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    “É sempre isso: ‘Maxwell traz a vivência da favela.’ Eu sei que isso é uma verdade. Mas eu sempre evito falar dessa maneira. Se eu ficar sublinhando só isso, não se fala de outras coisas." Sem título, 2022 (acervo do artista)

questões artísticas

O traço e as tretas de Maxwell Alexandre

Numa tarde em seu apartamento, o pintor conversa sobre arte, imprensa e Carnaval

Tatiane de Assis | 23 fev 2024_09h43
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Carros e ônibus se espremem nas ruas do Rio de Janeiro numa quinta-feira de sol tórrido. É véspera de Carnaval. Turistas chegam, famílias pegam a estrada, o trânsito é sobrecarregado. Em seu amplo apartamento na Avenida Rui Barbosa, no Flamengo, endereço tradicional da alta classe média carioca, o pintor Maxwell Alexandre está alheio ao frisson e ao barulho. Suas janelas enquadram o Pão de Açúcar, uma paisagem estática. A decoração da sala é sóbria e minimalista: há três grandes telas ocupando as paredes, um banco comprido de couro preto e duas cadeiras da mesma cor. O ambiente se assemelha a uma sala de exposições.

Considerando que no mundo das artes plásticas muitos pintores só obtêm reconhecimento quando já estão mortos ou muito velhos, Alexandre é um caso de sucesso prodígio. Aos 33 anos, vive confortavelmente da sua produção artística, sem precisar se dedicar a uma profissão paralela. Há dois anos, trocou a Rocinha pela Zona Sul. É reconhecido internacionalmente. Expôs em Nova York, Paris, Londres e Marrakech. No ano passado, o Museu Zeitz de Arte Contemporânea da África (Zeitz MOCAA), da Cidade do Cabo, ao preparar a exposição Quando nos vemos: um século da figuração negra na pintura, escolheu quatro pintores brasileiros essenciais: Antônio Obá, Dalton Paula, No Martins e Alexandre.

O escritório onde ele trabalha é austero como a sala. Há um sofá preto, um móvel – sobre ele, uma boombox da marca JBL –, uma escrivaninha e uma estante parcialmente preenchida. Entre os livros, estão Memórias da Plantação: Episódio de Racismo Cotidiano, da portuguesa Grada Kilomba, Poiesis Bruscky, coletânea dos trabalhos do artista multimídia Paulo Bruscky, e The New African Portraiture [O novo retrato africano], catálogo de uma mostra coletiva realizada no Kunsthalle Krems, museu austríaco de arte contemporânea.

Alexandre está preparando uma exposição para daqui a dois meses, em São Paulo. Ele ocupará dois pisos do Sesc Avenida Paulista. Parte das obras que vão compor a mostra foram exibidas no Pavilhão Maxwell Alexandre, uma espécie de centro cultural itinerante criado pelo artista, em 2023, no bairro de São Cristóvão, na Zona Central do Rio. Era uma forma de mostrar o próprio trabalho sem depender do circuito artístico. Antes do pavilhão, Alexandre criou com amigos a Igreja do Reino da Arte (também chamada de A Noiva). A organização, merecedora de um artigo na Wikipédia, tinha como objetivo a “adoração à altíssima arte”.

“No Pavilhão é a mesma coisa, o que muda é que é só meu”, ele diz. “Tem meu nome e é para mostrar o meu trabalho. Eu sabia que isso era uma necessidade minha desde o início.”

A exposição em São Paulo terá 55 pinturas a óleo. Todas fazem parte da série Novo Poder, que se divide em subséries, como Passabilidade e Miss Brasil. As obras, como de costume, foram feitas sobre papel pardo. Para o artista, esse material mundano, que faz envelopes de carta e sacos de padaria, tem ao mesmo tempo uma carga racial – o termo pardo, no contexto do racismo brasileiro, frequentemente é usado como uma forma de amenizar ou ocultar a negritude – e uma carga de classe – porque contrasta com pintura clássica, europeia, feita sempre sobre tecido. O papel pardo dá um aspecto frágil às obras, por maiores que elas sejam (uma das pinturas da série Novo Poder tem 2,10 metros de altura). 

O conjunto contém retratos de mulheres, homens e crianças. Alguns deles carregam bolsas com estampas de instituições do mundo das artes, como MoMA (Museu de Arte Moderna de Nova York) e Cahiers d’Art, famosa revista francesa. A tônica desse momento nas obras de Alexandre é a ocupação do universo artístico por pessoas negras. Por ter feito sucesso cedo, ele conseguiu emplacar mostras individuais ainda no começo da carreira. Isso fortalece sua obra. Exibidas lado a lado, as pinturas se tornam uma coisa só. Ficam mais impressionantes.

O Sesc estima que a exposição, cuja inauguração está marcada para 18 de abril, deve receber 100 mil visitantes. Segundo Alexandre, a ideia do projeto não partiu dele. “Eu, sozinho, não faria isso, por questões de orçamento. Meu orçamento não é infinito. Tem muita coisa que está na fila. Aí vem uma instituição com dinheiro e nos faz essa proposta. É importante frisar isso. Está sendo muito maneiro. É sempre um perrengue fazer uma exposição, mas no Sesc não… Os caras estão com um malote lá e estão no pique ‘vamos fazer, vamos fazer…’.” 

 

Alexandre é desconfiado da imprensa. Quando sentamos em seu escritório e avisei que eu gravaria o áudio da nossa conversa, ele respondeu: “Demorô, vou fazer a mesma coisa.”

Em seguida, explicou o motivo. “Confesso que, para mim, o jornalismo é uma coisa um pouco difícil. E como eu sou um cara cuidadoso com a minha narrativa, estou aprendendo ainda a lidar com isso. Não curto quando a parada sai diferente. Às vezes você fala uma parada e também não lembra… Ter a entrevista arquivada é uma forma de ter prova mesmo, né?” 

A tentativa de condução da entrevista pelo entrevistado fere a autonomia do jornalismo. Por outro lado, é verdade que pessoas pertencentes a minorias ainda são frequentemente tratadas na imprensa com estereótipos e, por vezes, uma camada velada de racismo. “A comunicação é sempre isso: ‘Maxwell traz a vivência da favela.’ Eu sei que isso é uma verdade. Que, em veículos de abrangência ampla, o conteúdo precisa ser mastigado. Mas eu sempre evito falar dessa maneira. Se eu ficar sublinhando só isso, não se fala de outras coisas”, ele explicou.

Alexandre também é desconfiado da crítica especializada. “Sem soberba, eu acho a galera, de uma maneira geral, muito ruim de crítica.” Ele não citou nomes ou veículos de imprensa. Mas disse que receberia de bom grado o feedback de pintores que admira, como Lucas Arruda e Paulo Nazareth. “Se um mano desse fala do meu trampo, eu vou ouvir com atenção.”

Alexandre é influenciado pelas reações que colhe dentro do ateliê, principalmente dos diretores de sua equipe, Raoni Azevedo e Lucas Tolezano, amigos que fez na faculdade de design na PUC-Rio. Mas, quase sempre, costuma seguir sua intuição. “Isso é um pouco perigoso, mas eu não acho que seja um egocentrismo. Ou que eu sou intocável. O perigo disso é que eu tô muito legitimado. Mas o bom é que tenho pessoas perto de mim em que eu confio. O moleque olha e fala: ‘Isso é um crime.’ A gente sempre se tratou na base da gastação.”

Sua política de relações públicas é, segundo ele, pautada pela “radicalidade”. Pelo embate. “Para eu me ver fora desse estigma, não tem como eu preservar os outros.” Parte disso deriva de sua inconformidade com a manutenção do estado das coisas. Parte é inspirada na postura de rappers. E parte tem a ver com Caetano Veloso. “Eu acho que sim, bebo um pouco da radicalidade do Caetano, mas não sou assim por conta dele, ou do Kanye [West]. Acho que essa é a minha personalidade.” Jay-Z também entra nessa mistura: “Quando ele pum, rá, faz aquilo no Grammy, eu ratifico mais ainda meu comportamento.” Alexandre se refere à alfinetada que o rapper deu recentemente nos jurados da premiação, lamentando que Beyoncé, sua esposa, já se saiu vitoriosa de 32 categorias, mas nunca em “Álbum do Ano”. 

A belicosidade cobra seu preço. “Vou fazendo os movimentos, mas eu também fico em cima do muro, porque é um bagulho que realmente divide as pessoas. E me divide também. Cria um clima de tensão com a minha equipe, com os diretores [do estúdio] e galeristas.”

Alexandre se incomoda com o que ele considera ser uma pasmaceira do mundo das artes. “Tudo vai virando poesia, vai virando esquema, metáfora, e nada acontece, o campo não avança.” Em uma de suas pinturas da série Novo Poder: Passabilidade, Miss Brasil, ele parece dialogar com Rosa e Azul (1881), pintura célebre e muito parodiada de Pierre Renoir. Vê-se a mesma pincelada curta, assim como as duas figuras no centro mas, nesse caso, uma veste azul e a outra, verde. No lugar da tela, o papel pardo. Em vez das duas crianças loiras, filhas da burguesia francesa, posam dois personagens sem gênero claro, de boina e minissaias. Em uma das pinturas que será exibida em São Paulo, a mesma pincelada aparece em um casaco felpudo bege, vestido por uma pessoa negra, de cabelos loiros trançados.

 

O corpo de trabalho de Maxwell Alexandre não é só pictórico. Ele trabalha com outras linguagens, como a performance e a música. Lançou, em 2020, o álbum Anjo Maxwell. É difícil categorizá-lo em um gênero musical. São composições em sua maioria curtas, gravadas ao som de um teclado. A capa diz: “álbum religioso para edificar fé de artista.” Ainda este ano, Alexandre pretende lançar um segundo álbum, intitulado Da Vinci. O nome não é uma homenagem ao mestre renascentista, e sim a um programa de edição de vídeo que ele usou para produzir o novo trabalho. “Mas de alguma maneira, pode ter a ver com o pintor. Porque no álbum, eu falo de arte, religião e militarismo.” O álbum terá quarenta faixas, ele diz.

Ao final da conversa, perguntei a Alexandre se poderia tirar uma foto sua. Ele negou. Disse que a roupa que vestia – short e camiseta branca, manchados de tinta à moda dos pintores – não estava legal. Insisti, explicando que o propósito era apenas registrar o momento, porque a luz estava bonita. Novamente ele disse que não. 

Pouco depois, enquanto eu esperava o elevador, Alexandre puxou papo de forma tímida e perguntou se eu ia pular Carnaval. Devolvi a pergunta a ele. “Antigamente, eu não gostava real. Hoje em dia vejo valor, acho maneiro.” No ano passado, ele assistiu aos desfiles do Grupo Especial na Marquês de Sapucaí. Gostou, mas não quis repetir a dose este ano. Também não saiu às ruas. Ficou no estúdio. “Mas um dia, ainda quero pular Carnaval.”

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