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    Caio Blat no papel de Riobaldo Foto: José Roberto Eliezer/ABC

colunistas

A ousadia de Bia Lessa

Adaptar Grande Sertão: Veredas para o cinema só foi possível exercendo a liberdade de inventar

Eduardo Escorel | 01 nov 2023_07h57
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Em anotação manuscrita inédita, Antonio Candido escreveu que sua leitura de Grande Sertão: Veredas, feita em 1956, lhe causou “a emoção que passa do cérebro ao corpo, mesmo quando abala e faz vibrar”. O primeiro desses choques causados “pela ficção narrativa em número restrito” resultara da leitura de Os Miseráveis, em 1933, quando ele tinha 15 anos. O segundo baque ocorreu em 1936, após ter lido Du côté de chez Swann. Em 1941, vieram mais dois golpes, com Le Père Goriot e Os demônios. “Houve outros”, Candido escreve, “mas de natureza diferente, porque não acarretavam a reação do corpo: arrepio, taquicardia, pranto”.

A prodigiosa obra-prima de João Guimarães Rosa que abalou Candido é um longo, denso e intrincado texto que exige concentração total do leitor. Atributos que, somados à riqueza de invenção vocabular e à complexidade da travessia rememorada pelo jagunço Riobaldo, tornam Grande Sertão: Veredas dificílimo, para não dizer impossível, de recriar em outras linguagens artísticas. “É espantoso, é assombroso que exista esse livro” disse José Miguel Wisnik na aula inaugural de um curso dado em 2022.

Bia Lessa sabe isso tudo muito bem. Mesmo assim, após a instalação que dedicou a Grande Sertão: Veredas no Museu da Língua Portuguesa, em 2006 e de cometer a ousadia de criar a versão teatral que estreou em 2017, reincidiu com o mesmo destemor e acaba de estrear O Diabo na Rua, no Meio do Redemunho, exibido, em outubro, no Festival do Rio e, em São Paulo, na Mostra Internacional de Cinema.

Os créditos iniciais esclarecem que o filme é “calcado” em Grande Sertão: Veredas. O termo inusitado, no lugar da forma corriqueira “baseado em”, permite supor que a designação escolhida seja outra audácia da realizadora – ela estaria advertindo o espectador que sua versão cinematográfica de Grande Sertão: Veredas pretende reproduzir o modelo original e “acalcanhá-lo”, ao mesmo tempo? Ou seja, almeja tomar o romance como referência, ainda que parcial, mas pisar nele com o calcanhar para esmagá-lo? Tratando-se de reduzir as mais de 500 páginas do livro, na edição da Companhia das Letras, para as 2h06min do filme, parece inevitável ter implodido o romance. A passagem da literatura para o cinema se torna a batalha em que a equipe adquire a mesma característica dos personagens – são todos guerreiros.

Uma chave possível para entender a audácia de Lessa ao fazer O Diabo na Rua, no Meio do Redemunho se encontra no ensaio “O Homem dos Avessos”, de Candido, publicado em 1957 e incluído em Tese e Antítese, editado em 1964. Para ele, o “traço fundamental” de Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas é “a absoluta confiança na liberdade de inventar”. Diretriz que parece ter sido, de fato, adotada por Lessa, tendo passado a se considerar livre para criar e fazer o filme sem se inibir frente a obstáculos considerados intransponíveis.

Exemplo singelo dessa liberdade autoproclamada é o texto da epígrafe atribuído a Riobaldo, protagonista do filme, advertindo o espectador da dura tarefa à sua frente: “O correr da vida embrulha tudo! Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância. São tantas horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo, recruzado. Eu vou contando, o senhor vá ouvindo…”.

Ao contrário do que se poderia supor, apesar de não vir entre aspas, a advertência feita no início do filme não é citação literal do romance de Rosa. Trata-se, na verdade, da montagem de três frases ditas pelo jagunço narrador ao longo da travessia, além de uma adaptada livremente, mas separadas no livro por dezenas ou centenas de páginas e reunidas na epígrafe fora da ordem original.

As invenções de Lessa que, naturalmente, vão muito além disso, seriam reprováveis? Não creio, pois sem elas o filme talvez não teria sequer chegado a bom termo. Por outro lado, Grande Sertão: Veredas não seria uma obra-prima precisamente, entre outros motivos, por não se prestar a ser adaptado? Ter resistido incólume a essas tentativas não seria uma das provas da excelência do romance?

Quanto a O Diabo na Rua, no Meio do Redemunho, pode-se dizer que é uma recriação audiovisual inventiva e se destaca no panorama atual do cinema brasileiro. A estrutura narrativa do filme é, em si mesma, um redemunho. Com roteiro, cenografia e direção esmerados de Lessa, é muito bem fotografado por José Roberto Eliezer e editado por Sérgio Mekler e Renata Catharino. Conta ainda com trilha musical de Egberto Gismonti e O Grivo, além de um elenco, tendo à frente Caio Blat (Riobaldo), Luiza Lemmertz (Diadorim) e Luisa Arraes (Nhorinhá e jagunço não nomeado) que se entrega de corpo e alma à encenação.

Ao ouvir que “os Hermógenes” estão chegando, sinal de que o combate irá começar, Riobaldo diz aos 102 minutos do filme: “Mesmo com a minha vontade toda de paz e descanso, eu estava trazido ali, no extrato, no meio daquele despropósito, desgoverno. Eu, senhor de certeza nenhuma. O que é isso que a desordem da vida pode sempre mais do que a gente?” Creio que essa é outra montagem de frases, como a da epígrafe. Não importa. O que vale assinalar é o final: “…eu estava trazido ali, no extrato, no meio daquele despropósito, desgoverno. O que é isso que a desordem da vida pode sempre mais do que a gente?…”. A atualidade dessa sabedoria perene, entre tantas outras demonstrações equivalentes semeadas ao longo de Grande Sertão: Veredas, é uma das provas da grandeza dessa obra-prima.

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