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Os voos secretos de Derrite

Em meio à brutalidade policial, o secretário de Segurança de São Paulo agita sua vida social a bordo de aeronaves privadas

09dez2024_12h30

Derrite embarca no jato Bombardier Global 5000, de propriedade compartilhada por empresas de dois amigos: Sérgio Comolatti e Zeca Romano

Na manhã do dia 5 de dezembro, quinta-feira, o secretário de Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite, chegou ao setor de jatos executivos do Aeroporto de Brasília. Eram 9h20. Ele vestia calça social, camisa azul-claro e sapatênis e estava acompanhado do seu ajudante de ordens, o major Henrique Urbano Hanser Salles, do deputado Maurício Neves (PP-SP), do empresário José Romano Neto, o Zeca, e até de um membro do governo Lula, o atual titular da Secretaria Nacional de Desenvolvimento Urbano e Metropolitano, Carlos Roberto Queiroz Tomé Junior. O clima era de descontração. Neves usava camiseta, bermuda e sandália. Como se pode ver nas fotos feitas pela piauí, a comitiva sorria ao subir a escada do avião.

 

O deputado Maurício Neves inicia o embarque da turma, em clima de descontração
Neves (de bermuda branca e sandália) cumprimenta Zeca Romano (de calça jeans e calçados marrons) na chegada para o embarque em Brasília
O jato Bombardier Global 5000, prefixo PS-STP, tem dezesseis lugares e custa cerca de 50 milhões de dólares.
O deputado Maurício Neves inicia o embarque da turma, em clima de descontração
Neves (de bermuda branca e sandália) cumprimenta Zeca Romano (de calça jeans e calçados marrons) na chegada para o embarque em Brasília
O jato Bombardier Global 5000, prefixo PS-STP, tem dezesseis lugares e custa cerca de 50 milhões de dólares.

A aeronave pousou no São Paulo Catarina Aeroporto Executivo Internacional, localizado na cidade de São Roque, a 53 km da capital paulista. O Catarina é o lugar onde famílias abastadas mantêm suas frotas de avião. Quando esteve em Brasília, Derrite participaria de um encontro de dois dias entre secretários de Segurança Pública de todo o país. Mas só compareceu no fim do primeiro dia e não apareceu mais. Neste período, teve uma reunião com o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, que também estava em Brasília, para onde voou de transporte oficial.

 

A aeronave que Derrite usou é um jato Bombardier Global 5000, prefixo PS-STP. Tem dezesseis lugares e custa cerca de 50 milhões de dólares. Pertence a duas empresas de amigos de Derrite. A G5K Participações, cujo dono é Sérgio Comolatti, e a Farm Empreendimentos Imobiliários, de propriedade de Zeca Romano. São homens de negócios. Comolatti tem um conglomerado de empresas do setor de peças automotivas e concessionárias, além de ser dono do restaurante Terraço Itália, no Centro de São Paulo.

 

 

Zeca Romano, por sua vez, é filho de Maria Beatriz Setti Braga, presidente do Auto Viação ABC, uma das principais empresas de transporte de ônibus em São Bernardo do Campo. Zeca costuma ser chamado de “príncipe dos transportes”. Membro de uma das famílias mais ricas da região do ABC paulista, Zeca também é sócio de uma administradora de cartões usados para pagar transporte público e de uma construtora. (Os dados da Agência Nacional de Aviação Civil não informam desde quando Comolatti e Zeca dividem o Bombardier.)

 

Zeca Romano tem boas relações em Brasília. Em junho do ano passado, quando inaugurou uma nova fábrica de ônibus elétricos no ABC paulista, recebeu, ao lado de sua mãe, uma comitiva de prestígio, integrada pelo presidente Lula e seu vice, Geraldo Alckmin, além dos ministros Fernando Haddad (Fazenda) e Luiz Marinho (Trabalho). Em geral, Zeca Romano prefere a discrição, mas uma exceção aconteceu em maio de 2013, quando bateu sua Ferrari de 2 milhões de reais, modelo 458 Spider, na Marginal Pinheiros, em São Paulo. O acidente virou notícia não só pelo carrão, mas também porque o motorista deixou o local às pressas, antes que a polícia chegasse.

 

Enquanto voava nas asas dos amigos, Derrite enfrentava uma gravíssima crise de segurança pública, depois da revelação de uma sequência de casos de violência policial que chamaram a atenção pela brutalidade. Uma criança de 4 anos foi morta pela polícia durante um alegado confronto, e depois agentes causaram tensão ao comparecer ao velório, um gesto de intimidação segundo um ouvidor da PM presente; um dependente químico levou onze tiros – pelas costas – de um policial à paisana quando tentava furtar sabão líquido; um homem rendido foi jogado de uma ponte por um policial; e uma mulher de 63 anos ficou sangrando em sua casa depois de ser agredida por policiais porque sua família questionou a apreensão da moto que estava na garagem de sua casa. Em novembro, houve ainda um caso de grande repercussão: o atentado a tiros de um empresário em pleno aeroporto de Guarulhos, sob encomenda do PCC.

 

 

A piauí perguntou a Derrite por que ele voou de favor, a bordo de um jato de amigos, ao fim de um compromisso oficial em Brasília. A resposta trata sua presença em Brasília como se fosse um “deslocamento particular” e uma “viagem de caráter privado”. Diz o seguinte: “Os deslocamentos do secretário em compromissos oficiais são devidamente informados no Diário Oficial do Estado.

 

O uso de aeronave particular não configura qualquer irregularidade. Em relação aos deslocamentos particulares, as viagens do secretário são de caráter privado, custeadas sem uso de verba pública. Em todos os casos, não há quaisquer conflitos com o interesse público.”

 

 

 

 

O recente voo de Derrite nas asas de amigos poderia ter sido uma exceção, mas está virando um hábito. No feriadão de Sete de Setembro do ano passado, Derrite e seu amigo Zeca Romano foram a um evento social em Trancoso, no litoral da Bahia, onde também estava Guilherme Mussi, o ex-deputado federal pelo PP que hoje se dedica aos negócios da família. A piauí não obteve informações seguras sobre como Derrite viajou até lá, mas é certo que voltou para São Paulo a bordo do Cessna Citation modelo CJ3+ (525B), prefixo PR-RCF, de propriedade de Mussi. O jato, com capacidade até nove passageiros, pousou no Campo de Marte e ficou por 24 horas estacionado de favor no pátio da Polícia Militar, a corporação da qual Derrite é chefe. Assim, não pagou o estacionamento no pátio.

 

Procurado pela piauí, Guilherme Mussi afirmou que Congonhas estava sem espaço, razão pela qual mudou a rota para o Campo de Marte. “Nunca emprestei avião para Derrite nem para ninguém voar sozinho. Só dou carona ao secretário nas vezes em que também estou no voo. Ele era meu colega de Congresso, veio comigo de Brasília até São Paulo algumas vezes, assim como deputados de diversos partidos.”

 

O favor prestado por Derrite não parou por aí. No fim de semana em Trancoso, na Bahia, a companheira de Zeca Romano, então grávida, sentiu-se mal e precisou ser socorrida. Na madrugada do dia 7 de setembro, o casal então voou no Bombardier de volta para São Paulo. Pousou no Catarina e embarcou em seguida num helicóptero, rumo ao heliponto do Hospital Albert Einstein, no bairro do Morumbi. O helicóptero era o Águia 33, prefixo PR-UBI, que pertence à Polícia Militar. Não existe equipe de resgate noturno da PM paulista. Ela só trabalha em resgate aeromédico do nascer ao pôr do sol – ou seja, outras pessoas com problemas urgentes de saúde não teriam acesso ao serviço naquele horário. Mas Derrite colocou o helicóptero à disposição dos amigos, com dois pilotos, um médico e um enfermeiro a bordo.

 

 

Os caminhos de Derrite e seus amigos têm se cruzado com frequência, por ar e por terra. Entre os dias 10 e 13 de outubro, Derrite tirou uma licença do cargo para “empreender viagem à Itália, a fim de tratar de assuntos de interesse particular”. Era seu aniversário de 40 anos. Ele resolveu comemorar em Taormina, na Sicília. Eis que também havia outras três festas que – por uma tremenda coincidência – aconteciam justamente em Taormina, na Sicília: o casamento de uma irmã de Zeca Romano, o aniversário de Laila, mulher de Zeca Romano, e o aniversário de Guilherme Mussi. Quatro festas em uma.

 

Segundo um dos convidados, que não botou a mão na carteira, a mãe de Zeca, a empresária Maria Beatriz, pagou a acomodação para todos os convidados do casamento da filha. A hospedagem deu-se num luxuoso hotel de Taormina, o Four Seasons, cenário da segunda temporada da série The White Lotus, da HBO. Entre os convidados hospedados a convite da família Romano estava Derrite. Em seu Instagram, ele não postou nada das festas – nem da mesa cheia de amigos que cantou parabéns para Mussi com vista para o Etna –, mas publicou uma imagem diante da igreja Duomo di Taormina. Perfis de outros convidados mostram a turma cantando Parabéns a Você para Derrite e Laila Romano. As redes também registraram nas festividades de Taormina a presença do delegado-geral da Polícia Civil de São Paulo, Artur José Dian, outro amigo e subordinado de Derrite; do deputado Maurício Neves; do ex-governador paulista João Doria, desafeto dos bolsonaristas e tarcisistas; o senador Ciro Nogueira, do Progressistas; o ex-ministro de Jair Bolsonaro Fábio Faria; e do secretário petista Carlos Roberto Queiroz Tomé Junior.

 

Recentemente, houve outra coincidência notável. Na manhã do dia 22 de novembro, uma sexta-feira, Derrite pousou no Catarina. Vinha de Florianópolis, a bordo de um King Air da PM paulista. Na capital catarinense, ele havia participado de um encontro da área de segurança. Chegou a São Paulo antes das nove da manhã e – eis a coincidência – meia hora depois um avião levantou voo do mesmo aeroporto: era o Bombardier Global 5000, dos seus amigos Comolatti e Zeca Romano.

 

 

O jato decolou do Catarina com destino à bela Barra Grande, na divisa do Piauí com o Maranhão, onde o senador Ciro Nogueira comemorava seu aniversário com uma festa de arromba com vista para as dunas e o mar. Derrite comentou com diversos amigos que iria ao Piauí naquele final de semana. A piauí consultou o secretário para saber se, de fato, esteve na festa do senador e como se deslocou até lá. Ele não respondeu. Procurados, Zeca Romano, dono do Bombardier que voou para Barra Grande, Ciro Nogueira, o aniversariante, tampouco quiseram falar. O secretário de Lula, Tomé Júnior, também não.

 

 

 

A escalada da violência policial não freia a agenda social de Derrite. No dia 8 de novembro, poucas horas depois de Antônio Vinícius Lopes Gritzbach, empresário e delator do PCC, ter sido executado com dez disparos de fuzil no Aeroporto de Guarulhos, Derrite partiu para a praia de Maresias, no litoral norte de São Paulo. Foi celebrar o aniversário do deputado Maurício Neves. Também estavam na festa Artur Dian, o delegado-geral da Polícia Civil, e Fabio Bopp, chefe do Grupo Especial de Reação. O cantor Latino, enquanto entoava a música Conquista, de Claudinho & Buchecha, saudou o secretário que estava na pista de dança: “Bora, Derrite!”

 

 

No dia 6 de dezembro, sexta-feira, estava marcada uma reunião de Derrite com todos os coronéis da polícia paulista, às 8h30. O tema era a barbárie que a polícia vem promovendo em São Paulo, desde o massacre no Guarujá, ocorrido no ano passado, que oficialmente a polícia diz ter resultado em 84 mortos. Especulava-se que o secretário anunciaria a demissão de Cássio Araújo de Freitas, o comandante-geral da PM, como forma de dar uma resposta à opinião pública diante da escalada da violência policial. A reunião, no entanto, foi cancelada de última hora.

 

(Na edição de maio, a piauí publicou um perfil de Guilherme Derrite. Os assinantes podem acessar a reportagem aqui.)