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    Casa de câmbio em Moscou, Russia – Foto: Alexey Filippov / Sputnik via AFP

carta da rússia

O novo normal

No diário de um moscovita, as agruras no mercado financeiro e a realidade imposta pela guerra

Ivan Petrov* | 30 mar 2022_10h00
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De Moscou

23 de fevereiro de 2022, quarta-feira_Hoje é feriado nacional na Rússia. É o Dia do Defensor da Pátria, instituído em comemoração à criação do Exército soviético, que sobreviveu à época comunista. Como tantos outros russos, nos reunimos com uns parentes para jantar. Discutimos a decisão do presidente Putin, adotada há dois dias, de reconhecer a independência das Repúblicas de Donetsk e Lugansk, que ficam no Leste da Ucrânia. Esses territórios declararam sua autonomia em 2014, e desde então o conflito ali não diminuiu. Há uma sensação de que o reconhecimento das Repúblicas é um movimento diplomático forte, que manteria o status quo por algum tempo. Ninguém espera a guerra.

 

24 de fevereiro, quinta-feira_Estávamos todos enganados. Já de manhã, tomando uma xícara de café, a primeira coisa que fiz foi abrir o aplicativo do meu banco. Vi que o rublo tinha perdido mais de 10% de seu valor. Estava claro que algo ruim tinha acontecido. Ao abrir a página de notícias, fiquei sabendo que Putin declarou uma “operação militar” na Ucrânia (na Rússia, é proibido chamar essa operação de “guerra”). Fiquei totalmente desnorteado. Fui para o escritório, mas ninguém estava trabalhando. As pessoas olhavam a timeline das redes sociais, discutiam umas com as outras nos chats e ao vivo. Debatiam o andamento das operações militares, as prováveis sanções contra a Rússia, as possibilidades de emigrar.

Tive a sensação de que a vida a que eu estava acostumado acabou hoje. De maneira inesperada, muitíssimas pessoas (mais da metade dos que estavam ao meu redor) estavam com uma atitude muito mais positiva. Achavam que a operação militar acabaria depressa, que as sanções não seriam muito severas e que tudo ficaria bem. À noite, começaram as primeiras manifestações contra a guerra. Foram brutalmente reprimidas. É possível que a quantidade de pessoas que não apoiam a operação militar seja muito maior do que aqueles que saíram para os atos, mas as pessoas não estão dispostas a levar cassetetes dos policiais. Além disso, há um risco considerável de receber uma sentença de prisão. Quem saiu às ruas demonstrou uma coragem verdadeira.

 

25 de fevereiro,sexta-feira_Por alguma razão, a situação hoje parece ter se acalmado. No mercado de câmbio, o rublo se recuperou, as pessoas acreditam que a vitória está próxima. Porém, os comerciantes de produtos importados já começaram a aumentar os preços. Algumas empresas dedicadas à venda de produtos eletrônicos e eletrodomésticos começaram a atualizar os preços. E esse é o primeiro efeito das operações militares sobre a população.

 

26-27 de fevereiro, sábado-domingo_No fim de semana, continuaram a chegar notícias de sanções. Um atrás do outro, os países europeus fecharam seu espaço aéreo. E, na medida mais severa, as reservas do Banco Central da Rússia serão congeladas nos territórios dos países do G7. Para aqueles que entendem pelo menos um pouco do mercado de câmbio, foi um sinal claro de que o rublo cairá ainda mais. As pessoas saíram para sacar dinheiro vivo. Surgiram grandes filas nos caixas eletrônicos e nos bancos que tinham dólares. Nas redes sociais, surgiram grupos em que as pessoas trocavam informações sobre onde dava para sacar ou comprar dólares.

 

28 de fevereiro, segunda-feira_Como era esperado, o rublo perdeu mais 20% de seu valor. Além disso, a Bolsa de Valores fechou. Eu e muitos conhecidos investimos a maior parte de nossas economias em ações. E essas economias estão congeladas. Não tive tempo de vender as ações e retirar o dinheiro da conta da corretagem. Não faço ideia do que vai acontecer com meu dinheiro. Quando serão reabertos os mercados? Será que serão mesmo abertos? Não existe uma resposta para essas questões. Além disso, o presidente emitiu um decreto proibindo transferir moeda para contas abertas em bancos estrangeiros. À noite, um grande amigo foi embora da Rússia.

 

1º de março, terça-feira_O presidente fez mais um decreto. Dessa vez, ficou proibido sair do país com mais de 10 mil dólares norte-americanos. De fato, isso significa que é praticamente impossível tirar dinheiro da Rússia. Abri uma conta na bolsa de criptomoedas. E praticamente todos estão fazendo isso. Assim, as criptomoedas viraram o único meio de saída dos recursos.

 

2-5 de março, quarta a sábado_Cada vez mais empresas encerram suas atividades na Rússia. Montadoras, estúdios de cinema, companhias aéreas… É impossível enumerar todas. Pouco a pouco, vai ficando evidente que as pessoas estão começando a comprar estoques de produtos de higiene, comida de animais, remédios. As redes de varejo estão restringindo a venda de alguns produtos. Por exemplo, não é permitido comprar mais de 10 kg de açúcar ou de farinha por pessoa. Mas, por enquanto, ainda não há nenhum problema de abastecimento de algum produto.

Na noite de 5 de março, foi declarada a saída da Visa e da Mastercard. A partir do dia 10 de março, os cartões emitidos por bancos russos deixarão de funcionar fora das fronteiras da Rússia. É um forte golpe naqueles que saíram depois do início da “operação especial”. Perderam acesso a seu dinheiro. Além disso, as pessoas que foram embora da Rússia são justamente as que não apoiam as ações militares, mas sofrem mais que os outros. A população urbana instruída, com renda acima da média, em sua maioria não apoia essa guerra e não constitui o núcleo do eleitorado do regime. É justamente essa parcela da população que voa para a Europa, usa Netflix e Spotify, dirige carros europeus. Além disso, sofre mais com a saída do mercado de todas essas empresas. Em muitas pessoas, isso tudo causa perplexidade.

 

6 de março, domingo_Hoje, deveríamos voar para o Egito, de férias. Até o último momento ficamos decidindo se valia ou não a pena ir. Cada vez mais estávamos inclinados a não ir. Mas, no fim das contas, a Agência Federal de Transporte Aéreo tomou a decisão por nós. Foram cancelados os voos para fora do país de aviões que tivessem registros estrangeiros. E a maioria dos aviões das companhias aéreas russas é estrangeira. Com isso, claro, ficamos em casa. Mas muitos ficaram no exterior, sem a possibilidade de voltar. Foi algo parecido com o início de 2020, quando as fronteiras internacionais rapidamente foram fechadas por causa da pandemia do coronavírus. Mas, naquela época, houve um empenho para trazer as pessoas de volta para casa. Agora, no cenário de ações militares, ninguém está interessado no destino das pessoas ilhadas.

 

7 de março, segunda-feira_Saímos para passear no Centro da cidade. Um clima bastante opressivo. Muita polícia. Na Praça Manege e ao redor dela, os policiais proibiam que as pessoas parassem. Dava para passear, mas não era permitido ficar parado. Algumas pessoas foram detidas. Passear num clima daquele não dá prazer nenhum, por isso logo decidimos voltar para casa.

 

8-10 de março, terça a quinta_Criaram novas restrições relacionadas a moedas estrangeiras em dinheiro vivo. Agora, não dá para sacar mais de 10 mil dólares de contas abertas antes de 9 de março. Quem quiser sacar mais, só em rublos. Se nas duas semanas anteriores restringiam basicamente a exportação de moeda, agora já estão restringindo até o simples saque da conta. O resultado disso foi a maior fila num banco que eu já vi na vida. Declararam que essas restrições vão vigorar por seis meses. Mas não dá para acreditar muito nisso. Os Estados Unidos estão proibindo fornecer dólares em dinheiro vivo para a Rússia. Não existe razão alguma para esperar que até setembro alguma coisa vá mudar. Mas também tivemos boas notícias ligadas à regulação do mercado financeiro. Foi revogado o imposto sobre valor agregado para a compra de barras de ouro. Na avaliação dos bancos, a demanda por barras já cresceu quarenta vezes.

 

11 de março, sexta-feira_Hoje, pela primeira vez desde o início das ações militares, passei no bar depois do trabalho. Os preços no cardápio subiram, mas não muito. E, no geral, visualmente parecia que nada tinha mudado. Todo mundo se comportando como antes. Mas isso, em grande parte, deve-se ao fato de que é sexta-feira à noite. Consegui conversar com o chef do restaurante. Nas palavras dele, em uma semana a receita caiu 30%. Outra vez os negócios iam mal para a área dos restaurantes. Nem todos conseguiram superar as consequências dos lockdowns na pandemia, e agora esses novos problemas.

 

12-13 de março, sábado e domingo_Em certo sentido, começamos a nos acostumar ao novo normal. Mais pacotes de sanções, fechamento da mídia independente, saída de mais uma empresa, tudo isso deixou de causar grandes preocupações. Pela primeira vez em mais de duas semanas eu me forcei a praticar esportes.

Apesar de tudo, comecei a pensar cada vez mais em emigrar. Estudar as possibilidades, como e para onde ir. Nessas duas semanas e meia, quase todos os meus conhecidos que têm cidadania de outros países foram embora. Na Embaixada de Israel, há filas para obtenção de cidadania. Na Rússia, muita gente tem parentes em Israel. De um modo ou de outro, muita gente tem pensado em emigrar. Mas as pessoas ficam presas pelo fato de que precisam largar o trabalho, um certo nível de vida a que estão acostumadas. Além disso, muitos temem que, hoje em dia, ser russo em outro país seja perigoso. Nos jornais, periodicamente aparecem matérias falando de restaurantes que se recusam a servir russos, escolas que recusam crianças russas e outras discriminações.

 

14 de março, segunda-feira_Começou o bloqueio do Instagram. Aliás, é um bloqueio justamente por parte das autoridades russas. O pretexto foi o fato de que a Meta, dona do Instagram, não quis bloquear quem prega violência contra russos. O bloqueio atingiu não só os usuários comuns, para quem o Instagram é só mais uma rede social, mas uma grande quantidade de negócios. Especialmente os pequenos. Através do Instagram, empreendedores divulgavam os serviços de pequenas padarias, salões de beleza, lojas modestas, empresas de produtos artesanais. É complicado prever como todas elas vão conseguir se adaptar. Por um lado, quase todas estão criando contas em redes sociais alternativas. Por outro, muitas estão instalando VPNs, o que permite contornar o bloqueio. No geral, o VPN se tornou mais um símbolo do que está acontecendo. A internet está sendo bloqueada por todos os lados: assim como as empresas ocidentais têm parado de oferecer serviços aos russos, também as autoridades russas introduzem as suas sanções em resposta, e por enquanto o VPN é o único caminho para usar os sites e serviços habituais.

À noite, aconteceu um fato totalmente inesperado. Durante a transmissão ao vivo da edição noturna do noticiário do Canal Um, uma funcionária apareceu atrás da apresentadora carregando um cartaz contra a guerra. Depois dessa ação, ela foi detida e multada.

 

15 de março, terça-feira_ Hoje aboliu-se a obrigação de usar máscaras em lugares públicos em Moscou. No geral, depois do início da operação militar, as questões da pandemia saíram totalmente do foco das atenções. Ninguém publica a quantidade de novos casos e de mortos, ninguém discute a vacinação, a certificação da vacina russa na Europa e na Organização Mundial da Saúde. Quando o problema sumiu do noticiário, ficou parecendo que não existia mais. Além disso, a população em geral tinha uma atitude negativa em relação às máscaras, e é possível dizer que, ao aboli-las, as autoridades quiseram apenas dar uma boa notícia. Pelo menos em algum lugar temos um afrouxamento, e não um endurecimento.

 

16-17 de março, quarta e quinta-feiras_Endureceu a retórica em relação às pessoas que discordam das ações do governo. O presidente falou em traidores da nação, pessoas que trabalham na Rússia mas estão mentalmente ligadas ao Ocidente. Mais tarde, no mesmo tom, o secretário de imprensa do presidente também se manifestou. Tudo isso leva a crer que a luta contra os dissidentes deve endurecer. Agora, nas escolas, já estão contando para as crianças o que está acontecendo a partir de um só ponto de vista. Isso nos deixa muito alarmados.

 

18 de março, sexta-feira_Aconteceu um showmício em comemoração à anexação da Crimeia em 2014. No maior estádio do país, o Lujnikí, reuniram-se mais de 90 mil pessoas. Ao redor do estádio, havia mais 100 mil. É difícil dizer até que ponto todas essas pessoas foram lá voluntariamente. Antes, em eventos do tipo, muitos funcionários públicos eram forçados a participar, sob pena de terem problemas no trabalho. Além do mais, o comício foi no horário de trabalho, às três da tarde. Isso realmente leva a crer que as pessoas ali eram, em geral, ligadas a organizações governamentais.

No mais, já foi um dia comum nessa nova realidade que vivemos.

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*Em razão das medidas de repressão do governo Vladimir Putin, o autor deste diário, cidadão russo e morador de Moscou, preferiu assinar com um pseudônimo. Ele trabalha no mercado financeiro.

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Tradução: Lucas Simone

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