O Brasil é um dos maiores mercados de ônibus urbanos do planeta. O transporte público no país é estruturado com base nos sistemas sobre pneus. Nas cidades brasileiras – pequenas, médias e grandes – operam mais de 115 mil ônibus.
Agora, preste atenção neste dado alarmante: dos 115 mil ônibus urbanos que transitam pelas cidades brasileiras, apenas 68 – repito: 68; ou seja, míseros 0,06% — são elétricos movidos a bateria.
Isso escancara uma preocupante realidade: nossas cidades estão sendo sufocadas pela queima do óleo diesel e são grandes contribuintes do elevado grau de emissão de CO2 responsável pela severidade das mudanças climáticas que vemos diariamente assolar todos os rincões do globo.
O médico e professor Paulo Saldiva, da Universidade de São Paulo, coordenador do Núcleo de Saúde Urbana do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper, tem um estudo publicado indicando que só na capital paulista a poluição atmosférica causa a morte prematura de 4 mil por ano. Claro que nem toda poluição atmosférica é causada pelos ônibus. Transporte individual, veículos antigos, caminhões – cuja idade média da frota no Brasil ultrapassa os 15 anos – são grandes ofensores da qualidade do ar.
Mas sobre o transporte individual ou de cargas as autoridades não têm muito poder de ação. Diferente é a situação no transporte público: os municípios podem e devem estar aptos a definir padrões de frota que eliminem as emissões de CO2, de Nox e de material particulado. Sobre tais frotas, o poder público tem ingerência e capacidade para induzir a incorporação de novas tecnologias, promovendo o desenvolvimento da indústria, criando escala e transformando as cidades.
Descarbonizar o transporte público é, portanto, tarefa urgente, fundamental, que deveria ser abraçada por todos os níveis de governos, setor privado, sociedade civil e organizações multilaterais. Diria mais: trata-se da tarefa mais urgente da geração que está à frente de áreas relacionadas ao problema, se, fato, ela quiser deixar o incontornável legado de promover uma rápida mudança da nossa matriz energética, eliminando emissões de carbono, alterando hábitos de consumo, atentando para as questões de mobilidade.
Diversas alternativas à queima de diesel para locomover pessoas dentro das cidades e/ou entre elas têm sido apresentadas ao longo dos últimos anos – diesel derivado de vegetais, óleo vegetal hidrogenado, hidrogênio, ônibus elétrico alimentado por meio de cabos (trólebus) e/ou de baterias. Todas têm algumas desvantagens, todavia trazem muitas, muitas vantagens em relação ao modelo que prevalece por aqui.
Mundo afora, cresce a adoção de ônibus elétricos movidos a baterias. De acordo com o Maximize Market Research, o mercado global de ônibus elétricos foi, em 2021, de 78.240 e será, em 2029, de 1.383.480.
A China liderou esse processo durante as duas primeiras décadas do século XXI, e é, até a atualidade, a detentora da maior frota de ônibus elétricos no planeta. Entretanto, nos dias de hoje, o que se vê é uma rápida aceleração da substituição dos ônibus poluentes para ônibus limpos em todos os continentes.
Ao mesmo tempo, há uma demanda, ainda que tímida, das cidades e da sociedade por um transporte público de melhor qualidade, que promova inclusão e contribua para reduzir não apenas as distâncias como também a desigualdade.
Na América Latina temos dois exemplos de nações que introduziram a mobilidade elétrica nas suas capitais de forma intensa, rápida e eficiente.
A Colômbia, que tem um PIB correspondente a 20% do brasileiro, vem dando exemplo em vários aspectos que envolvem políticas públicas estruturadas e transformadoras. A cidade de Bogotá, que desde os anos 2000 conta com um dos melhores sistemas de BRT do mundo, o Transmilenio, já possui 1485 ônibus elétricos. Sim: somente a capital colombiana ostenta uma frota cerca de 21 vezes maior que a do Brasil.
O Chile, detentor de um quinto da riqueza brasileira, já tem em operação uma frota de 1223 ônibus elétricos a bateria.
A primeira questão que se apresenta é por que o ônibus a bateria logrou ser a opção predominante frente a outras possibilidades completamente limpas ou menos poluentes. No Brasil, essa pergunta faz ainda mais sentido, dada a larga experiência que temos com o etanol da cana- de-açúcar.
Ocorre que não existe produção em larga escala de diesel derivado de vegetais no Brasil. Ora, o abastecimento da frota de ônibus urbanos não pode sofrer qualquer interrupção ou suspensão no seu fornecimento. O combustível que move esses ônibus tem que estar completamente disponível. Além disso, há enorme polêmica em relação à inadequação de se destinar solos cultiváveis para alimentos à produção de energia com o objetivo de mover veículos. O desenvolvimento, no entanto, de uma produção em larga escala pode baratear o preço e dar confiabilidade à alternativa, viabilizando o uso de ônibus com tal tecnologia nos locais onde outras fontes, especialmente a eletricidade, não possam ser empregadas.
O hidrogênio também está longe de ter disponibilidade no território nacional. Anos atrás, testes com ônibus movidos a células de hidrogênio foram interrompidos na Grande São Paulo, justamente por falta de hidrogênio.
Os ônibus elétricos alimentados por meio de cabos têm duas desvantagens importantes. Uma é a perversa intrusão urbana que os cabos provocam. Nenhuma cidade mais quer ser cortada por uma infinidade de cabos sustentados por postes. A segunda e importante desvantagem é que o consumo de energia junto à rede distribuidora (chamada “grid”) se dá no exato momento em que os ônibus estão circulando. Isso quer dizer que as seis e meia da tarde esses veículos estarão rodando em sua capacidade máxima, a fim de atender a demanda de pico do horário, concorrendo com muitos outros consumidores e onerando todo o sistema elétrico, além de estar consumindo a energia na hora em que ela pode ser mais cara.
As baterias têm a desvantagem da mineração, necessária para a retirada dos componentes essenciais para o armazenamento de energia; isso é verdade. Mas não menos verdade é o fato de que os ônibus movidos por meio delas têm inúmeras vantagens – e por isso se assiste à expressiva adoção dessa tecnologia em toda parte. A primeira das vantagens é o longo tempo de vida das baterias veiculares. Em geral, fabricantes de ônibus elétricos fornecem uma garantia de cinco a oito anos para as baterias. Alertam, porém, que o ciclo de vida pode ultrapassar os dez anos. Depois desse período, as baterias não serão descartadas. Na realidade, elas já estão sendo empregadas na indústria do armazenamento estático de energia, na qual se ganha dinheiro carregando baterias com um preço barato (nas madrugadas, por exemplo) para depois vendê-las quando ele se eleva, dado à carência (para uso nos horários de pico).
Disso decorre outra vantagem em relação aos veículos alimentados por meio de cabos. Os ônibus a bateria, na sua imensa maioria, serão abastecidos durante a madrugada, quando todo o sistema elétrico – geração e distribuição – tem um período de ociosidade de consumo. Itaipu, por exemplo, gira suas turbinas 24 horas por dia, todavia durante a madrugada boa parte da energia gerada é desperdiçada. No caso das baterias, elas serão carregadas exatamente em tal período e os ônibus poderão se mover durante o horário de pico, usando essa energia com preço mais baixo
Outro fator é o preço que pagaremos se decidirmos ter uma matriz energética contrastante com a opção global, que até aqui caminha para as baterias. Iremos produzir ônibus apenas para o mercado interno, perdendo a condição de plataforma exportadora. E, seguramente, eles sairão mais caros, vez que serão considerados mais uma jabuticaba!
Os ônibus elétricos têm um custo de aquisição ainda muito mais elevado. Contudo, é tão grande a economia do custo operacional que muitos estudos e casos já apontam para um equipamento mais barato que os ônibus convencionais movidos a diesel, considerado o custo total de propriedade.
Um motor à combustão possui ao redor de 500 e 600 peças, enquanto um elétrico tem três ou quatro, isso resulta em manutenção muito mais barata e em um consumo de lubrificantes e fluidos infinitamente menor.
O ônibus elétrico é silencioso e tem uma condução macia, que favorece a experiência do usuário, melhorando o conforto e a segurança.
Estive em Bogotá recentemente e perguntei a um operador de ônibus: “Por que a opção pelo elétrico e uma mudança de sistema em tão pouco tempo?” A resposta que ouvi talvez explique, em parte, porque aqui estamos caminhando a passos de cágado: “A sociedade não aceita mais ônibus poluentes. Não se admite mais a entrada de ônibus sujos no sistema da cidade.”
Infelizmente, como sociedade, nós, brasileiros, ainda não compreendemos a gravidade da crise climática na qual estamos mergulhados. Seguimos tocando as nossas agendas como se a Terra não estivesse prestes a despencar em uma espécie abismo do cosmo. Não cobramos de nossos governantes ações concretas para reduzir os efeitos das mudanças climáticas. Assistimos, neste verão, cidades inundadas numa frequência bastante acima do que tínhamos visto nos anos anteriores. O Pantanal, meses atrás, surgiu em chamas. E seguimos fazendo de conta que não temos muito a ver com isso.
Por falar em governo, esse é outro aspecto central nos projetos de eletrificação de frotas em todo o globo. Se há algo em comum em todos os países que levaram a sério a descarbonização do transporte foi o engajamento e a liderança dos governos centrais. Foram eles que deram o norte e viabilizaram políticas públicas para reduzir custos, ampliar e baratear créditos, fornecer garantias e mover suas respectivas nações para resultados fantásticos.
Essa é outra ausência grave no Brasil. Não temos uma política central, liderada pelo governo federal, apontando o rumo, servindo de bússola e viabilizando a implantação de uma solução que, além de melhorar a qualidade de vida das pessoas que moram nas cidades – só para lembrar: algo em torno de 85% da população do país –, proporcionaria o desenvolvimento de uma indústria de alta tecnologia, com potencial para ser líder nas Américas.
O risco que corremos ao ficarmos para trás na política de energia sustentável dos sistemas de mobilidade urbana é perdemos a condição de plataforma produtora e exportadora de ônibus. O Brasil sofre com o contínuo decréscimo da participação da indústria no PIB. Parece que estamos conformados em ser exportadores de produtos agrícolas.
Com o perdão da imagem: não podemos perder esse ônibus que está passando diante de nossos olhos… Temos oportunidade de criar um robusto mercado capaz de atrair os fabricantes já instalados no Brasil e muitos outros. Nossa inércia pode fazer com que sejamos obrigados, em um futuro bem próximo, a passar a importar ônibus elétricos, se não quisermos seguir poluindo nossas urbes e contribuindo para a degradação do planeta.
O novo governo federal pode mudar o curso da história e, mexendo as peças corretamente, fomentar a mobilidade urbana sustentável, a economia verde, o desenvolvimento tecnológico e uma indústria com forte potencial para atender o mercado interno e, aproveitando a expertise de uma indústria forte, pujante e com larga presença no país, ampliar divisas em moeda estrangeira, exportando ônibus – agora elétricos.