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    Ilustração: Carvall

questões jurídicas

O impeachment, a lei e a realpolitik

A pretexto de necessárias atualizações na legislação, Senado e Supremo movem-se para reequilibrar poderes com a Câmara

Rafael Mafei | 17 mar 2022_08h01
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Em meados de fevereiro, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), anunciou a criação de uma comissão de juristas para atualizar a Lei 1.079/1950, que regulamenta os crimes de responsabilidade e o processo de impeachment de presidentes da República, ministros de Estado, ministros do STF e outras autoridades. A lei é de 1950, mas não vige hoje em sua redação original. Em 2000, foi reformada para promover atualizações terminológicas e, muito importante, para detalhar e ampliar o rol de crimes de responsabilidade de natureza orçamentária passíveis de serem cometidos pelas autoridades abrangidas pela lei. Foi o ano da aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal, e a alteração da lei do impeachment fez parte do pacote do aumento de rigores com as contas públicas. 

Na sessão de abertura do colegiado, Pacheco alegou que os processos contra Collor e Dilma foram “desgastantes e atribulados”, e que por essa razão seria necessário mudar a lei. Sem prejuízo de ajustes pontuais, o senador deveria ter clareza de que uma ampla reforma, como essa que ele patrocina, só aumentará dúvidas e turbulências da próxima vez que a lei for aplicada, pois toda a consolidação jurisprudencial e procedimental acumulada nos dois impeachments anteriores será perdida. O regramento do impeachment sofreu importantes ajustes por decisões do Supremo Tribunal Federal, principalmente nos ápices das crises que derrubaram Fernando Collor de Mello, em 1992, e Dilma Rousseff, em 2016. Em ambas as ocasiões, o tribunal agiu rapidamente para definir com clareza as regras do jogo, fazer valer novas regras e velhos princípios trazidos pela Constituição de 1988 e conter minimamente, embora não totalmente, a volúpia despudorada de oportunistas poderosos como Eduardo Cunha. Do Supremo vieram o aumento de prazo para defesa da autoridade acusada na comissão especial da Câmara e a anulação de algumas chicanas do rito imposto por Cunha em 2015, por exemplo.

Ainda assim, há pontos que uma nova lei poderia melhorar. Alguns exemplos: a disciplina do tempo de que os presidentes das Casas do Congresso dispõem para despachar as denúncias que lhes são apresentadas, dando ou negando seguimento a elas, hoje sujeitas ao arbítrio caprichoso de uma figura do tipo de Arthur Lira (PP-AL); os critérios para aceitar e pautar recursos contra decisões que negam seguimento a denúncias, outro ponto cego que pode dar margem a arbitrariedades; o prazo de que dispõe o Senado para apreciar a denúncia autorizada pela Câmara e afastar o presidente da República (esse prazo foi de 90 minutos no caso Collor e 24 dias no caso Dilma); e a forma da votação no Senado, atualmente maculada por dois “fatiamentos” mal ajambrados, por fundamentação distinta, para servir às vontades de senadores nos julgamentos de 1992 e 2016. Há outros pontos que merecem atenção, e os juristas da comissão, alguns deles com relevante experiência prática em impeachments presidenciais, saberão identificá-los. O trabalho da comissão é apenas o início da discussão: se ela prosperar, a legislação sugerida tramitará no Senado e na Câmara, onde outras contribuições seguramente virão.

 

O trabalho da comissão de juristas acaba de começar. Ainda não se sabe quais modificações serão propostas. Mas ao menos é possível conhecer quais pontos da atual disciplina do impeachment atormentam o presidente do colegiado, ministro Ricardo Lewandowski, que publicou um artigo em outubro do ano passado expondo seus incômodos com a lei.

Lewandowski sugere que um dos problemas da disciplina do impeachment no Brasil está na possibilidade de qualquer cidadão apresentar denúncia por crimes de responsabilidade. Na leitura do ministro, o fato de que a denúncia infundada não gera qualquer consequência para quem a apresentou abre portas para acusações levianas e abusivas, o que seria um fator de instabilidade para o país.

Pelas entrelinhas, lê-se que Lewandowski contempla a ideia de restringir o direito de cidadãos denunciarem crimes de responsabilidade, ou aumentar o custo jurídico para aqueles que o fizerem sem fundamento. Um caminho para essa restrição seria reservar a cidadãos apenas o direito de noticiar os fatos que entendam criminosos, ficando a denúncia propriamente dita a cargo de algum deputado ou deputada que aceitasse formalizar a acusação. Essa é aliás característica histórica do impeachment desde seu berço inglês: a acusação vinha da chamada casa parlamentar baixa (Câmara dos Comuns, Câmara dos Deputados), ficando o julgamento a cargo da dita casa alta (Câmara dos Lordes, Senado). 

A vigente lei do impeachment, Lei 1.079/50, trabalhava sob lógica semelhante em sua concepção original: ela distingue a “denúncia” (arts. 14 a 18), apresentável por qualquer cidadão, da “acusação” (arts. 19 a 23), que resulta da aprovação da denúncia pela Câmara dos Deputados. Uma “comissão de acusação”, formada por três deputados, atuaria então perante a fase de julgamento no Senado. Pela leitura do Supremo Tribunal Federal, no entanto, esse desenho foi alterado pela Constituição de 1988: agora, o cidadão que denuncia perante a Câmara é o mesmo que atua como acusador no Senado. O papel da Câmara, segundo o Supremo e na linha de uma interpretação mais literal da Constituição, seria apenas o de “autorizar” (art. 51, I) a instauração de processo pelo Senado. Foi assim desde o caso Collor, em 1992.

Há dois problemas na eventual restrição ao direito de denúncia de cidadãos. Um primeiro é jurídico: a Constituição de 1988 reconhece a qualquer cidadão o direito de peticionar às autoridades públicas contra ilegalidades ou abusos de poder (art. 5º, XXXIV, alínea a). Mitigar o direito dos brasileiros de exercer esse direito fundamental justamente contra a maior autoridade política da nação poderia ser visto como afronta a esse direito. O modelo “qualquer cidadão noticia, mas só um deputado denuncia” poderia redundar no mesmo tipo de frustração cívica hoje patrocinada por Arthur Lira: centenas de notícias de crimes de responsabilidade pereceriam em alguma gaveta de Brasília, sem que os noticiantes recebessem qualquer satisfação quanto a sua petição. Seria apenas um caminho mais longo para promover o mesmo esvaziamento do direito constitucional de petição.

O segundo problema na ideia restritiva ao direito de petição é que a ideia talvez decorra de um diagnóstico equivocado. O Brasil carrega desde o Império o desenho de que qualquer cidadão pode denunciar autoridades por crimes de responsabilidade. Foi esse o modelo que valeu para impeachments desde a primeira legislação republicana, em 1892. Por que só agora ele teria se transformado em causa de instabilidade política? 

Vale notar que o fenômeno da onda de impeachments das últimas décadas não é exclusivamente brasileiro: como nos mostra a ciência política, esse tsunami atinge várias novas democracias presidencialistas, da América Latina à Ásia. Hoje mesmo há um vizinho nosso vivendo essa apoquentação: o presidente peruano, Pedro Castillo, está emparedado por um processo semelhante ao que selou o destino de seus antecessores Martín Vizcarra, cassado em 2020, e Pedro Pablo Kuczynski, que renunciou em 2018 para não ser cassado. Mesmo nos Estados Unidos, uma democracia estável onde a acusação formal contra presidentes é privativa da Câmara dos Deputados, houve duas denúncias aprovadas pela Câmara contra o ex-presidente Trump, levando-o a ser julgado duas vezes pelo Senado. 

O impeachment é menos causa e mais sintoma de instabilidades políticas mais profundas, hoje agudizadas pela polarização política em que vivemos. Antes dele se tornar a opção de preferência das elites políticas para dar cabo de grandes crises, as mesmas circunstâncias desaguavam em golpes de Estado, renúncias sob ameaça militar, cassações sumárias e até mortes por assassinatos ou suicídios. Quem se incomoda com a pressão saindo da panela fará mau negócio se quiser resolvê-la obstruindo a válvula.

 

Outro ponto que parece incomodar Lewandowski, e que talvez mereça atenção da comissão, está na descrição legal dos crimes de responsabilidade. A lei de fato contém previsões muito abertas, como “infringir, patentemente, e de qualquer modo, dispositivo da lei orçamentária” ou “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo”. 

Quem se insurge contra a linguagem pouco detalhista da lei do impeachment espera que uma redação mais pormenorizada dos crimes de responsabilidade proteja as autoridades acusadas de acusações abusivas, que forçam a barra para enquadrar desvios menores em crimes de responsabilidades, e julgamentos oportunistas, que se valem de uma interpretação frouxa como pretexto para remover alguém do cargo sem boas razões jurídicas. Mas esse diagnóstico não é unânime: a Constituição dos Estados Unidos, por exemplo, traz uma rubrica genérica – “altos crimes e altos delitos” (high crimes and misdemeanors) – como fundamento possível de impeachment, sem qualquer detalhamento legal, justamente para que abusos de poder que exigem remoção emergencial de presidentes não fiquem presos a fórmulas pré-definidas e facilmente contornáveis por quem tem todo o poder do Executivo federal a seu dispor.

Aperfeiçoar a redação dos crimes de responsabilidade pode ser oportuno, mas não devemos exigir que palavras de uma lei entreguem mais do que lhes seja possível. Uma lei mais detalhista pode aumentar o escrutínio público sobre acusações sem mérito jurídico, elevando o custo político e reputacional para parlamentares que pensam em usar o impeachment como subterfúgio para ameaçar ou remover um presidente incompetente e impopular, mas nem por isso criminoso. Pode também ajudar na estratégia de defesa jurídica da autoridade acusada, pois quanto mais detalhada a lei, mais difícil o enquadramento do crime.

Porém, é fundamental ter-se em mente que interpretar a lei, como fazem juristas e advogados, é um ato de razão; mas tomar uma decisão de autorizar uma denúncia, como faz a Câmara, ou de condenar ou absolver por crime de responsabilidade, como faz o Senado, é no limite um ato de vontade – uma vontade coletiva, partidária e política, permeada por acordos, estratégias e cálculos de custo e benefício para parlamentares, legendas, blocos e grupos de pressão bem articulados no Congresso. Diante de tudo isso, quando o parlamentar ouve a pergunta “como vota?”, a letra da lei, mesmo a mais detalhada e bem escrita, tende a ficar miúda e borrada.

Ao fim e ao cabo, as interpretações decisivas da lei do impeachment serão feitas por deputados e senadores, que poderão escolher pagar o preço da crítica de juristas por uma condenação de frágeis fundamentos se isso convier a suas estratégias políticas de curto prazo. Assim o fez Antonio Anastasia, um dos membros da comissão, em 2016, diante das muitas vozes que apontavam fragilidades da acusação contra Dilma Rousseff, cuja condenação ele recomendou em seu parecer na comissão especial do Senado. Para testar seu diagnóstico, o ministro Lewandowski poderá se perguntar se o parecer de Anastasia teria sido outro àquela altura, caso a redação da lei fosse mais detalhista quanto aos crimes fiscais.

 

Um bom exemplo de como a força dos textos legais às vezes sucumbe às conjunturas políticas da vez é dado por outro tema ao qual a comissão certamente se dedicará: o chamado “fatiamento” do julgamento no Senado. A Constituição de 1946, sob a qual foi aprovada a atual lei do impeachment, previa que a condenação resultaria em perda de direitos políticos por “até cinco anos” (art. 62, § 3º), deixando claro que se tratava de um limite máximo dentro do qual cabia gradação. Já a Constituição de 1988 decidiu que a condenação implicaria “perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública”. 

No julgamento de Dilma, em 2016, o Senado decidiu que “com inabilitação” também pode ser interpretado como “sem inabilitação”. Eis aí uma aula de realpolitik da interpretação do impeachment, da qual aliás participaram ativamente dois membros da atual comissão: o ministro Lewandowski, que presidiu o julgamento da petista, e o então secretário-geral da Mesa do Senado, Luiz Fernando Bandeira de Mello Filho, apontado à época como ideólogo da manobra.

A bem da verdade, essa etapa do processo – a formulação do quesito de julgamento e a respectiva votação – já tinha sido abalroada no caso Collor, em 1992. Collor renunciou logo no início da sessão de julgamento. Pelo entendimento doutrinário mais tradicional, que ia de Rui Barbosa a Paulo Brossard, a renúncia implicaria extinção do processo – e com isso, Collor preservaria seus direitos políticos. Diante da renúncia, e em estratégia de improviso, os advogados de acusação no Senado, Evandro Lins e Silva e Fábio Konder Comparato, argumentaram que a inabilitação era uma pena autônoma e que não se confundia com a perda do cargo, podendo uma ser imposta independentemente da outra. Ao contrário do que fez Lewandowski no caso Dilma, ao decidir a questão monocraticamente, o então presidente do STF e condutor da sessão de julgamento no Senado, ministro Sydney Sanches, submeteu a decisão ao plenário. Os senadores, desejosos de impor a Collor os maiores rigores da lei, deliberaram desmembrar a perda do cargo, que estava prejudicada pela renúncia, da inabilitação. Com isso, o julgamento prosseguiu e Collor foi condenado à perda dos direitos políticos por oito anos.

Tanto no caso Collor quanto no caso Dilma, qualquer iniciativa para reverter esses desfechos polêmicos da decisão tomada no Senado dependeria de recurso ao STF. Contudo, o tribunal tem – corretamente – optado por interferir pouco em impeachments, e nada no veredito do Senado, que tem competência constitucional exclusiva para a matéria. Se esse assunto for disciplinado em detalhes na nova lei, talvez seja possível provocar o tribunal a discutir a questão previamente e em abstrato, fora do ambiente tumultuoso de um processo de impeachment. Daí viria enfim uma interpretação colegiada do Supremo quanto ao que significa a locução constitucional “perda do cargo, com inabilitação”.

 

Todas as questões apontadas até aqui são juridicamente relevantes, mas desconfio que elas sejam circunstancialmente menores. O grande motivador da pretendida reforma da lei do impeachment tem nome e sobrenome: Arthur Lira. Mais do que aperfeiçoar este ou aquele ponto da lei, o combustível que move adiante o ímpeto reformista tem a ver com o desejo de reequilibrar os poderes da Câmara dos Deputados de Lira, de um lado, e, de outro, o Senado e o Supremo, de onde não por acaso vêm os dois principais artífices da comissão: Rodrigo Pacheco e Ricardo Lewandowski.

A experiência com o tema do impeachment não é atributo uniforme entre os membros do grupo. O que realmente os une é a circunstância de serem todos juristas de proximidade e confiança a Pacheco e Lewandowski. Minas Gerais, berço político de Pacheco, fornece três nomes ao colegiado: o advogado Maurício de Oliveira Campos Júnior, que tem em seu currículo a defesa de políticos importantes como Aécio Neves; o procurador de justiça Gregório Assagra de Almeida, que atua nos tribunais superiores em Brasília; e o ministro do TCU Antonio Anastasia, que era senador e relatou o caso de Dilma em 2016. Do Senado presidido por Pacheco vêm ainda Carlos Eduardo Frazão do Amaral, atual diretor da Presidência da casa, e o consultor legislativo Luiz Fernando Bandeira de Mello Filho, que atuava como secretário-geral da Mesa na época do julgamento de Dilma, quando possivelmente ganhou a confiança de Lewandowski (ele é hoje conselheiro do CNJ). É provável que tenha vindo do ministro do Supremo também o nome de Heleno Torres, colega de Lewandowski na Faculdade de Direito da USP e um dos juristas que assinou parecer contra o impeachment de 2016. Certamente veio de Lewandowski a indicação de Fabiane Pereira de Oliveira, sua assessora no Supremo e ex-secretária geral da Presidência do tribunal na época do impeachment de Dilma. (Fabiane, cuja formação e senioridade não diferem das de Carlos Eduardo ou Luiz Fernando, é a única mulher na comissão de onze membros e recebeu dos colegas a incumbência de relatar os trabalhos.) Completam a comissão três nomes da mais alta elite jurídica brasiliense, que certamente gozam da confiança de Pacheco e Lewandowski: o ministro do STJ Rogério Schietti, nome de destaque em matéria penal; um ex-ministro de Estado do governo Temer, Fabiano Silveira; e um ex-presidente da OAB Federal, Marcus Vinicius Furtado Coêlho.

Lewandowski e Pacheco devem ter assistido com aflição à progressiva ascensão da presidência da Câmara dos Deputados, agora sob Lira, mas antes dele sob Rodrigo Maia (sem partido-RJ), à instituição de proa do impeachment. O texto da Constituição de 1988 parecia sugerir o contrário, ao tirar da Câmara qualquer papel relevante como acusadora e relegá-la a mera autorizadora da denúncia. Mas Maia e Lira mudaram a sorte da casa ao atribuírem a si próprios um poder que não está nem na lei do impeachment nem na Constituição: a liberdade de ignorar denúncias apresentadas contra o presidente da República, deixando-as sem resposta e guardando-as como munição até quando lhes convenha. 

Em face de um criminoso serial dos delitos de responsabilidade como Jair Bolsonaro, essa faculdade permite aos presidentes da Câmara que acumulem um estoque de “remédios amargos”, nas palavras de Lira, que pode ser usado a qualquer tempo contra a Presidência da República. Quanto maior esse estoque, maior o poder de barganha de que dispõe o presidente da Câmara para garantir cargos e recursos do Poder Executivo a seus aliados, que por sua vez prometem ao presidente um escudo de proteção contra qualquer denúncia. Lira tornou-se o segundo político mais poderoso do Brasil atuando como broker do impeachment presidencial: agencia apoio para Bolsonaro, mas cobra em troca uma fatura cara na forma de vantagens políticas e financeiras, que ele na sequência faz chegar a projetos e interesses de deputados fiéis. Essas benesses tendem a ser tão mais abundantes quanto maior seja a pressão pública pelo impeachment. Ao menos para ele, ter um criminoso político atávico na Presidência da República tem sido um ótimo negócio.

Essa dinâmica faz com que as atenções do Executivo voltem-se preferencialmente à Câmara, diminuindo a importância relativa do Senado, que nos processos de impeachment brasileiros já não era grande: com o afastamento preventivo do presidente da República logo no início do processo, ele perde as ferramentas para se defender politicamente e torna-se um cadáver político à espera de seu afastamento definitivo. Em qualquer cenário, com denúncias represadas ou encaminhadas, a melhor estratégia para o Executivo em face de ameaças de impeachment é jogar todas as suas fichas na Câmara. Como o impeachment tem estado sempre na ordem do dia, essa situação deve ser incômoda a Rodrigo Pacheco, que vê a casa por ele presidida relativamente diminuída em face da outra.

Para o Supremo de Lewandowski, a situação absurda de denúncias por crimes evidentes, ignoradas a perder de vista, traz dois problemas. Primeiro, ela aumenta a pressão pública para que o tribunal faça algo sempre delicado: interfira sobre a tramitação de matéria no Poder Legislativo, típica questão interna corporis. O fato de que haja fundamentos jurídicos para fazê-lo, pois cabe sim ao tribunal controlar abusos de poder do presidente da Câmara, não significa que esse movimento viria sem custos e sem polêmica. Está claro que o Supremo não quer enroscos além da grande confusão para a qual já está convocado faz tempo: urnas eletrônicas, desinformação política e tudo que orbitará as tumultuadas eleições de 2022. O Supremo esquivou-se de todas as tentativas de destravar a barreira Lira ao impeachment, e talvez tenha feito bem: seria entrar em briga perdida, pois Lira precisaria de apenas mais de um terço dos votos pró-Bolsonaro para sepultar qualquer denúncia, e o orçamento secreto está aí para isso.

O segundo problema é que a situação esdrúxula criada por Lira joga luzes sobre mecanismos de blindagem que também protegem presidentes do Supremo contra pedidos de impeachment. Na sistemática atual, denúncias por crimes de responsabilidade de ministros do STF não passam pela Câmara: são apresentados diretamente ao presidente do Senado. Rodrigo Pacheco vez por outra tem de lidar com essas batatas quentes, como ocorreu com a denúncia apresentada pessoalmente por Bolsonaro contra Alexandre de Moraes. Se o tribunal enfrentasse os abusos de Lira dizendo que a autoridade que recebe a denúncia não pode ignorá-la, o resultado previsível seria que os adversários do Supremo usariam a queda dessa barreira contra os próprios ministros, direcionando sucessivas denúncias contra membros do tribunal ao Senado, que teria de sofrer o desgaste de arquivar uma a uma, dia após dia. Mexer no vespeiro do impeachment, enfim, poderá trazer consequências para o próprio STF. Este é o nó mais delicado a ser desatado pela nova legislação. 

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