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    Gilmar Mendes preside sessão da 2ª turma - Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF

questões judiciais

O Supremo, a Lava Jato e o vale-tudo jurídico

Como o STF se tornou revisor da operação - e por que tenta encontrar solução para um problema que ajudou a criar

Eloísa Machado | 10 mar 2021_16h40
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Nos últimos anos, presenciamos ascensão e queda da Operação Lava Jato a partir dos julgamentos do Supremo Tribunal Federal.

Iniciada em 2014 sob a relatoria do então ministro Teori Zavascki, a Lava Jato prometia superar as fragilidades do julgamento da ação penal 470, conhecida como mensalão. Uma reforma regimental mandou maior parte dos inquéritos e ações penais às turmas, liberando a pauta do plenário, que havia ficado refém das sessões de julgamento dos réus do mensalão, e o tribunal restringiu sua competência para processar e julgar apenas aqueles com foro por prerrogativa de função. Com isso, esperava-se dar maior agilidade às investigações e diminuir a politização de julgamentos.

Logo as mudanças foram sentidas. Com um ritmo mais lento impresso às ações relativas a políticos com mandato e foro por prerrogativa de função, o Supremo passou de tribunal originário a revisor dos atos das instâncias ordinárias, sobretudo dos atos do então juiz Sergio Moro, à frente da 13ª Vara Federal de Curitiba – que, por uma interpretação bastante extensiva das regras de competência, acumulava ações e investigações com qualquer relação aos desvios da Petrobras.

A exceção ao papel predominantemente de revisor desempenhado pelo Supremo se deu em poucos episódios, entre o fim de 2015 e o início de 2016 – não por acaso ano do impeachment de Dilma Rousseff – e meados de 2017, quando o STF ficou incumbido das ações contra o então presidente Michel Temer. O Supremo assumiu protagonismo ao determinar a prisão em flagrante do senador Delcídio do Amaral (PT-MS), líder do governo em 2015, ao impedir liminarmente a nomeação de Lula como ministro no governo de Dilma e ao afastar do exercício do mandato – e da Presidência da Câmara dos Deputados – o deputado Eduardo Cunha, mas não antes de ele concluir o processo de impeachment na Câmara.

Feitas as exceções, o Supremo na Operação Lava Jato exerceu predominantemente o papel de revisor dos atos do ex-juiz Sergio Moro e dos demais tribunais. Nesse papel, chancelou a maior parte deles. O uso abusivo de prisões provisórias, a seletividade dos acordos de colaboração premiada, violações a sigilos, a interpretação extravagante de competência e as conduções coercitivas foram abundantemente usados por Moro sem controle efetivo pelo Supremo: ou não existia ou era tardio.

A partir de 2018, o Supremo passou a impor derrotas à Lava Jato de forma mais consistente. Revisou a ordem das alegações finais entre réus colaboradores, estabeleceu a competência dos crimes comuns conexos aos eleitorais na Justiça Eleitoral, declarou inconstitucional a condução coercitiva e alertou para a ilegalidade da competência ampla dada à 13ª Vara Federal de Curitiba.

O ex-juiz Moro (que impediu Lula, candidato opositor, de concorrer em eleições) virou ministro do governo Bolsonaro, e mensagens revelaram inacreditáveis diálogos entre acusador e juiz. Para o Supremo, tornou-se insustentável a manutenção das decisões prévias diante de todos esses novos elementos. 

Apenas agora, em 2021, o Supremo reconheceu a incompetência do ex-juiz Moro para processar as ações de Lula e iniciou julgamento sobre a sua suspeição. Já era hora. Mas o estrago feito pelos abusos de Moro e pela leniência do Supremo durante esses anos é enorme: para além da tragédia individual de uma prisão ilegal, as recentes decisões do Supremo Tribunal Federal revelam que a Operação Lava Jato interferiu – propositadamente – no resultado das eleições de 2018. Instituições do sistema de Justiça prepararam o terreno para a eleição de um governo autocrata, com um projeto de destruição e que contabiliza quase  270 mil mortos – e crescendo – com uma bem-sucedida política de disseminação da pandemia de Covid-19. Danos irreparáveis.

O estrago deixado pela Lava Jato é enorme também no Supremo Tribunal Federal. Para além de uma jurisprudência de exceção da qual foi e ainda é difícil se desfazer (até tuítes de generais entraram na conta), o tribunal atuou na Lava Jato esgarçando suas regras e criando um ambiente de insegurança e imprevisibilidade.

O vale-tudo regimental e processual teve muitos episódios: liminares extravagantes referendadas a jato, como a que afastou Eduardo Cunha e prendeu Delcídio do Amaral; redistribuição da relatoria dos processos da Lava Jato à revelia das regras; manipulação da pauta de plenário para impedir reversão de entendimento sobre prisão em segunda instância; decisões monocráticas suspensas por outras decisões monocráticas (como a que impediu entrevistas de Lula); sequestro de competência das turmas, com ministro vencido nas turmas buscando virar o jogo no plenário.

Lula esteve no centro dos maiores abusos da Operação Lava Jato, seja na 13ª Vara Federal de Curitiba, seja no Supremo Tribunal Federal. Está cada vez menos clara a separação entre o que era a Operação Lava Jato e o que era a perseguição a Lula. O direito, o regimento e o processo não são capazes de explicar tudo o que aconteceu.

Não tem sido fácil para o tribunal encontrar a saída para o problema que ajudou a criar. Por exemplo, ao rever a posição sobre a competência da Justiça Eleitoral para processar crimes comuns conexos aos eleitorais e conter abusos da Operação Lava Jato, o tribunal sofreu uma onda de ameaças e, em resposta, instaurou inquérito com base num legítimo direito de autodefesa, mas sem autorização legal. Fora dos trilhos do devido processo legal, o tribunal resolve um problema criando outro. 

Mesmo agora, quando o ex-juiz Sergio Moro já escancarou suas pretensões políticas e as mensagens da Operação Spoofing indicaram violação a todas as regras conhecidas sobre o devido processo legal, o Supremo sofre ao tentar reverter sua posição de outrora quase incondicional apoio à Operação Lava Jato e ao ex-juiz Moro. O enfrentamento do habeas corpus sobre a suspeição de Moro foi precedido por tentativas de impedir a turma de analisar o caso, seja pela declaração monocrática de perda de objeto de caso submetida à turma e com julgamento iniciado, seja pelo envio de questão de ordem para deslocamento do caso ao plenário.

O julgamento sobre a suspeição do ex-juiz Moro tem o potencial de passar muito dessa história a limpo. Poderá a um só tempo, ainda que tardiamente, realizar o controle sobre os atos do ex-juiz e analisar a interferência da Lava Jato no mandato de Dilma Rousseff e nas eleições de 2018. Permitirá também ao tribunal depurar sua parte de responsabilidade e tornar-se protagonista de suas próprias decisões.

Para isso o julgamento precisa terminar e, sobretudo, ser feito dentro das regras. Já é tarde.

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