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    Niemeyer em seu escritório na Avenida Atlântica, onde trabalhou por quase 60 anos, em foto de 2004 FOTO: TUCA VIEIRA_FOLHAPRESS

anais da arquitetura

O gênio abandonado

O célebre escritório de Oscar Niemeyer foi desativado. Por trás do fechamento, 70 mil reais em dívidas, risco de penhora e dúvidas sobre a autoria de projetos deixados pelo arquiteto

Elisângela Mendonça | 14 dez 2017_16h15
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Quem sobe os poucos degraus da entrada do edifício Ypiranga – um prédio art déco com curvas acentuadas, que se destaca na silhueta retilínea da Avenida Atlântica, em Copacabana – se depara com uma pequena placa em homenagem ao mais ilustre ocupante de sua cobertura: “Arquitetura e Urbanismo Oscar Niemeyer Ltda.” O acanhado tributo é hoje tudo o que restou da presença do arquiteto no prédio que abrigou seu escritório durante quase seis décadas, de fins dos anos 50 até a sua morte, em 5 de dezembro de 2012. Cinco anos depois, o legado do mais influente arquiteto brasileiro acumula poeira, dívidas e polêmicas em torno de projetos que continuam em desenvolvimento e que têm até mesmo a autoria de Niemeyer questionada.

O primeiro sinal de abandono aparece justamente no escritório da Avenida Atlântica, onde o arquiteto projetou obras monumentais como o Museu de Arte Contemporânea de Niterói e o Auditório do Parque do Ibirapuera, e que seguiu funcionando após sua morte. Seis meses atrás – com um aviso breve aos familiares –, o espaço fechou as portas. Desde então, vem acumulando débitos de condomínio. Hoje, está inadimplente, com processos em aberto na Justiça trabalhista e até no Superior Tribunal de Justiça por falta de pagamento de tributos.

Entre os débitos do escritório estão 70 mil reais em taxas de condomínio não pagas pela família, como revela o síndico do Ypiranga, o também arquiteto Carlos Henrique Joppert, de 74 anos. Ele pretende entrar na Justiça para reaver os valores. A cobertura – que poderia ser destino de peregrinação turística – agora corre o risco de ser penhorada. “Entendo que a situação é difícil, mas o condomínio também precisa se manter.” No Serasa, a dívida atual da empresa é de cerca de 45 mil reais. “Se o Oscar soubesse o que está acontecendo, ficaria arrasado”, disse o síndico, amigo de Niemeyer por décadas.

As dificuldades financeiras e uma relação conturbada entre os familiares fizeram com que o espaço fosse disputado na Justiça pela viúva, Vera, e pela neta de Niemeyer, Ana Elisa. No processo, a neta (que não tem parentesco com a viúva) questionava os poderes de Vera como inventariante e gestora da empresa. A decisão favorável a Ana Elisa saiu em julho de 2016 e ela assumiu o controle dos negócios. Agora, com as dívidas, Joppert afirma já ter notificado a neta e prepara um pedido judicial, que deve ser enviado “em breve”.

Todo o imbróglio seria assunto doméstico, não fosse a necessidade de preservar a herança intelectual de Niemeyer. Procurados pela piauí para falar sobre as dívidas e a desativação do escritório, Ana Elisa e seu advogado enviaram uma nota, mas não responderam aos questionamentos. A viúva, por sua vez, disse desconhecer a dívida do condomínio, que custa cerca de 1 mil reais mensais. “Acho preocupante. Quando eu estava lá, não tinha nada disso, estava tudo em dia. Mas não depende de mim, infelizmente.” 

 

O Ypiranga tem onze andares e é quase exclusivamente residencial – apenas a cobertura de Niemeyer tinha fins comerciais. Quando foi erguido, nos anos 30, o prédio cheio de curvas ganhou o apelido “Mae West”, uma referência aos seios da atriz americana Mary Jane West. O gracejo teria atraído o arquiteto e tornado a compra irresistível, conta Joppert. Foi ele quem, nos anos 50, intermediou a aquisição da cobertura, de 150 metros quadrados – e cujo principal destaque é a janela de 17 metros de comprimento, que acompanha a planta sinuosa e serve de moldura para o mar de Copacabana.

Durante muitos anos esse cenário inspirou Niemeyer na produção de projetos, textos, poemas, desenhos e músicas. Seu expediente começava quase sempre de manhã cedo, e a hora da saída variava. Com frequência, ele passava a noite no escritório – tinha um quarto de dormir mobiliado –, para trabalhar ou receber amigos.

O espaço era frequentado por colegas de profissão para discutir ciência, política, artes e arquitetura. Nos últimos anos de vida, Niemeyer recebeu aulas de filosofia no escritório, como relembra Marcus Lontra, amigo e ex-editor da Módulo, revista fundada pelo arquiteto, cujas reuniões editoriais também eram feitas na cobertura. “Ele adorava quando havia muita gente no escritório, bebendo, conversando. Passava a maior parte do tempo quieto, ouvindo, e costumava perguntar, ao pé do ouvido, quem estava com quem”, contou o amigo. Apesar do movimento e da fama de bon vivant, ele era discreto da porta para fora. “Os moradores gostavam muito dele e o respeitavam”, relembrou o síndico.

No Ypiranga reuniram-se também alguns dos maiores arquitetos do tempo de Niemeyer. Le Corbusier, Santiago Calatrava, Sérgio Bernardes, além de artistas, personalidades e políticos, como Fidel Castro, por exemplo. O líder cubano visitou o Ypiranga em 1992, conta Marcos Sá Corrêa no livro Oscar Niemeyer, da coleção Perfis.

A decoração do local era minimalista, com poucos móveis – a maior parte projetada pelo próprio arquiteto ou por sua filha, Anna Maria – e amplos espaços vazios, ao gosto do proprietário. “Era sem luxo, e chamava a atenção a grande prancheta de desenho vertical”, contou o síndico Joppert, a quem o arquiteto confiava as chaves do imóvel. As paredes eram brancas, com poucos quadros afixados e alguns desenhos de Niemeyer. A brancura do ambiente, somada à luminosidade do janelão sem cortinas, lembra o síndico, chegava a ofuscar. Como dizia o arquiteto, “a gente se sente em um navio”. Em uma pequena mesa amontoavam-se livros, CDs e mais desenhos, e um imponente piano se destacava em um dos cantos – a maioria dos objetos continua no local, agora fechado. 

 

Ciro Pirondi, também arquiteto e diretor da Escola da Cidade, em São Paulo, foi convidado em 2016 para chefiar a Fundação Oscar Niemeyer. Criada em 1988 pelo próprio Niemeyer, a entidade sem fins lucrativos é uma espécie de guardiã de seu acervo e memória. Sete pontos expressam seus objetivos: além da montagem de exposições, criação de cursos e preservação do acervo, estão também o assessoramento técnico de imóveis projetados pelo arquiteto e o apoio à realização de suas obras.

Em teoria, por vontade expressa em vida, qualquer obra que envolvesse o nome de Niemeyer teria de passar pelo crivo da Fundação. “Assessorar a realização de obras conforme projetos de autoria e de coautoria ou qualquer outra forma de colaboração de Oscar Niemeyer, abrangendo intermediações técnicas, científicas, econômicas, financeiras e administrativas”, indica uma das cláusulas do estatuto da Fundação, de 1996.

Por ter sido criada com a participação de Niemeyer, argumenta Pirondi, a entidade deveria ter papel central nas decisões sobre seus projetos. A questão, para ele, deveria deixar a esfera familiar – Niemeyer tem quatro netos e 13 bisnetos – e ser tratada como um bem da cultura brasileira.

Na prática, porém, a Fundação não é consultada. Novos projetos com a coautoria de Niemeyer continuam surgindo, o que garante a renda ao escritório da neta Ana Elisa, em sociedade com o arquiteto Jair Valera – responsável técnico e braço direito de Niemeyer durante mais de 30 anos –, e de outros familiares. Há quatro obras em andamento assinadas pelo arquiteto. Duas catedrais no Brasil, ambas sem previsão de entrega – a de Belo Horizonte, que começou a ser construída enquanto Niemeyer estava vivo, e uma em Niterói, marcada por uma placa sinalizando o local da futura instalação –, um prédio na Vinícola Château La Coste, na França, cuja obra começa no ano que vem, e um projeto de paisagismo em uma fábrica na Alemanha, que deve ser entregue em março de 2018. Esses dois últimos, projetos em parceria com Valera, foram desenhados nos anos finais de Niemeyer, em 2010 e 2012, respectivamente.

Os projetos mais recentes são uma das dores de cabeça da equipe da Fundação, que é deixada às escuras pelo escritório da neta, de acordo com Pirondi. “Ficamos sabendo dos projetos atribuídos ao Oscar pela imprensa. Aí, corremos atrás e vemos que são eles que estão desenvolvendo”, diz o diretor. Uma fonte da família, que preferiu não se identificar para evitar mal-estar entre os parentes, explica que no último ano de vida do arquiteto, ele já não tinha firmeza nas mãos para desenhar, não enxergava bem e alternava momentos de lucidez com a perda de memória. Para Pirondi, ao aprovar projetos sem o crivo da Fundação, “no mínimo”, a vontade de Niemeyer está sendo desrespeitada justamente pelas pessoas mais próximas a ele no fim da vida. 

 

A rotina de trabalho no Ypiranga era solitária na maior parte do tempo, com poucos funcionários fixos na cobertura. Todas as manhãs, no entanto, a partir dos anos 70, Jair Valera deu expediente, como responsável pelos projetos executivos. A equipe de Valera, encarregada de desenvolver, detalhar e acompanhar as obras, se concentrava a alguns quilômetros dali – no escritório da neta de Niemeyer, Ana Elisa, no Centro do Rio, do qual Valera é sócio até hoje. Enquanto o trio trabalhou junto, a fama e o talento de Niemeyer garantiram o funcionamento dos dois escritórios. Com a morte do arquiteto, no entanto, a direção do célebre estúdio de Copacabana ficou a cargo de Vera, viúva e inventariante, com quem Oscar se casara seis anos antes de morrer.

Nas mãos de Vera, o espaço continuou funcionando para entregar projetos inacabados, mas sob críticas de parte da família. Entre as vozes descontentes estava a de Ana Elisa, que mais tarde conseguiu assumir judicialmente o negócio – e manter o nome Niemeyer nos projetos, em sua maioria, criados em coautoria com Valera.

Sem Niemeyer e impactado pela crise econômica, a empresa de Ana Elisa e Valera mudou de perfil. Antes conhecida pelo suporte a obras monumentais, a dupla hoje toca projetos modestos, como a construção de um condomínio em Sorocaba.

A “grife” Niemeyer, no entanto, continua com eles. O “Arquitetura e Urbanismo Oscar Niemeyer Ltda” da placa do Ypiranga foi absorvido por Ana Elisa e Valera, cujo estúdio passou a ser a sede das duas denominações. Como resultado, os projetos em desenvolvimento do escritório do avô confundem-se com os da neta, mesmo com o antigo espaço já inativo. 

 

O fim da bonança dos tempos de Niemeyer é facilmente notado no escritório de Ana Elisa e Valera, no Centro, onde ele recebeu a piauí – afirmando que a “cobertura do Oscar” estava “inacessível”. A vista surpreendente da Baía de Guanabara remete, por alguns segundos, à grandiosidade de uma outra época, mas os carpetes desbotados e os móveis antigos do espaço, cujo design lembra o de uma repartição pública, entregam que a prosperidade ficou para trás. Papéis enrolados e encostados em um canto e pastas plásticas empilhadas contribuem para a sensação.

A exemplo do espaço da Avenida Atlântica, não há esforço para mostrar a importância da obra de Niemeyer no lugar onde foram desenvolvidos seus projetos. O escritório Ana Niemeyer Arquitetura e Consultoria Ltda chegou a contar com trinta funcionários e ocupar três andares do edifício Magnus, enquanto o arquiteto era vivo. Hoje o número de profissionais caiu pela metade na única sala comercial a que se resumiu o escritório, que não tem nenhuma sinalização na entrada.

Valera afirma que a decisão de desativar o espaço de Copacabana, em junho, se deu por falta de demanda para o escritório principal. “Assim que ele morreu até começaram a aparecer projetos. Vinham nos procurar para desenvolver… mas aí chegou a crise. Como a maioria dos nossos projetos são vendidos para governos, parou tudo. Com isso, o escritório não teve muita função.” 

 

Mais grave, no entanto, que o fechamento do espaço, é o questionamento da Fundação Oscar Niemeyer à própria autoria dos traços de obras atribuídas ao arquiteto. “Em alguns casos, o projeto até parece Oscar Niemeyer, mas falta a genialidade dele. O Oscar tinha um sentido de proporção impossível de ser reproduzido, magistral, quase clássico. Essa força é só dele, não se pode ficar brincando de fazer igual”, afirma Pirondi, diretor da entidade.

Ele não revela a quais projetos se refere, por “não ter tido acesso aos originais”, o que impossibilitaria uma análise aprofundada. Cita, porém, projetos que estão sendo adaptados para outros locais, o que os descaracterizaria – como uma capela projetada por Niemeyer e Valera para Manágua, na Nicarágua, e que está sendo levada para Japeri, no Rio. “A geografia e a topografia são itens básicos, não podem ser ignorados.”

A falta de diálogo entre o braço comercial – o estúdio dirigido hoje por Ana Elisa – e o cultural – a Fundação – gera perdas no controle sobre o acervo total. A entidade tem dificuldades de precisar quantos são efetivamente os projetos de Niemeyer e se realmente são autênticos.

O silêncio, segundo Valera, é proposital, para manter a autonomia do escritório. À piauí, ele definiu o papel da Fundação como apenas o de armazenar os projetos. “Não dependemos deles para fazer os projetos. Apenas quando terminamos, mandamos para eles guardarem”, disse.

Para resolver essa questão, a Fundação quer radicalizar. Pretende trabalhar em uma versão final do acervo – uma espécie de catálogo definitivo de Niemeyer. “Sempre pedimos acesso aos desenhos e fomos ignorados. Agora, vamos traçar uma linha, mostrar até aonde reconhecemos como sendo obra dele. Caso queiram uma revisão disso, que nos apresentem os projetos e vamos analisá-los e validá-los, como ele queria quando criou a Fundação.”

A administração da entidade se diz cansada de não conseguir soluções amigáveis para os problemas – e medidas judiciais podem estar a caminho. Pirondi sugere uma ação declaratória para que um juiz ratifique os poderes da Fundação e reconheça os direitos a obras “futuras”, já que o estatuto não faz referência a obras póstumas. “Se você faz uma Fundação e dá a ela poderes sobre o seu acervo, é óbvio que isso inclui tudo e não apenas as obras feitas até a redação de seu estatuto, em 1996”, disse o diretor. É uma resposta ao argumento usado pela viúva em um processo de outubro de 2015, quando ela questionou a legitimidade da instituição.

Difícil será arcar com os custos, tendo em vista a situação financeira da organização, que não recebe repasses pelo desenvolvimento de projetos. Localizada no primeiro imóvel de Niemeyer, o casarão branco na rua Conde de Lages, número 25, tem as janelas azuis sempre fechadas e a pintura da fachada descascada e repleta de pichações. “Quem vier na sede da Fundação vai ver as nossas condições. São precárias. Pelo tamanho do legado de Niemeyer era para estarmos em um lugar melhor, com acesso das pessoas e acervo exposto para visitação”, disse Pirondi.

Sob sua guarda estão hoje cerca de 10 mil documentos arquitetônicos entre desenhos originais e plantas técnicas, fotografias e textos. Dos originais que podem ser vistos, cerca de 4 800 foram tratados, catalogados e digitalizados. Outros 2 mil itens ainda estão pendentes.

Além do evidente valor imaterial, cada desenho original poderia ser vendido por pelo menos 25 mil reais. “Se a Fundação acaba, isso aqui tudo volta para a família e entra no bolo do inventário da herança”, afirma Pirondi. Por isso, para ele, o movimento de enfraquecimento da Fundação é premeditado.

Mas a briga é boa – uma que Pirondi está disposto a assumir. “Não vamos ceder. Nosso interesse é cuidar do legado de um dos nomes mais influentes da arquitetura moderna. Não podemos deixar rixas familiares estragarem isso.”

Depois da publicação desta reportagem, o arquiteto Jair Valera enviou uma carta, em resposta aos questionamentos da Fundação Oscar Niemeyer.

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