Era uma tarde ensolarada em março de 2020 quando saímos da redação da revista piauí animados com a ideia de escrever um artigo analisando a situação política do país com base no nosso recém-terminado (e naquela época ainda não publicado) livro, The Volatility Curse. O texto giraria em torno do conceito de responsabilização – até que ponto os eleitores conseguem distinguir “sorte” (choques externos) de “competência” (qualidade das políticas implementadas) quando avaliam seus governantes. Poucos dias depois, entretanto, antes mesmo de que começássemos a alinhavar as ideias, o mundo mudaria radicalmente, tornando impossível falar de política sem contemplar o novo cenário imposto pela pandemia da Covid-19.
O texto publicado na edição de junho de 2020 ainda tratava de responsabilização, porém agora com o pano de fundo do “choque externo do século”. Nosso foco voltou-se para as ações adotadas pelo governo Bolsonaro em resposta a esse choque e suas potenciais consequências para a sobrevivência do governo.
Nosso argumento, que inclusive deu nome ao texto, era de que Bolsonaro cometia dois erros fundamentais em sua resposta à pandemia. O primeiro consistia em apresentar o combate ao vírus e a recuperação da atividade econômica como preocupações antagônicas. Essa falsa dicotomia apoiava-se inicialmente na minimização (“uma gripezinha, um resfriadinho”) e posteriormente na “naturalização” (“todo mundo vai morrer um dia”) das mortes por Covid-19. Envolvia também fazer crer que a retomada econômica deveria ser a principal preocupação (“morrerão mais pessoas de fome”) e que ela só aconteceria à medida que as pessoas abandonassem o isolamento social e retomassem sua rotina normal de trabalho e lazer. Essas ideias, visivelmente equivocadas já naquele tempo, contribuíram (e seguem contribuindo) não apenas para multiplicar o número de vidas perdidas para o vírus, mas também para atrasar a recuperação da atividade econômica.
O impacto disso nos parecia claro. O fracasso relativo do Brasil na pandemia deixaria patente o fato de que o país estaria perdendo mais vidas do que seria inevitável em decorrência das políticas e do discurso adotados pelo governo federal. Ao fim e ao cabo, a bolha de desinformação bolsonarista dificilmente resistiria à realidade das pilhas de brasileiros mortos na porta dos hospitais.
O segundo erro de Bolsonaro seria crer que, ao se posicionar “ao lado dos que precisavam trabalhar” e contrário a medidas de isolamento definidas no âmbito local, conseguiria responsabilizar outros atores políticos – em particular os governadores – pela crise econômica “já contratada”. Não haveria como evitar uma crise econômica, e o negacionismo em nada contribuiria para abreviá-la. Argumentamos, então, com base em farta evidência apresentada no livro, que eleitores latino-americanos, entre eles os brasileiros, sempre responsabilizam o presidente pela economia. Isso acontece independentemente de a responsabilidade ser ou não majoritariamente dele.
Um ano e centenas de milhares de mortes depois, é curioso observar que esses dois erros continuam a nortear as ações e palavras de Bolsonaro. Em algum momento de 2020 chegou a parecer que Bolsonaro poderia escapar a essas previsões. Afinal, na contramão do resto do planeta e apesar da resposta desastrosa à pandemia, depois de uma queda inicial a popularidade do presidente aumentou significativamente à medida que tanto a pandemia quanto a crise econômica avançavam. Seriam os brasileiros indiferentes aos milhares de mortes que vinham observando diariamente? Seria possível que o presidente pudesse convencer a população de que não tinha responsabilidade sobre a crise econômica?
Não nos parece que nenhuma dessas afirmações seja verdadeira. Cidadãos sofrem concretamente com as mortes da pandemia, sobretudo com aquelas que envolvem pessoas próximas. Entretanto, a literatura que estuda o fenômeno do “entorpecimento psíquico” (psychic numbing) nos ensina que, por razões evolutivas e não morais, grandes números reverberam pouco na mente humana. Por outro lado, sabemos que condições materiais importam a cada minuto em que não se tem o que dar de comer aos filhos ou como pagar o aluguel do mês. Por conta de tudo isso, mesmo diante do sofrimento infringido pelas mortes por Covid-19, os brasileiros melhoraram sua avaliação do governo Bolsonaro entre maio e dezembro de 2020, quando o governo passou a conceder um auxílio emergencial num total de 293 bilhões de reais em benefício de 68 milhões de brasileiros. Cerca da metade das famílias do país foram beneficiadas direta ou indiretamente por esse auxílio, um número incomparável ao total de famílias traumatizadas por perdas para a Covid-19.
Graças a esse auxílio, que custou mensalmente quase o dobro do valor anual do Programa Bolsa Família, o número de brasileiros abaixo da linha de extrema pobreza desceu aos níveis mais baixos em quarenta anos. Não é pouca coisa e, dado o que se sabe sobre o impacto político de transferência de renda, não deveria surpreender que uma iniciativa desse tipo tenha dado o fôlego que deu à popularidade do presidente.
A figura abaixo agrega resultados de 195 pesquisas nacionais de avaliação do desempenho do presidente, realizadas por doze institutos de pesquisa diferentes e cujos resultados estão disponíveis publicamente. A nossa capacidade de inferir causa e efeito entre o benefício e a popularidade é, no contexto atual, limitada, mas observa-se um salto de cerca de oito pontos percentuais na popularidade de Bolsonaro a partir de maio – mês em que atingiu seu patamar mais baixo e quando as primeiras parcelas do auxílio começaram a chegar a todos os beneficiários – e agosto. Esse salto é registrado nas duas formas distintas de agregar as pesquisas que são reportadas na figura (média mensal simples e “popularidade latente”). A popularidade do presidente, então, permaneceu mais ou menos estável nesse patamar mais elevado até o final da vigência do auxílio emergencial em dezembro, quando cedeu cerca de cinco pontos num único mês. Desde então, continua caindo e já igualou as mínimas registradas em maio de 2020, abaixo do mítico “chão dos 30%“.
Uma inspeção visual dessa figura sugere que as variações na popularidade acompanharam, pelo menos até o final de 2020, as variações na renda das famílias de maneira muito mais nítida do que o número de mortos pela pandemia, reportado em vermelho na figura (dados são do projeto Our World in Data). A popularidade de Bolsonaro caiu fortemente entre fevereiro e maio de 2020, antes de um aumento expressivo das mortes, mas num período em que os efeitos econômicos da pandemia já eram sentidos. No período de forte aumento de mortes da “primeira onda” da pandemia, entre maio e julho, a popularidade se manteve estável, talvez porque o auxílio já estivesse sendo distribuído. A popularidade de Bolsonaro então experimenta o “salto do auxílio” que ocorre quando as mortes diárias ainda estão no “platô” da primeira onda. De julho a setembro, quando o número de mortes caiu durante a vigência do auxílio, a popularidade não aumentou. Durante todo o ano de 2020, portanto, o comportamento da popularidade do presidente está em linha com a ideia de que ela é primariamente determinada pela economia.
Na virada do ano assistimos à forte queda na popularidade que coincidiu com o fim do auxílio. Essa queda coincide também com a aceleração da taxa de mortes que temos vivido desde então. Fica, portanto, mais difícil separar efeitos dos dois processos. Se até o final de 2020 a economia, tal qual experimentada pela maioria das famílias brasileiras, parece ter sido a principal determinante da popularidade, já entramos agora em terreno desconhecido. É possível que a queda de popularidade se deva sobretudo ao fim do auxílio, numa continuidade do que vimos em 2020. Mas à medida que cresce a quantidade de famílias expostas a perdas pela Covid e a percepção de que o governo não tem capacidade de atuar na pandemia (hoje 54% dos brasileiros creem que não o tem), não é certo que o passado sirva de guia para o futuro e é possível que o desastre da Covid, independentemente da economia, passe a pesar contra o governo. Podemos haver chegado ao momento em que a realidade se impõe às informações falsas espalhadas pelo governo nas redes sociais.
Essa nossa ignorância sobre o peso relativo exato das mortes e da economia não nos impede de renovar as nossas projeções iniciais. Como toda projeção, combinamos algumas lições do passado (sobre as quais temos um nível variado de certeza) com cenários para o futuro que são, por natureza, incertos. Sabemos, por exemplo, que é altamente improvável que um presidente com a popularidade em níveis similares aos que Bolsonaro tem hoje seja reeleito (como analisamos aqui). Com base no passado, pode-se esperar que a nova rodada do auxílio emergencial tenha algum efeito positivo para a popularidade de Bolsonaro, porém é improvável que esse efeito seja da magnitude observada em 2020. O auxílio de 2021 corresponde nominalmente a pouco mais do que ¼ do auxílio original, será diluído pelo ambiente de alta inflação de alimentos e desemprego persistente e, ainda que quisesse (e devesse), o governo não dispõe nem de recursos nem da tolerância dos “agentes econômicos” para aumentar os seus valores ou estender os pagamentos indefinidamente.
O passado nos sugere que, para que Bolsonaro se tornasse competitivo para as eleições de 2022, seria necessário que o país experimentasse uma substancial melhora econômica. Essa melhora poderia, a despeito da inépcia do governo, ser puxada por um cenário externo favorável, como de tempos em tempos ocorre com as economias latino-americanas. Nesse sentido, circulam, já há algum tempo, notícias sobre as perspectivas de um ciclo de aumento do preço internacional das commodities, puxado pela retomada da economia chinesa e gargalos logísticos.
Entretanto, pela primeira vez em tempos recentes, observamos um aumento de quase 40% no preço internacional de commodities sem que se tenham observado quaisquer efeitos positivos no Brasil. Episódios similares no passado levaram à valorização da moeda nacional, limitando os efeitos inflacionários dos aumentos de preços e aumentando o poder de compra das famílias. A consequência, quase sempre, foi maior popularidade de presidentes e maiores chances de reeleição (ver também The Volatility Curse). Hoje, no entanto, temos um aumento das commodities sem valorização cambial. As causas para esse descolamento entre o Brasil e o mundo são complexas e pertencem ao debate econômico, mas a absoluta incompetência do governo na gestão da pandemia e suas previsíveis consequências para a retomada econômica certamente são parte dessa história.
Sem uma ajuda significativa do cenário externo, e mesmo com ela, a retomada econômica depende do controle da pandemia via políticas de mitigação e aceleração da vacinação. Embora continue sabotando quaisquer medidas não farmacológicas, até Bolsonaro parece ter percebido esse último ponto, ainda que apenas recentemente. Aqui e agora, no entanto, não basta apenas vontade. É preciso uma capacidade de agir que esse governo demonstradamente não tem. Decisões ruins tomadas ao longo dos últimos meses nos deixaram sem perspectivas de vacinas no curto prazo e indicam que a névoa da pandemia somente venha a se dissipar a partir do final do segundo semestre, em um cenário otimista.
Seguiremos morrendo aos milhares por semanas, talvez meses, enquanto a economia patina com o vaivém das medidas de restrição de atividades tomadas localmente e sabotadas pelo governo central.
A pandemia teria sido um processo muito difícil mesmo com o melhor dos governos, mas os erros persistentes de Bolsonaro propiciaram a carnificina que estamos vivendo. Surge, então, uma série de incógnitas. A entrada de Lula no cenário político, ainda incerta, poderá trazer comparações inevitáveis entre a lembrança da felicidade que foi viver no Brasil entre 2002-2010 e a tragédia atual. O elevadíssimo número de mortes que experimentaremos até o (ainda hipotético) final da pandemia poderá, ao contrário do que ocorreu até agora, vir cobrar seu preço, inclusive em termos de apoio legislativo. O desastre brasileiro ficará ainda mais patente à medida que outros países emergirem da pandemia enquanto no Brasil a vida, e consequentemente a economia, continuarem em compasso de espera.
Um dos poucos cenários favoráveis ao presidente seria o de uma retomada econômica imediata após a vacinação em massa. Ainda que a economia seja o maior determinante de popularidade e reeleição, uma retomada pós-vacina teria que ser muito rápida e muito forte. A popularidade de Bolsonaro poderá estar num nível muito baixo no final de 2021, e mesmo uma recuperação robusta pode não ser suficiente para viabilizar sua reeleição.
É também possível que Bolsonaro já chegue ferido e tóxico demais a 2022. Sem a confiança dos agentes econômicos e com a popularidade em queda, o presidente perderia também o apoio do Centrão que, afinal, não é dado a abraçar afogados. E nesse cenário, há que se considerar que as mesmas vacinas que poderiam permitir a retomada da economia possibilitariam, também, uma volta dos protestos de rua, o elemento que falta para impulsionar a remoção do presidente. Mesmo que tudo isso venha a ocorrer em um momento em que um impeachment não seja mais viável, a sua mera possibilidade projeta uma grande sombra sobre o presidente e pode transformá-lo em um morto-vivo político antes que qualquer recuperação ocorra, ou mesmo a despeito dela.
Concluindo, Bolsonaro terá que se esforçar bastante para sobreviver politicamente ao massacre de brasileiros que ocorre sob a sua gestão e ainda torcer para uma retomada econômica forte em 2022. Há muitas razões para duvidar que seja capaz de capitanear essas exigências. Uma melhoria econômica salvadora teria que ocorrer a despeito do presidente e, neste momento, parece improvável. A situação não lhe é favorável, mas o presidente não pode culpar ninguém além de si mesmo. Para quem em abril de 2020 afirmou que não era coveiro, Bolsonaro vem fazendo um excelente trabalho cavando a sua própria cova política.