O desaparecimento do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Araújo Pereira na região do Rio Javari, no Amazonas, chamou a atenção para um fenômeno que vinha sendo apontado pelos pesquisadores da área de segurança pública: a superposição de redes criminosas na região, graças a uma teia de relações ilícitas sobrepostas que conectam os crimes ambientais com as redes de narcotráfico. Até agora, ainda não se sabe o que aconteceu com Phillips e Pereira. Mas pesquisas recentes sobre a criminalidade na Amazônia mostram que, na região, o crime é multidimensional, atuando em várias escalas e conectando atividades diversificadas. É uma rede criminosa transnacional, pois conecta grupos que atuam para além do território brasileiro, mas também hiperlocal, graças à presença ativa de grupos nativos da região. No Javari não é diferente: a área é dominada pela facção Os Crias, que atua na Tríplice Fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia.
A Amazônia brasileira desempenha papel central para o mercado da droga, tanto em nível nacional, quanto em nível internacional. O Brasil, além de se destacar como o segundo maior mercado consumidor de cocaína do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, é uma importante área de trânsito que conecta essas redes aos mercados da África e da Europa, completando assim uma complexa interação global dos fluxos de cocaína de origem andina.
As facções do crime organizado que atuam no Brasil sabem que a Amazônia tornou-se estratégica para a geopolítica do narcotráfico, graças a essa relação transfronteiriça que envolve múltiplos agentes, cada um com sua função específica no universo do crime. Facções da região Sudeste do Brasil, a exemplo do Comando Vermelho (CV), do Rio de Janeiro, e do Primeiro Comando da Capital, de São Paulo, passaram então a ter interesse em atuar nas áreas de fronteira, bem como em cidades consideradas importantes para a fluidez do negócio da droga. Buscam o controle das principais rotas do tráfico de drogas na Amazônia.
Nessa expansão amazônica, as grandes facções contam com o auxílio das facções locais, que dominam e compreendem melhor os mecanismos de funcionamento das redes ilegais na região. O Amazonas e o Pará, grandes “corredores” de circulação de mercadorias ilícitas (drogas, madeiras e minérios contrabandeados), tornaram-se o lócus de surgimento de grupos criminosos regionalizados, tais como Família do Norte (FDN-AM) e Comando Classe A (CCA-PA).
O estado do Amazonas é a grande porta de entrada da cocaína de origem peruana e de skank de origem colombiana, pois detém as mais influentes rotas do tráfico de drogas: a do Rio Solimões e a do Rio Javari. A rota do Solimões se tornou palco de disputas e conflitos envolvendo piratas da região de Coari, membros da FDN e integrantes do PCC. Esses últimos, que detinham o controle da área, chegaram até a região através do Mato Grosso e do Acre, fazendo várias alianças ao longo do percurso.
A rota do Rio Javari, onde o jornalista e o indigenista foram vistos pela última vez, é hoje uma das mais complexas pelo fato de ter a presença da facção Os Crias – um grupo criminoso que surgiu no ano passado, de uma dissidência de membros da FDN. Os Crias se estabeleceram na Tríplice Fronteira (Brasil-Peru-Colômbia) e controlam a mais importante rota utilizada por narcotraficantes peruanos. Além disso, o Vale do Javari convive com uma série de problemas de segurança pública que atingem as comunidades indígenas e os ribeirinhos da região, alvo constante de ataques de garimpeiros e madeireiros contrabandistas. No Pará, a partir da cidade de Altamira, vale destacar uma grande área onde rios, estradas e aeroportos particulares são utilizados por narcotraficantes para transportar cocaína. Em especial, Altamira, uma área de disputa entre facções rivais, principalmente com a chegada do CV, rival do CCA.
A fronteira amazônica, sobretudo nos limites com Bolívia, Colômbia e Peru, é hoje uma zona de grande instabilidade na área da segurança. É lá que as redes ilegais do tráfico de cocaína se integram e se conectam, beneficiadas pela interação espacial que envolve os rios e as cidades da região. As facções nacionais e internacionais se relacionam em redes, criando uma complexa e completa estrutura organizacional de ilícitos relacionados tanto ao narcotráfico quanto aos crimes ambientais. Essa dinâmica afeta negativamente os povos da floresta, expostos cotidianamente a uma dinâmica de violência, e fragiliza as políticas de segurança pública propostas para a região.