do Piauí. “Meu esposo sofria muito”, lamenta Carvalho. “Todo dia de pagamento ele viajava até lá só para poder sacar o dinheiro.” 

*Com a colaboração de Plínio Lopes.

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