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O veneno de Bororó

Das poucas canções que Bororó fez, pelo menos duas são jóias raríssimas. Da Cor do Pecado e Curare foram sucesso do ano nas vozes de Sílvio Caldas e Orlando Silva, nos idos 1939 e 1941. Parcimonioso na composição, desbragado na boemia, Vinícius de Moraes o descreveu, numa crônica, como um sujeito de bigodinho que falava pelos cotovelos.

Paulo da Costa e Silva | 31 out 2014_15h52
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Das poucas canções que Bororó fez, pelo menos duas são jóias raríssimas. Da Cor do Pecado e Curare foram sucesso do ano nas vozes de Sílvio Caldas e Orlando Silva, nos idos 1939 e 1941. Parcimonioso na composição, desbragado na boemia, Vinícius de Moraes o descreveu, numa crônica, como um sujeito de bigodinho que falava pelos cotovelos. Bororó tinha uns quarenta anos quando as compôs. Nos dois casos, a equação de base é simples: um narrador exalta o poder de sedução de uma mulher. Essa mulher, contudo, não é a rarefeita Deusa da Minha Rua, com seus “olhos onde a lua costuma se embriagar”, na clássica valsa também de 1939. As musas de Bororó já estão fora do arquétipo romântico de mulher que reinou em nossa cena musical até o fim dos anos 1950. Tampouco se confundem com a mulher-coitada, a mulher-eterno-perdão da Camisa Amarela de Ary Barroso – para ficar ainda no mesmo 1939. Bororó não vai até a lua e nem desce até o chão. Prefere ficar na superfície da pele. Para ser mais exato, da pele morena. O verso que abre Da Cor do Pecado é quase um manifesto disso: “Esse corpo moreno, cheiroso e gostoso que você tem/ É um corpo delgado, da cor do pecado/ Que faz tão bem”. Numa só tacada – a primeira! – a satisfação de pelo menos quatro, dos cinco sentidos: visão (moreno), olfato (cheiroso), paladar e tato (gostoso). É o império do sensual. A audição vem depois, e vem para amenizar possíveis culpas e revelar a doce “maldade da raça”: “quando você me responde umas coisas com graça, a vergonha se esconde”. Na contramão dos amores platônicos e tristes, a cor e o prazer do pecado mundano. O gozo concreto dos sentidos.

Dois anos depois do Pecado de Bororó, Francisco Alves insistia no velho imaginário romântico e lançava mais um sucesso: Eu Sonhei Que Tu Estavas Tão Linda. Na letra de Lamartine Babo, o narrador sonha juras de amor trocadas com sua musa ao som orquestral  de “valsas dolentes”, tocadas por violinos “numa noite de raro esplendor”. A linguagem é empolada, bem ao sabor do chique da época, e as atitudes do herói, cavalheirescas –  “tomei teus braços, fomos dançando, ambos silentes”. A música é linda, e parte de seu encanto vem da absoluta coerência interna, do jogo de referências entre elementos poéticos e musicais que remetem ao mesmo imaginário. Feita sob encomenda para uma opereta inacabada que se chamaria Viva o Amor, daí deriva seu tom narrativo e o compromisso com o ideal do amor romântico. Não à toa, o gênero escolhido foi a elegante valsa européia. O cenário da pequena história, um salão – não de gafieira, mas de valsa. Ora, dentro desse salão, que existe no sonho do narrador, toca uma valsa, da qual somos informados pela própria canção – que também é uma valsa. Ou seja, há uma valsa dentro da valsa – um joguete de espelhos que não deixa de nos remeter ao luxo espelhado de imagens multiplicadas pelos espelhos de salões elegantes. É sutil, sim, mas são esses pequenos encaixes os responsáveis pelo arrebatamento das criações poéticas. Quanto à musa, a única indicação que temos de sua aparência é que ela usa um “vestido de baile”. A julgar pelos modelos da época, trata-se de uma musa muito bem vestida, o corpo quase inteiro coberto. Mas a tez de sua pele também pode ser adivinhada pelo anuncio singelo do narrador de que “era branco, todo branco o meu amor”. A repetição enfática do “todo branco” aponta para um horizonte de pureza, de amor singelo, não-carnal, que exclui possíveis malícias e ambiguidades (incluindo a cor da pele). O amor é branco; e a musa também. Valsa, salão, vestido de baile, violinos, orquestra, cor branca: índices de civilização no Brasil dos anos 1940. Tudo se encaixa. Os elementos respondem-se mutuamente, fazendo com  que o tecido de significados se agite o tempo todo. A letra de Lamartine parece perfeita: ajusta-se à melodia como um sapato feito sob medida para pés delicados.

Pois o mesmo ano de 1941 testemunhou outro sucesso de rádio em tudo oposto à valsa de Lamartine. Foi a voz macia do ex-trocador de ônibus Orlando Silva que deu forma cantada a Curare, a segunda pérola de Bororó. Nela, como em Da Cor do Pecado, a mulher é investida de um grande poder de sedução. Dessa vez, contudo, é associada ao veneno de intensa ação paralisante e letal usado pelos índios da América do Sul. Mas não se trata da típica mulher fatal, arrebatadora. Não. O curare é veneno suave, que nos mata não por espasmos e contrações, mas por relaxamento. Morte esparramada, preguiçosa. Tudo na canção aponta para esse torpor, que nela se confunde com a própria cadência da carícia dengosa. É como se quisesse causar no ouvinte o efeito do veneno dos trópicos. Para tanto, a melodia utiliza uma gama pequena de notas, sem grandes variações entre graves e agudos, mantendo-se na superfície. Também os valores de tempo são reduzidos, aproximando-a do tom da conversa. Não é preciso esforço para cantá-la. Alguns sussurros e ela tende a brotar naturalmente dos lábios. Na letra, o abuso de diminutivos reforça o caráter íntimo e relaxado da canção. Não há salões, bailes, vestidos, violinos. Apenas o fluxo cutâneo. Curare não busca o sonho luxuoso das valsas, mas a superação da distância, a intimidade total, a fusão do amante na amada. A própria letra parece se corrigir quando emprega, lado a lado, a palavra em “estado de dicionário” e sua versão “diminuída”: “que é pra machucar minha dor, nega, neguinha/ tudo, tudinho/ meu amorzinho”. A voz prolonga os “i”s dos diminutivos e depois se liquefaz nas consoantes anasaladas (em “nh”), tingindo de afeto molenga as palavras. Harmonia e levada – delicadas, com pequenas variações – seguem a maciez do conjunto. Preguiça, volúpia e beleza. Canção-narcótico finamente construída, Curare é mais dolente do que as “valsas dolentes” da letra de Lamartine.

Sua excepcionalidade, no entanto, vai além. Há algo que faz dela mais do que uma simples canção comercial. Algo que a faz participar intensamente do movimento das idéias de seu tempo. De fato, tanto Da Cor do Pecado quanto Curare celebram o corpo mestiço, amorenado, trigueiro. Mas a segunda vai ainda mais longe que a primeira: expõe claramente as matrizes desse corpo (“esses óios de índia”, “toda Bahia”, “flor do mocambo, da gente de cor”), o qualifica em toda a sua “doce pornografia” (como diria o poeta Drummond) e finalmente o associa à própria idéia de Brasil. O “curare no corpo que é bem Brasil”. Definitivamente o amor de Bororó não é “branco, todo branco”. É fruto de uma “misturação”; de um “amor confusão”. Estamos em 1941. Faz pouco tempo (uns 8 anos) que Gilberto Freyre publicou Casa Grande & Senzala. O povo mestiço, desqualificado pelo cientificismo do século XIX, é aos poucos reabilitado, e a música popular, junto com o futebol, tem um papel central nesse processo de desrecalque. As matrizes negras e indígenas de nossa formação, até então a “causa” de nosso atraso, passam a ser valorizadas como pilares de uma cultura forte e singular. Curare reflete com brilho a mudança na auto-imagem do Brasil. E a lança nos termos de uma elegância nova, altamente sensual, livre, gozosa, íntima. “Com essa boquinha vermelhinha rasgadinha” é uma das frases poético-musicais de que mais gosto. Balançada entre duas notas, cheia de jogo de cintura, ela é simples e rara. Como o “beijo molhado escandalizado” de Da Cor do Pecado, supera a oposição entre vulgaridade e elegância, excesso e acanhamento, banalidade e nobreza. É tudo ao mesmo tempo.

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