Os bilhões da Amazônia que o governo não gasta
Ministros de Bolsonaro pedem dinheiro no exterior para combater mudança climática mas entesouram 4,5 bilhões de reais destinados a cortar emissão de gases do efeito estufa
Chefe da delegação brasileira na conferência do clima em Glasgow, o ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, levou um “recado” à COP 26: o Brasil contribuiria no combate ao aquecimento global, mas os países ricos teriam de aumentar o financiamento ao corte de emissões de carbono. Ao repetir o mantra da diplomacia climática de Bolsonaro, concentrada em pedir mais dinheiro externo, Leite omitiu que o governo mantém parados mais de 4,5 bilhões de reais de doações internacionais já feitas e de recursos do Fundo Clima. É um dinheiro que deveria financiar a chamada descarbonização da economia, com a redução de emissões de gases do efeito estufa.
Por meio de pedidos com base na Lei de Acesso à Informação ao BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e ao Ministério do Meio Ambiente, a piauí obteve o saldo disponível para financiar a redução das emissões no Brasil. O valor é equivalente a mais de treze vezes a previsão de gastos da União com o combate ao desmatamento em 2022, segundo o projeto de lei orçamentária. O desmatamento é a principal fonte de emissão de gases do efeito estufa no Brasil.
Os 4,5 bilhões de reais vêm em grande parte de doações internacionais por resultados obtidos no combate ao desmatamento antes do início do governo Bolsonaro. Agora, o dinheiro está praticamente parado, sob a gestão do BNDES e do ministério, sem ajudar a combater a mudança climática.
Só o Fundo Amazônia tem 3,1 bilhões de reais para novos projetos, ainda que as doações estejam suspensas desde 2019, informou o BNDES. O Fundo Clima, também gerido pelo banco, acumula 960 milhões de reais de repasses do Orçamento da União para novos contratos. Somam-se ainda ao saldo mais de 500 milhões de reais (96,5 milhões de dólares) de uma doação do Fundo Verde do Clima (GFC, na sigla em inglês), que deveria bancar programa de pagamentos por serviços ambientais e remunerar a preservação da floresta em pé, o Floresta+.
Embora o dinheiro desse fundo das Nações Unidas tenha sido repassado ao governo brasileiro no início de 2019, no segundo mês do atual mandato, os primeiros desembolsos estão previstos apenas para 2022, depois de vários adiamentos. A piauí pediu que o Ministério do Meio Ambiente comentasse o atraso no fechamento dos contratos e o fluxo lento da liberação do dinheiro, mas não obteve resposta.
As doações internacionais feitas até aqui vieram como uma espécie de prêmio pelos resultados obtidos em 2014 e 2015, como é o caso do Fundo Verde do Clima. Ou foram condicionadas à queda do desmatamento, caso do Fundo Amazônia. Agora, a perspectiva de mais um recorde de desmatamento na Amazônia em 2021, acima de 11 mil km2, complica a retomada do fluxo de dinheiro estrangeiro. A divulgação da taxa oficial do ano, medida entre agosto de 2020 e julho de 2021, vem sendo adiada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, ao qual está subordinado o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), responsável pelo dado. Questionado pela piauí sobre o motivo da demora na divulgação, o ministério não se manifestou.
“Com essa mistura de incompetência com descaso, o governo não tem legitimidade para demandar mais recursos”, comentou Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima, ao ver os dados a que a piauí teve acesso. Ela participa da conferência do clima em Glasgow.
Um decreto de Jair Bolsonaro publicado em abril de 2019 provocou o bloqueio tanto de novas doações ao Fundo Amazônia como de novos contratos com o saldo remanescente de doações bancadas pelos governos da Noruega e da Alemanha. O decreto extinguiu vários colegiados no governo e levou à extinção do comitê orientador do fundo, responsável por estabelecer critérios para o uso do dinheiro com a participação da sociedade civil e de governos estaduais da região. Os doadores foram pegos de surpresa e discordaram da mudança na governança do dinheiro. Esse ainda é um obstáculo para a retomada dos contratos e das doações.
O Fundo Amazônia foi criado em 2008 para financiar o uso sustentável da floresta e o combate ao desmatamento. No ano seguinte, o Brasil começou a viver um período de uma década de taxas mais baixas de devastação da floresta. O fundo financiou 1,8 bilhão de reais em projetos. A última doação aconteceu em dezembro de 2018, em valores já reduzidos em resposta ao ritmo do desmatamento, que acelerava. Segundo o BNDES, o fundo tem 447 milhões de reais para novos desembolsos de projetos contratados até 2018 e “aproximadamente” 3,1 bilhões de reais disponíveis para novos projetos, quando a análise das propostas for retomada.
Menos de duas semanas antes do início da COP26, em Glasgow, o novo embaixador da Noruega no Brasil, Odd Magne Ruud, afirmou que o Brasil precisa de um plano concreto para o combate ao desmatamento, além de entrar num acordo sobre um estilo de gestão do comitê do Fundo Amazônia. A Noruega bancou mais de 90% dos aportes ao fundo. As declarações foram dadas após um encontro com o vice-presidente Hamilton Mourão. O general preside o Conselho Nacional da Amazônia Legal, que assumiu o comando das ações do governo em relação à floresta. Uma das prioridades do conselho é a retomada das doações do Fundo Amazônia, sem resultados até aqui.
Quando estava em pleno funcionamento, o Fundo Amazônia ajudou a financiar o combate ao desmatamento na Amazônia. Antecessor do chefe da delegação brasileira na cúpula do clima, o ex-ministro Ricardo Salles quis mudar o destino do dinheiro, acusou supostas “inconsistências” nos contratos, nunca confirmadas, e chegou a sugerir que as doações internacionais financiassem indenizações a proprietários rurais com terras em áreas protegidas.
Afastado do cargo depois de denúncias de apoio à extração ilegal na Amazônia, Ricardo Salles batizou de “maior programa de pagamentos por serviços ambientais do mundo” o Floresta+, cujo início seria financiado com dinheiro recebido do Fundo Verde do Clima, criado no âmbito da Convenção do Clima da ONU. O repasse foi anunciado em fevereiro de 2019 como prêmio pelos resultados obtidos no combate ao desmatamento durante o governo Dilma Rousseff. Mas, até agora, o programa que deverá remunerar quem protege a floresta ainda não saiu do papel.
Em resposta a um pedido com base na Lei de Acesso à Informação, o Ministério do Meio Ambiente explicou que a organização do programa consumiu mais de dois anos e que os critérios de escolha dos beneficiários ainda estão em elaboração. “Em termos gerais, o projeto beneficiará pequenos produtores rurais da Amazônia Legal e que possuam seu Cadastro Ambiental Rural validado por órgão competente”, afirmou o ministério, sem mencionar indígenas e comunidades tradicionais entre os primeiros beneficiários. O ministério atribuiu à pandemia da Covid-19 os sucessivos atrasos; a nova previsão para os primeiros desembolsos é o início de 2022.
No Fundo Clima, o acúmulo de dinheiro que deveria financiar a redução de emissões e a adaptação à mudança do clima se deve também a outro decreto presidencial, editado em novembro de 2019. Nele, Bolsonaro mudou as prioridades na aplicação do dinheiro e estabeleceu como prioridade o saneamento básico e o tratamento de lixo nas cidades.
As reuniões do comitê gestor do fundo só foram retomadas em julho de 2020, depois que partidos de oposição recorreram ao Supremo Tribunal Federal. Pressionado, o governo transferiu ao BNDES em dois meses 580 milhões de reais, depois de dois anos sem repasses. Por meio da Lei de Acesso à Informação, o banco informou que o saldo para financiar novos projetos é atualmente de 960 milhões de reais.
A última reunião do comitê gestor, em junho deste ano, aprovou o plano anual de aplicação de recursos. Em 2021, só três projetos foram aprovados e ainda não tiveram desembolsos. Dois deles tratam de geração de energia solar, um terceiro trata da produção de biogás a partir de resíduos da cana-de-açúcar. Projetos associados à produção de biogás a partir da cana têm destaque entre os onze contratos fechados desde a posse de Bolsonaro, com taxas fixas de juros entre 2,55% e 4,6% ao ano. O maior desses contratos é com a Cocal Energia.
O Fundo Clima foi criado pela Lei da Política Nacional sobre Mudança do Clima, de 2009. Essa lei estabelecia meta de desmatamento na Amazônia de 3,9 mil km2 em 2020. Mas a taxa do ano passado foi de 10,9 mil km2, estourando a meta. Esse número deve ser superado neste ano, em mais um recorde de devastação da floresta. Para o ano que vem, os três primeiros meses de coleta da taxa anual (entre agosto e julho) já somam 2,7 mil km2 de alertas de desmatamento, colocando em risco a meta de Bolsonaro de conter o desmatamento a 8,7 mil km2 no último ano do mandato.
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