O governo Bolsonaro encena uma interminável tragédia ambiental cujo roteiro original vai sendo adaptado ao sabor das pressões. As mais recentes adaptações desse roteiro, que visam dissimular o desmantelamento da política ambiental e dos órgãos de fiscalização e controle, decorrem da eleição de Joe Biden à Presidência dos Estados Unidos e do anúncio da realização da Cúpula de Líderes sobre o Clima convocada por Biden para os dias 22 e 23 de abril.
Em carta a Biden em 14 de abril, Bolsonaro afirmou o “compromisso em eliminar o desmatamento ilegal no Brasil até 2030”, indicou querer ouvir as entidades do terceiro setor, indígenas e comunidades tradicionais. Pode parecer um avanço para quem, em 2018, prometeu “segurar as multas ambientais” e acabar com o “ativismo ambiental xiita”. Mas eliminar o desmatamento já constava, não condicionado ao recebimento de recursos, no plano de ação submetido em 2015 à Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima (UNFCCC) no âmbito do Acordo de Paris. Desapareceu na atualização apresentada em dezembro de 2020 pelo governo Bolsonaro.
Também em 14 de abril, foi publicado no Diário Oficial da União o Plano Amazônia, que propõe, até o final de 2022, reduzir o desmatamento à média do período entre 2016 e 2020 – 8.719 km2, pelos dados do sistema Prodes/Inpe. Apesar da “redução”, esse total é 22% superior ao desmatamento médio nos quatro anos anteriores à posse de Bolsonaro (7.146 km2 entre 2015 e 2018).
É pouco para um país que fez o desmatamento cair 83% entre 2004 (27.772 km2 de área desmatada) e 2012 (4.571 km2). À época, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) coordenava os Planos de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm) e no Cerrado (PPCerrado). Ambos deixaram de ser executados em 2019, com o início do governo Bolsonaro, ainda que planejados até 2020, e substituídos pelo Plano Nacional para Controle do Desmatamento Ilegal e Recuperação da Vegetação Nativa 2020-2023, lançado em maio de 2020 sob coordenação do MMA e sem metas de redução do desmatamento.
O Plano Amazônia é responsabilidade do Conselho Nacional da Amazônia Legal (CNAL), ressuscitado em fevereiro de 2020. Presidido pelo vice-presidente Hamilton Mourão e composto por ministros, não inclui os governadores dos estados da região nem representantes da sociedade civil. Despreza a orientação da Constituição Federal de 1988 sobre descentralização da política ambiental. O Ministério do Meio Ambiente foi alijado do lugar de coordenador de ações ambientais na região, mesmo com Ricardo Salles se colocando como gatekeeper da agenda ambiental junto ao governo dos Estados Unidos.
No Plano Amazônia, não bastasse uma meta de redução de desmatamento pouco ambiciosa, falta clareza sobre como atingi-la. Sem detalhamento nem estimativas de orçamento, são estabelecidas áreas prioritárias para atuação em razão das taxas de desmatamento mais elevadas ou da localização no arco do desmatamento, renomeado como “arco de humanização”.
Em reuniões preparatórias para a Cúpula com representantes do governo norte-americano, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, apresentou outro plano, esse ao custo de 1 bilhão de dólares por ano e que, segundo ele, reduziria de 30% a 40% o desmatamento no primeiro período de execução. Mesmo com tal redução projetada na área desmatada em 2020 (11.088 km2), o desmatamento médio ainda seria entre 6.653 e 7.762 km2 em 2021. Dito de outra forma, Salles faz uma proposta de redução do desmatamento sem a garantia de que ele tenha o mandato legal para executá-la.
Se no Conselho da Amazônia o emprego de militares era o eixo das ações previstas por Hamilton Mourão, a ala radicalizada do governo Bolsonaro, cujos porta-vozes Ricardo Salles e Carla Zambelli têm se mostrado bastante ativos, recorreu ao seu emplastro universal: a retórica de “valorização”, politização e federalização das polícias militares estaduais.
Para essa ala, a principal estratégia de fiscalização seria a utilização de um terço desse 1 bilhão de dólares, que viria do governo dos Estados Unidos, para custear ações de combate ao desmatamento ilegal realizadas pela Força Nacional de Segurança Pública, coincidentemente comandada pelo marido da deputada Carla Zambelli, o coronel da PMCE Aginaldo de Oliveira. Segundo o ministro, seriam mobilizados dez batalhões de Força Nacional para apoiar órgãos como Ibama, ICMBio e Polícia Federal (algo como 3,5 mil servidores) em cidades da Amazônia Legal com altos índices de desmatamento.
O que o governo federal não contou aos norte-americanos, ao menos publicamente, é que a Força Nacional de Segurança Pública não é uma polícia autônoma ou uma Guarda Nacional sob sua jurisdição. Ela é tão somente um convênio entre União, Distrito Federal e estados criada pelo Decreto nº 5289/2004 e vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública. Ou seja, ela depende da cessão voluntária de policiais pelos estados, exatamente eles que não fazem parte do Plano Amazônia e não integram as conversas com os Estados Unidos.
O efetivo da Força Nacional advém de acordos de cooperação da União com as 27 UF, que cedem seus profissionais (policiais militares, bombeiros militares, policiais civis e peritos, bem como profissionais inativos dessas quatro categorias e reservistas das Forças Armadas) para atuação emergencial em municípios e Unidades da Federação que solicitarem apoio ao governo federal. Desde 2013, o efetivo da FNSP varia de 2 mil a 2,7 mil profissionais, com exceção de 2016, quando foram 7.505 profissionais mobilizados por intermédio de um programa inédito de utilização de policiais da reserva para a FNSP. A proposta de Salles exigirá dobrar o efetivo médio da Força Nacional e, para tanto, isso se dará, necessariamente, em detrimento do efetivo das polícias civis e militares estaduais.
Entre 2017 e 2019, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o número de operações da FNSP cresceu: foram 33 em 2017, 46 em 2018 e 76 em 2019. Não há detalhamento para todos os anos, mas, a partir de informações obtidas por meio da Lei de Acesso à Informação e da análise do Diário Oficial da União, foi possível listar, pelo menos, 23 operações entre 2018 e 2021. Dessas, 16 são do tipo “ambiental”, atuando no enfrentamento a crimes ambientais e proteção de áreas de Unidades de Conservação; cinco são do tipo “indígena”, ou seja, atuam na proteção das Terras Indígenas ou no processo de “desintrusão” dessas áreas; duas são de “ordem pública” e estão focadas no suporte aos órgãos da segurança pública na contenção do narcotráfico ou mesmo acompanham as obras da Usina Belo Monte. A duração das operações varia, podendo ir de um ou dois meses ou até quatro a sete anos. No entanto, o número de agentes não muda tanto e conta com trinta a quarenta pessoas por operação.
Estão em vigor hoje cinco operações da FNSP na região amazônica relacionadas a crimes ambientais e proteção de áreas indígenas. As portarias publicadas no Diário Oficial mostram que poucas especificam um local exato de atuação. Isso acontece em caso de renovação (Apyterewa-PA) e em caso de medidas cautelares (Terras indígenas: Alto Rio Negro e Enanewê-Nawê). Fora esses, as autorizações têm sido genéricas, endereçadas aos órgãos que coordenarão as ações (hoje são ICMBio, Funai e Forças Armadas).
Dados cartográficos compilados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em projeto em parceria com o iCS (Instituto Clima e Sociedade), mostram que a maior parte das operações ambientais e indígenas da Força Nacional de Segurança Pública se concentra em áreas classificadas, pelo Imazon, como “sob pressão” (onde é possível verificar maior concentração do desmatamento).
O incremento do desmatamento ocorre, majoritariamente, nas bordas de áreas de Unidades de Conservação e Terras Indígenas. Outra análise dos dados cartográficos compilados pelo FBSP revela que o desmatamento avança nas áreas florestais e as operações da Força Nacional não têm chegado até elas. O efetivo e o número das operações da FN não são suficientes para cobrir todas as regiões com problemas de desmatamento.
Ou seja: as bordas das áreas protegidas não estão sendo cobertas pela atuação da Força Nacional e o efetivo médio necessário para cobri-las seria muito superior à média das operações vigentes. E aumentar esses efetivos, na linha da cortina de fumaça proposta por Salles aos Estados Unidos, serviria para “desvestir um santo para vestir outro”, já que as polícias estaduais enfrentam limitações operacionais em quase todo o país.
A governança do sistema de proteção da Amazônia é bastante complexa, envolvendo múltiplos órgãos e atores. A proteção do Meio Ambiente, portanto, não deve mimetizar a cadeia de comando e controle militar e/ou policial militar. O uso de policiais militares e/ou militares das Forças Armadas não é refutado, porém não é uma solução permanente ou que justifique a “securitização” da proteção do meio ambiente e o esvaziamento do controle dos governadores sobre suas PMs.
Na complexidade da governança da região, a tarefa de proteção da Amazônia envolve diferentes atores e poderes, incluindo órgãos federais, municipais e estaduais. Para isso é importante fortalecer os dois principais órgãos federais de proteção ambiental do país: Ibama e ICMBio. Mas a tendência geral do governo Bolsonaro tem sido de redução da capacidade de atuação de tais órgãos.
O número de servidores ativos do Ibama teve redução de 49,7% entre 1999 e 2021; entre 2007 e 2021, a redução foi de 63%. O orçamento do órgão caiu 13% entre 2016 e 2020, saindo de 1,69 bilhões para 1,47 bilhão de reais – e qualquer incremento orçamentário com recursos internacionais também teria que ser matizado pelo teto de gastos públicos, que exige que, diante da situação fiscal do país, todo o investimento feito seja compensado com a redução de gastos em outras rubricas.
Já o ICMBio, liderado por oficiais da Polícia Militar desde o início da gestão Salles e outro importante órgão federal de controle ambiental, teve uma redução de 3% no orçamento no período entre 2016 e 2020, embora demonstre uma aparente recomposição em 2020. O número dos servidores do ICMBio teve estabilidade entre 2009 e 2021, mas houve redução de 9,8% entre 2020 e 2021. No ponto mais baixo da curva, em 2018, a redução de servidores foi de 15,8% em relação a 2009. Atualmente, o ICMBio possui mais servidores ativos do que o Ibama.
Fonte: Painel Estatístico de Pessoal – Ministério do Planejamento
Objetivamente, operações como a Verde Brasil 1 e 2, realizadas pelas Forças Armadas para combater o desmatamento, custam mais caro, pressionam os próprios militares e não consolidam estruturas perenes de comando, controle e fiscalização. Governos estaduais, responsáveis legais pelas polícias militares, não são ouvidos nos projetos ambientais que querem fazer uso dessas corporações. As organizações da sociedade civil clamam por mais transparência nas ações militares. Transparência demais para dados de desmatamento parece ser, aliás, um incômodo para atuação dos militares na Amazônia Legal. O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), tem competência reconhecida internacionalmente no monitoramento por satélites das mudanças no uso do solo. Na impossibilidade de questionar a qualidade ou restringir a transparência dos dados do Inpe, abertos ao público no site da instituição, o Ministério da Defesa adquiriu um satélite finlandês cuja especificação é questionada por especialistas.
A meta de redução de desmatamento publicada em 14 de abril último pelo vice-presidente Mourão, também presidente do Conselho Nacional da Amazônia Legal, permite ampliação do desmatamento em relação à média observada desde 2016. E, por fim, o MMA negocia com outros países, mas continua alijado de seu papel coordenador. Combater o desmatamento ilegal diz respeito a atacar uma rede de interesses que envolve também o crime organizado, mas cabe ao MMA pensar, articular e implementar a política ambiental, com o apoio de Ibama e ICMBio. Sem a coordenação do MMA, parece ficar claro que os resultados obtidos anteriormente não serão alcançados, muito menos a meta de zerar o desmatamento ilegal até 2030.
Em resumo, a proposta do governo Bolsonaro para a proteção da Amazônia apresentada aos Estados Unidos é frágil, revela baixa capacidade de governança e disputas entre diferentes grupos no poder. Parece funcionar apenas como “escada” para reposicionar a narrativa bolsonarista frente às pressões internacionais. Na essência, o governo federal não quer mudar nada e falha em aspectos centrais da política ambiental, ao desmantelar os órgãos federais responsáveis pela fiscalização e cumprimento das metas fixadas. Ao propor parcerias internacionais que financiem sua concepção policial e militarizada de desenvolvimento sustentável, Bolsonaro tenta, de novo, instrumentalizar as cooperações internacionais e polícias para seu projeto pessoal de poder.