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Os afro-sambas de Baden e Vinícius

Grande parte das anedotas que cercam os Afro-sambas de Baden Powell e Vinícius de Moraes remetem a uma zona de penumbra. Uma zona que em tudo difere da claridade que marca o imaginário da bossa nova.

Paulo da Costa e Silva | 18 mar 2015_17h16
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Grande parte das anedotas que cercam os Afro-sambas de Baden Powell e Vinícius de Moraes remetem a uma zona de penumbra. Uma zona que em tudo difere da claridade que marca o imaginário da bossa nova. Por exemplo: conta-se que Vinícius e Baden se conheceram “nos fundos da boate já vazia”, como disse o poeta numa de suas entrevistas; ou seja, num espaço à parte, já distante dos holofotes, das luzes, do palco, do foco principal. Os relatos do encontro são corriqueiros, indefinidos, quase sem aura, diferentes daqueles erigidos sobre o (esse sim famoso) encontro de Vinícius com Tom Jobim. No caso deste último, tudo aconteceu às claras, no salão de um badalado restaurante (o Villariño), com testemunhas famosas (Lúcio Rangel), um convite grandioso (Vinícius queria um parceiro para compor a trilha do espetáculo Orfeu da Conceição), e até momentos de comic relief (a sensacional gafe do ainda pouco conhecido Jobim, perguntando ao renomado poeta e diplomata se havia “um dinheirinho” na empreitada para a qual era convidado). A “zona de penumbra” dos Afro-sambas transparece também na lembrança do local onde a maioria deles foi criado: o recolhimento do apartamento de Vinícius, no Parque Guinle, com janelas cercadas por grossas cortinas que impediam a passagem da luz, gerando uma espécie de noite contínua. Ali Baden entrou (ou antes “mergulhou”), em meados de 1962, e só saiu três meses depois, sem perceber que passara de visitante a morador do local. De fato, os Afro-sambas parecem ter sido compostos numa única e longuíssima noite, dado o sentido de expansão e embaralhamento temporais. Tal sentido é também evocado nas recordações de Baden sobre a gravação que resultou no antológico disco: “Foi gravado num daqueles dias em que caía um temporal histórico – o estúdio estava transbordando de água e chuva – cantávamos e tocávamos em cima de algumas caixas de cerveja e uísque que há muito já havíamos consumido – estamos todos com muita raça mas também bastante bêbados. Poucos profissionais – até as namoradas, mulheres e amigos participaram da gravação”.

Enquanto a bossa nova preparava seu triunfal salto para a conquista do mainstream internacional, com o concerto do Carnegie Hall – tratado como caso de diplomacia pelo governo brasileiro da época – Baden e Vinícius recolhiam-se no útero de um apartamento e abandonavam-se num transe criativo sem fim. Deixavam a sala de visitas, ocupada pela sofisticação mundana da bossa nova, e adentravam os espaços mais recônditos da casa, para finalmente encontrar o chão de terra batida, ao som de batuques, palmas e ásperos coros de vozes – o “terreiro originário” da música popular brasileira. De algum modo, Vinícius retornava ao mito do Orfeu Negro, só que agora não pelo lado das valsas e modinhas, mas pelo lado dos pontos de macumba. Os temas de Baden conduziram sua poética numa direção nova, para ainda mais longe da poesia escrita. Uma direção menos discursiva e argumentativa, impessoal, atravessada pelo anonimato do canto coletivo, pelo adensamento de repetições circulares e extáticas – a direção do transe. Vinícius soube desaparecer no meio das letras. Sumiu sob a máscara de Xangô. Celebrou o alegre aniquilamento individual nos braços azuis de Iemanjá. Depositou oferendas no altar dos orixás. Tornou-se o meio (o medium) de outras forças. Tocou a misteriosa substância do mito. As melodias envenenadas de Baden, repletas de violência modal, forçaram no poeta uma expressão mais concisa e direta, mais crua. Até hoje fico espantado com o “nhém, nhém, nhém” de Bocoché – o contra-canto zombeteiro qual um exú, saudando com alegria infantil o jogo contínuo entre vida e morte. E o que dizer da insistência algo cruel do “vai, vai, vai, vai” do Canto de Ossanha? Ou dos ardentes pedidos de Xangô para que o façam sofrer e morrer de amor? Ou ainda da “mulher-labareda” que literalmente “mata” de amor? Tudo isso é o oposto da clareza apolínea da bossa nova, de sua levíssima definição plástica. De seu sonho civilizatório. É, antes, algo que diz respeito à grande zona de penumbra dos impulsos mais básicos, das forças mais elementares. Ali onde as oposições ainda não foram sedimentadas, onde vida, morte, sofrimento, alegria, prazer, dor, natureza e cultura formam um só fluxo. Um espaço distante da sala de visitas.

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