O universo de Marcelo
Um dos 4,8 milhões de desalentados do país, motorista vê seu mundo encolher ao perder o emprego
Desde que perdeu o emprego de motorista de ônibus, há dois anos, Marcelo Delbons Lopes, de 41 anos, viu seu mundo se estreitar dia após dia. Morador de Duque de Caxias, a 27 quilômetros do Centro do Rio, ele gastou em um ano toda a reserva que tinha acumulado na busca por nova colocação. Quando as economias acabaram, restringiu sua procura ao entorno de Caxias, e seu horizonte passou a ser até onde pudesse ir a pé ou de bicicleta porque já não podia pagar as passagens.
Há seis meses, desistiu de procurar emprego, e entrou para as estatísticas dos desalentados (os que sequer procuram emprego, por falta de oportunidade) elaboradas pelo IBGE, que somavam 4,83 milhões de pessoas em todo o país no final do segundo trimestre deste ano. O Rio de Janeiro está bem na estatística oficial, como o segundo estado com a menor taxa de desalentados do país (1,2% da força de trabalho, contra a média nacional de 4,4%), mas no universo de Delbons esse dado parece fake news.
Acostumado, como motorista de ônibus, a percorrer uma média diária de quase cem quilômetros em idas e vindas pelas ruas de Duque de Caxias, Delbons viu seu mundo encolher e passou a viver praticamente restrito aos quarteirões próximos de sua casa. O homem que circulava sem parar – antes do ônibus, dirigiu caminhões de coleta de lixo para uma empresa terceirizada da prefeitura – ficou cada vez mais confinado na nova rotina. Ao descrever para mim seu medo e insegurança, desabou em choro convulsivo.
O motorista mora com a mãe e a irmã em um bairro de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, chamado Jardim Leal. O nome é uma referência ao português Francisco da Costa Leal, que loteou sua fazenda nos anos 60 e batizou cada rua com o nome de um parente. Mas, percorrendo suas ruas e ouvindo seus moradores, tem-se a dimensão de como a vida pode ser desleal.
Por causa do desemprego, Marcelo adiou os planos de se casar e de constituir família. Tendo sido criado por mãe solteira, que sustentou os filhos como faxineira, ele decidiu que só constituiria família quando tivesse uma situação financeira estável, e os planos de casamento foram adiados. “Já não sei se terei filhos algum dia. Não quero que passem pelo que estou passando”, prosseguiu.
A falta de perspectivas no mundo de Marcelo está espelhada no matagal que cerca a única escola de qualificação técnica existente no bairro, o Centro Vocacional Tecnológico Olavo Bilac, inaugurado pelo governo estadual em 2009. Com a crise nas contas públicas do estado do Rio, a escola – projetada para formar 500 alunos por ano – parou de funcionar.
“Olho para os lados e só vejo pessoas em situação como a minha”, disse-me o motorista apontando para três vizinhos de bermudas e chinelos, igualmente desempregados, que examinavam o motor de um velho carro estacionado na rua. Marcelo, como os três, concluiu o ensino médio. O projeto de entrar para a faculdade naufragou. Quando estava empregado, as longas jornadas de trabalho o deixavam sem energia. Depois que foi demitido, não tinha dinheiro para pagar os estudos. “O diploma de nível médio não vale nada na hora de disputar um emprego”, constatou.
O desemprego prolongado deixa marcas visíveis no bairro. O primeiro sinal é a quantidade de homens desocupados, conversando em pequenas rodas nas esquinas, e o número de jovens sentados nas ruas ou jogando futebol nas quadras da única praça da localidade, chamada Amajal. Outro indicador são as soluções paliativas criadas pelos moradores para obterem renda por ali mesmo, sem sair do bairro. Quase todas as casas oferecem um serviço ou produto. Algumas famílias transformam varandas e garagens em pontos de venda de açaí, ovos, roupas de cama, vestuário e até de bujões de gás.
Marcelo Delbons achou que tinha descido ao último degrau do padrão de vida quando passou a fazer bicos como ajudante de pedreiro. Um vizinho aposentado o chamou para ajudar na construção de um cômodo e pagou 1 mil reais pelo trabalho. Com o dinheiro, ele comprou uma lavadora de alta pressão e um aspirador de pó de uso domésticos e começou a lavar carros na rua, em frente à sua casa. A clientela só aparece nos finais de semana, quando a praça é tomada por pessoas que vão jogar futebol e fazer churrasco. Mas, todas as manhās, ele cumpre a mesma rotina: às 8 horas, varre a rua na frente de casa e posiciona seu material de trabalho sobre a calçada, à espera de um freguês eventual.
Delbons diz que seu lazer é ver televisão e jogar pelada com os vizinhos. Não se lembra da última vez que foi ao cinema. “Comer fora, nem pensar. Na semana passada, eu e uns amigos fizemos X-Tudo em casa. Gastamos 75 reais em pão, hambúrguer, batata palha, ovos e bebidas. E sobrou metade dos produtos que está na geladeira para o próximo evento. Mais do que isso, não posso pagar.”
Ao circular por Jardim Leal, o acaso me levou ao “doutor pela universidade do balcão” Luiz Carlos de Souza, de 58 anos, proprietário da loja Ludil Materiais de Construção. Ele começou a trabalhar no estabelecimento com o pai, aos 10 anos, e diz ter acompanhado a evolução do bairro a partir de seu ponto privilegiado de observação, o balcão, e do relacionamento que construiu com os moradores.
Segundo ele, no universo em que Marcelo está inserido, há cada vez mais adultos em idade produtiva na dependência das aposentadorias de pais e avós. Também cresceu a quantidade de homens em casa, cuidando das crianças e dos afazeres domésticos, enquanto as mulheres saem para o trabalho. “Com a crise, ficou mais difícil para os homens. As mulheres têm mais facilidade de arrumar dinheiro. A diária de faxineira chega a 150 reais na Zona Sul do Rio de Janeiro. A diária de um auxiliar de pedreiro por aqui não chega a 100 reais, e raramente surge uma oportunidade de trabalho.”
Do balcão, ele diz que observa todos os dias as crianças passarem uniformizadas em direção às escolas públicas e voltarem muito antes do tempo previsto, por falta de professores. E, ainda, que há mais velhos e estudantes nos ônibus do que trabalhadores. “Preste atenção nas pessoas que vão para o Centro de Caxias. São os que não pagam passagem.”
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