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    Ema e filhotes no meio de uma área de cultivo em Mato Grosso - Foto: Ricardo B. Machado

questões ambientais

Os números não mentem

Ao contrário do que diz Bolsonaro, o Brasil não é o país que mais protege a natureza

Ricardo B. Machado, Rafael Loyola e Ludmilla M. S. Aguiar | 02 out 2020_17h21
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As mais antigas civilizações já adotavam a prática de manter espaços reservados para a proteção dos recursos naturais. Na China, as montanhas são consideradas sagradas desde o século II a.C. e sua conservação sempre esteve relacionada à saúde e à fertilidade humana. No Japão feudal, entre os séculos XII e XVII, o imperador elegia os daimiôs para protegerem as florestas imperiais, entre outras responsabilidades. As áreas protegidas representam até hoje a estratégia mais eficaz e mais amplamente utilizada para a conservação dos recursos naturais, da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos.

Mesmo sendo reiteradamente criticado interna e externamente, o Brasil está caminhando na direção oposta nos últimos dois anos. O governo federal vem desmantelando seus órgãos ambientais, diminuindo a fiscalização e o combate ao crime ambiental, reduzindo a aplicação de multas, sendo complacente com setores que desmatam ilegalmente e explicitando total descaso frente às demandas dos povos indígenas. Quando questionado, o governo brasileiro parece ter uma resposta ensaiada muito utilizada em teorias conspiratórias que imaginam que os Estados Unidos pretendem impedir o crescimento do agronegócio brasileiro, por exemplo. Criticado por não proteger o meio ambiente, Jair Bolsonaro rebate acusando os Estados Unidos e os países europeus de terem exaurido boa parte dos recursos naturais no passado e de agora não deixarem o Brasil fazer o mesmo. Nessa visão distorcida, destruir a natureza é o único caminho para o crescimento do país. Por outro lado, o governo atual insiste em afirmar que somos o país que mais preserva a biodiversidade no mundo. Mas será que é isso mesmo?

Quase todos os países do mundo criam e mantêm áreas protegidas em seus territórios (no Brasil, elas são chamadas de unidades de conservação). Estima-se que haja mais de 260 mil áreas protegidas em 245 países do mundo. Esse conjunto representa aproximadamente 15% da superfície terrestre e 7,6% dos oceanos no planeta.22% da superfície do planeta, incluindo continentes e oceanos. O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) mantém uma base de dados global sobre as áreas protegidas que é aberta e acessível a qualquer cidadão ou instituição. A partir dessa lista – também conhecida pela sigla em inglês WDPA –, é possível extrair diversas informações sobre essas áreas, tais como tamanho, localização, categoria de manejo ou ano de criação. Como as informações são padronizadas, é possível fazer comparações entre países ou regiões. Além disso, o cruzamento desses dados com informações socioeconômicas dos países permite responder questões fundamentais.

Aqui, apresentamos duas delas: quais são os países que mais preservam o meio ambiente? Países pobres ou em desenvolvimento protegem mais a natureza que países ricos?

Para responder às questões acima, selecionamos dados da proteção ambiental e das características socioeconômicas das quarenta maiores economias do planeta. Para cada país, compilamos o Produto Interno Bruto (PIB), a renda per capita, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), o tamanho da população, o número de áreas protegidas, o tamanho da área protegida (continental e marinha) e o número de hectares protegidos por habitante.

Como fonte de dados utilizamos a base de dados do Banco Mundial, a base de dados do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas e a base de dados global de áreas protegidas (WDPA). Acessamos também a página da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) para obter os dados de cobertura vegetal dos países considerados. A planilha com os dados compilados por nós está disponível na internet.

Eis as respostas.

Os países com o maior número de áreas protegidas em números absolutos são os Estados Unidos, com 36 283 unidades, seguidos da Alemanha, com 23 102 unidades, e da Suécia, com 20 714 unidades. Nessa conta, o Brasil aparece apenas na 15ª posição, com 3 210 unidades.

Se considerarmos somente as unidades do grupo de proteção integral – que inclui parques, reservas biológicas e estações ecológicas –, a Rússia figura em primeiro lugar, com 7 678 unidades, à frente da Austrália, com 6 243 unidades, e da Suécia, com 4 338 unidades. Nesse ranking, o Brasil ocupa o oitavo lugar, com apenas 643 unidades.

Se considerarmos a proporção de território que os países dedicam à proteção do meio ambiente, Hong Kong é o líder, com 41,9% de seu território protegido, seguido pela Polônia, com 39,5%, e pela Alemanha, com 37,8%. Nessa classificação o Brasil vem em quarto lugar, com 30,3% de sua área continental dedicada à proteção da biodiversidade.

Terra queimada no Parque Estadual de Terra Ronca, em Goiás – Foto: Ricardo B. Machado


Quando tratamos da área total protegida dos países, incluindo tanto a parte continental quanto a marinha, temos em primeiro lugar a Austrália, com 4 532 700 km
2 protegidos, à frente dos Estados Unidos, com 4 329 858 km2, e do Brasil, com 3 567 520 km2. Se considerarmos somente a área continental protegida em valores absolutos, nesse caso o Brasil aparecerá como líder do ranking, com 2 582 478 km2 protegidos.

Por fim, avaliamos a classificação dos países em função da relação entre o total de área protegida e o tamanho da população. De acordo com esse critério, é a Austrália que aparece na frente, com 18 hectares protegidos para cada habitante. Em segundo lugar vem o Canadá, com 3 hectares por habitante, e em terceiro o Brasil, com 1,7 hectares por habitante.

Assim, fica claro que, por diferentes medidas consideradas, o Brasil não é o país que mais protege o meio ambiente no mundo. Só fazendo muita ginástica com os dados seria possível sustentar essa alegação. Para isso seria preciso contabilizar toda e qualquer cobertura vegetal nativa, incluindo áreas que não são formalmente protegidas. Parece que, na conta do governo, entram áreas privadas como as reservas legais e as áreas de preservação permanente (não é possível dizer ao certo, já que os representantes do governo não dizem de onde vêm os números que citam). Essas são áreas que os proprietários de terra são obrigados a manter intactas, conforme determina o Código Florestal Brasileiro. Elas não são consideradas na base de dados do WDPA e, de fato, não estão totalmente protegidas – como mostra o passivo ambiental de 19 milhões de hectares existente nessas áreas.

Ao considerar dados dessa natureza – e para tornar a comparação justa –, teríamos que avaliar a proporção de vegetação nativa remanescente em cada país, deixando claro que isso não implica necessariamente na proteção da biodiversidade. De acordo com dados da FAO, o país com a maior proporção territorial coberta por florestas é a Malásia (88,7%), seguido da Colômbia (86,8%) e da Indonésia (81,4%). O Brasil ocupa a quinta posição, com 70,2% de cobertura vegetal nativa em seu território. Entretanto, dados publicados este ano pela FAO mostram que a América do Sul é a região que mais perdeu vegetação nativa entre 1990 e 2020, com uma média de 4,3 milhões de hectares por década. Por ser o país com a maior cobertura florestal tropical, estamos liderando essa perda de cobertura vegetal. 

Como o Brasil é considerado o país com a maior diversidade biológica do planeta, é possível que o conjunto das áreas protegidas na porção territorial realmente mantenha uma biodiversidade expressiva. Porém, para afirmarmos com certeza, seria necessário dispormos de dados da distribuição e ocorrência das espécies nas áreas protegidas, organizados e disponibilizados pelos órgãos ambientais. Antes disso, é crucial termos programas de inventários sistemáticos no território brasileiro para sabermos minimamente o que estamos realmente protegendo.

É importante salientar que esse patrimônio formado pelo conjunto das áreas protegidas é fruto de um esforço de várias décadas de trabalho por parte dos órgãos ambientais, ao longo de sucessivos governos. O governo atual ainda não criou uma única área protegida federal ou demarcou qualquer terra indígena. Vale a pena ressaltar que muitas das unidades de conservação do Brasil só existem no papel e várias outras são bastante permissivas com relação ao seu uso. É o caso das áreas de proteção ambiental (APAs), por exemplo. Por isso, nossas estimativas de proteção são certamente superdimensionadas.

Com relação à segunda pergunta que queríamos responder, não é verdade que países pobres protegem mais a natureza que os países ricos. Na verdade, o cruzamento dos dados socioeconômicos com a área protegida dos países parece indicar o contrário.

Não há relação entre o tamanho do PIB e a proporção da área protegida em um país, indicando que existem países pobres com ampla proteção do território e países ricos com baixa proteção. Contudo, o valor do IDH está, sim, diretamente relacionado a uma maior proporção de áreas protegidas nos países, indicando que países mais desenvolvidos tendem a conservar mais o meio ambiente em seu território.

Assim, o mais correto seria dizer exatamente o oposto do que vem sendo dito: os países mais desenvolvidos protegem mais o meio ambiente que os países em desenvolvimento. Uma hipótese para explicar esse padrão é que a proteção mais efetiva dos recursos naturais seria fruto de uma maior consciência da população, talvez pelo melhor acesso à educação e cultura, conforme medido pelo IDH.

Dizer que o Brasil é o país que mais protege no mundo é uma falácia. Precisamos considerar que nosso território abriga a maior diversidade biológica do planeta, o que aumenta ainda mais nossa responsabilidade com a proteção ambiental. Por isso, o Brasil deveria almejar ter um bom sistema de áreas protegidas, ou seja, um sistema representativo, diversificado, complementar e inclusivo. Representativo no sentido de proteger adequadamente os diferentes componentes da biodiversidade; diversificado no sentido de ter unidades com diferentes níveis de uso e restrições; complementar no sentido de salvaguardar diferentes ecossistemas e espécies em todo o território nacional; e inclusivo no sentido de permitir que diferentes grupos sociais e etnias possam participar e usufruir dos benefícios gerados pela conservação da biodiversidade.

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Os autores são integrantes da Coalizão Ciência e Sociedade, que subscreve este artigo.

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