A guerra do parmegiana

Já passavam das 21h30 na cidade paulista de Itu quando o ex-prefeito e ex-deputado federal Herculano Passos passou pelas portas de madeira maciça do Bar do Alemão, um dos restaurantes mais tradicionais da região. Fundado em 1902 por um imigrante, o estabelecimento é famoso por sua receita de filé à parmegiana, que atrai semanalmente milhares de visitantes ao prédio de fachada em padrão enxaimel, o estilo arquitetônico alemão com vigas aparentes dispostas na horizontal, na diagonal ou inclinadas. O interior tem um salão amplo, com iluminação indireta de abajures e garçons vestidos de camisa branca, gravata vermelha e chapéu verde. 

Era uma sexta-feira, 22 de outubro de 2021. Na mesa número 9 estava Herbert Steiner, um dos herdeiros do restaurante, da quarta geração da família – e que já foi sócio de Herculano em filiais na capital paulista. Ele já havia tomado chope, gin e vinho quando começou a discutir com o ex-prefeito a expansão dos negócios. Ao final da noite, o político pegou o pedaço de um papel de embrulho, desses de embalar comida para viagem, e redigiu com caneta azul, em letra de forma, o texto abaixo (que tem duas incorreções: engole o primeiro “r” do nome Herbert e registra equivocadamente a data da ocasião, trocando o dia 22 pelo 21):

Acordo entre Hebert e Herculano

Hebert vai ceder a marca que estamos usando no Bar do Alemão de São Paulo Moema e Itaim para Vila Maria e ABC

Valores de R$ 5.000,00 para cada casa, Vila Maria e ABC, totalizando R$ 10.000,00

Pagamento na inauguração de cada casa e reajustáveis por ano. 

Direito de usar a marca nas 4 casas por 100 anos

Itu, 21 de outubro de 2021

Os dois assinaram embaixo. Herculano, o ex-prefeito, saiu de lá feliz, levando o papel. Já Herbert estava prestes a ter uma ressaca daquelas.

Herbert Steiner, em foto de seu site oficial, e o clique de celular que tirou do contrato: “Era quase meia-noite. Eu tinha bebido bastante”

Adolf Steiner, fundador do estabelecimento, chegou ao Brasil em 1889, época em que o país se tornava uma República. Três anos depois, com a ajuda do filho Max, abriu em Itu, no interior paulista, a cerca de 100 km da capital, a Padaria e Confeitaria Alemã. O lugar chegou a mudar de nome para Padaria Ituana durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quando a referência germânica se tornou impopular. A atuação se expandiu ao longo dos anos. Virou bar (foi um dos primeiros a servir chope no estado) e se transformou em um restaurante famoso por seus bifes.

Nos anos 1950, surgiu a receita-símbolo do negócio, criada por Max. Aconselhado por um cliente que achava um tanto seco seu filé de alcatra à milanesa – chamado naquela época de “orelha de elefante” pela semelhança estética –, adicionou molho de tomate ao prato.

Max Steiner, criador da receita famosa, por sugestão de um cliente, que achava os bifes da casa secos

Atual maître da casa, Nelson Pinheiro de Azevedo (o Nelsinho, que começou ali como ajudante há 46 anos) fala que o segredo do sucesso está no molho feito apenas com tomates, sal, pimenta vermelha, manteiga fresca e parmesão ralado. “Por semana, só para fazermos o parmegiana, usamos cerca de 1 600 kg de tomate italiano, que são fervidos para retirada da acidez, peneirados e depois apurados por horas. Esse processo e, claro, a manteiga e o parmesão ralado, garantem a homogeneidade do molho”, diz ele, sem revelar as quantidades.

O filé, que hoje é mignon e não alcatra, também segue à risca detalhes determinados há décadas. Para garantir um prato generoso, mas não pesado, o bife deve ter uma espessura de até 1 cm e ser empanado somente com gemas para assegurar uma casquinha seca e crocante.

O maître calcula que o parmegiana representa entre 80% e 90% dos pedidos da casa. No delivery, não tem pra ninguém: são 96% do total. Nelsinho diz que a preocupação com as casas licenciadas não é apenas financeira, mas gastronômica. “Todos aqui prezam pela qualidade.”

A quantidade também faz a diferença. Na cidade dos exageros, onde o orelhão da praça tem 7 metros de altura, o tamanho do filé à parmegiana é o principal marketing e ainda a maior fonte de receita da casa. A opção para até cinco pessoas (em um prato do tamanho de uma pizza) leva 700 gramas de filé mignon e sai por 255 reais. É servido com arroz e batata frita – palito ou chips.

O Bar do Alemão original, em Itu, pertence integralmente a membros da família Steiner. Existem unidades em outras cidades com diferentes composições societárias entre os parentes – a de Campinas, por exemplo, é tocada por um primo de Herbert e tem o mesmo estilo da primeira sede (da decoração à logomarca), além da “tradicional e famosa parmegiana” como chamariz.

A disputa com Herculano, o ex-prefeito, abrange especificamente outros quatro endereços, que são fruto de uma relação comercial que começou em 2008. Naquele ano, o político se uniu a Herbert Steiner e seu irmão mais novo, Joubert Steiner, para fundar no bairro paulistano de Moema o restaurante batizado de Bar do Alemão São Paulo – Consulado de Itu, que tem um logo diferente, com fundo vermelho e letras góticas, mas com referências ao original e o mesmo prato-símbolo.

O contrato foi assinado no dia 1º de setembro daquele ano e determinou o seguinte: o ex-prefeito entrou com todo o capital e, assim, se tornou dono de 70% do negócio. A cada um dos herdeiros, por sua vez, foi destinado 15% do lucro líquido apurado, não apenas por ceder a marca e a receita da família, mas pela responsabilidade de tocar a operação no dia a dia.

Passados três anos, em 2011, Herbert decidiu vender sua parte para o irmão Joubert, por 800 mil reais. Herculano seguiu com seus 70%. Em 2013, os dois sócios remanescentes abriram uma nova casa, no Itaim Bibi.

O distrato foi feito em paz e todos mantiveram um relacionamento cordial, até que a dupla decidiu expandir o restaurante para mais dois territórios: Santo André, cidade do ABC paulista, e Vila Maria, bairro da Zona Leste paulistana. Herbert não gostou – e disse que, ao vender sua parte do restaurante de Moema, não estava autorizando essas filiais. O herdeiro colocou ainda mais molho nesse filé ao registrar a marca “Bar do Alemão São Paulo – Consulado de Itu” e o logotipo em seu próprio nome.

Em busca de um acordo, os três se juntaram em 2021 para negociar um valor mensal a ser pago a Herbert pelo uso da marca mista (nome e logotipo). Herculano argumenta que Herbert pedia 12 mil reais mensais para cada uma das novas casas, valor que considerou alto, ainda mais em meio às incertezas da pandemia de Covid. Na mesa do bar em Itu, o valor mais brando, de 5 mil reais, foi registrado no contrato improvisado à mão. 

Herbert conta que acordou da bebedeira arrependido por ter assinado o papel de embrulho e entrou na Justiça. Nos autos, seus advogados afirmam que ele foi “ludibriado” diante de uma “tentativa desleal e maquiavélica” do ex-prefeito, que se aproveitou “de sua embriaguez para usurpar o uso da marca”. À piauí, ele disse ter se sentido traído e relatou que tudo aconteceu na “calada da noite”.

“Era quase meia-noite. Eu tinha bebido bastante naquele dia, estava com amigos em outra mesa quando ele (Herculano) chegou e me chamou num canto”, contou Herbert. “Só no dia seguinte, quando acordei, é que percebi o que tinha assinado e vi que estava errado, que era injusto”, disse, referindo-se à foto que, ainda no bar, tirou do “contrato”. “As marcas são minhas, deferidas pelo Inpi (Instituto Nacional da Propriedade Industrial). Eles não têm o direito de usar. Pode ser meu irmão, quem for. Eu só quero meus direitos”, diz ele, que, além de tentar impedir o funcionamento das casas nas condições atuais, pede também 100 mil reais por danos morais mais uma quantia a ser calculada por danos materiais.

Além disso, Herbert afirma agora que não tem mais interesse em negociar a marca mista por valor algum, mas pode fazer isso usando alguma das outras trinta marcas que também registrou em seu nome, como Bar do Alemão by Herbert.

Em uma escritura de declaração averbada em cartório no dia 9 de junho de 2022, Joubert relata surpresa ao descobrir que seu irmão havia registrado a marca mista (nome e logo) da empresa e que, em seu entendimento, o primeiro contrato asseguraria o uso da marca mista Bar do Alemão – Consulado de Itu, sem vetar novas filiais, já que o papel não cita, mas também não veta, a expansão para novos endereços.

“Gostaria que meu irmão cumprisse o que fora contratado quando da sua saída e fizesse a transferência da titularidade das marcas, pois eu e meus sócios já havíamos comprado e pago pelas suas cotas sociais e pela parte dele nas marcas que envolviam e envolvem o Bar do Alemão de São Paulo”, declarou, na escritura. Seu advogado (o mesmo de Herculano) informa que ele está doente e que já registrou em cartório o que tem a dizer.

Cotado para disputar novamente a prefeitura de Itu pelo Republicanos, em 2024, Herculano não aceitou dar entrevista. Por meio do advogado, negou qualquer intenção de “ludibriar” o amigo durante a conversa de 2021.

Em setembro de 2022, o Tribunal de Justiça de São Paulo deu sentença parcialmente favorável a Herbert, ao determinar que as casas de Santo André e Vila Maria não utilizem mais as marcas registradas pelo herdeiro. O despacho não tem efeito imediato, pois ainda cabe recurso. A indenização de 100 mil reais foi negada (a decisão considera o pedido “descabido”) e também se descartou o pleito por danos materiais nos moldes pleiteados.

No dia 11 de outubro de 2023, Herbert teve nova vitória, dessa vez em um processo envolvendo a mais importante das casas, a de Moema. O mesmo Tribunal de Justiça de São Paulo determinou a proibição dos nomes “Bar do Alemão” e “Bar do Alemão de São Paulo – Consulado de Itu” em seus serviços ou materiais de publicidade. Também está vetado o uso do domínio bardoalemaosp.com.br. Os donos têm sessenta dias para fazer as mudanças, mas ainda cabe recurso. O juiz entendeu que o contrato firmado pelo trio em 2008 previa a continuidade do negócio, não da marca. E escreveu que “a pequena distância entre a cidade de São Paulo e Itu não afasta a possibilidade de obtenção ilegal de clientela e, consequentemente, concorrência desleal”.

As partes parecem distantes de um acordo. Nessa guerra do parmegiana, as únicas certezas são que o queijo que vai por cima do filé é prato – e não mussarela – e que o parmesão que dá o toque final nunca é gratinado.