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    Pátria redimida

questões cinematográficas

Pátria redimida – filme esquecido

Nas mais de quinhentas páginas do primeiro volume da biografia de Getúlio Vargas (Companhia das Letras, 2012), Lira Neto faz referências esparsas a alguns filmes, mas não menciona Pátria redimida, documentário dirigido por João Baptista Groff (1897-1970), que estreou, em Curitiba, no Theatro Palácio, no dia 7 de dezembro de 1930, menos de dois meses depois da vitória que levou Getúlio Vargas à chefia do governo provisório.

| 26 jul 2012_19h42
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Nas mais de quinhentas páginas do primeiro volume da biografia de Getúlio Vargas (Companhia das Letras, 2012), Lira Neto faz referências esparsas a alguns filmes, mas não menciona , documentário dirigido por João Baptista Groff (1897-1970), que estreou, em Curitiba, no Theatro Palácio, no dia 7 de dezembro de 1930, menos de dois meses depois da vitória que levou Getúlio Vargas à chefia do governo provisório.

Filmado em 35mm, com duração de 45’, a 16 quadros por segundo (q.p.s.), também foi exibido, na época, no Rio de Janeiro e em várias cidades do Rio Grande do Sul, sendo recebido com elogios, alguns hiperbólicos. Embora silencioso, algumas projeções foram acompanhadas por músicas patrióticas com corais ao vivo ou gravadas em discos.

Uma das primeiras legendas de informa que a “película foi executada nas zonas de combate durante a ação formidável que abateu as tropas do Catete fiéis à oligarquia de Washington Luiz”. Essa informação é dúbia, pois todos os combates vistos em são encenados. Embora o filme inclua, de fato, cenas feitas no norte do Paraná, onde a vanguarda das tropas sublevadas, sob comando de Miguel Costa, abriu caminho para a passagem triunfal do comboio de Getúlio Vargas, Groff só filmou na região depois de encerradas os combates, nos quais foram feitos cerca de 150 prisioneios e houve em torno de 100 mortos.

O filme começa com a eclosão do movimento de 3 de outubro e registra os acontecimentos em Curitiba, a partir da deposição, por militares, do presidente do Paraná e da chegada de Getúlio Vargas, no dia 20. Acompanha, depois, o trem que leva o comboio rumo norte, próximo à fronteira estadual, onde havia a expectativa do combate decisivo, em Itararé. Mostra alguns dos principais líderes do movimento, como Flores da Cunha, Góis Monteiro, Miguel Costa, Batista Lusardo e João Alberto, além do jornalista Assis Chateaubriand. Inclui, também, imagens do consulado inglês, em São Paulo, onde o presidente eleito, Julio Prestes, se asilou. E termina no Rio de Janeiro, mostrando o Forte de Copacabana, onde o presidente deposto, Washington Luís, estava preso.

Celina do Rocio e Clara Satiko Kano dão conta, em “: um filme revolucionário”, ensaio incluído em Cinema brasileiro: 8 estudos (Rio:Embrafilme, 1977) do esquecimento ao qual o documentário foi sendo relegado, nos anos seguintes, até ser destruído, junto com outros filmes de Groff, no incêndio ocorrido, em 1957, no edifício onde estava instalada a Cinemateca Brasileira, em São Paulo.

Outro incêndio, em 1968, no barracão onde Groff (foto ao lado) guardava seus filmes, na sua casa, em Curitiba, destruiu a maior parte do que restara. Ainda assim, das cinco partes de , as duas primeiras foram preservadas quase completas. Outra parte, na íntegra, veio se juntar a elas, em 1975, junto com uma cópia de quatro partes do filme. A versão recuperada na Cinemateca do Museu Guido Viaro, nessa época, tem duração de 31’, a 24 q.p.s, faltando oito legendas da original.

Essa não foi a única filmagem dos acontecimentos políticos, feita em outubro de 1930. Algumas se perderam, outras, embora preservadas, não chegam a constituir filmes propriamente, sendo mais flagrantes de eventos isolados do que narrativas estruturadas, como a de .

Dos filmes do pioneiro gaúcho Eduardo Abelim, nada restou. Apenas os títulos são conhecidos, um deles semelhante ao do filme de Groff –Pelo Brasil redimido – podendo todos serem, na verdade, de um único filme. Da Botelho Filme, ainda pode ser visto Brasil Atualidade-número especial para o estado do Paraná. De outras filmagens preservadas não se conhece a origem. É o caso de Revolução de 1930 em São Paulo, e Revolução de 1930 no Rio Grande do Norte.

Sendo tão escassas as filmagens que resistiram ao tempo, e tão precárias as informações a respeito de cada uma delas, sobressai o valor de , por ter sido preservado, apesar dos percalços, além de se  conhecer o autore as circunstâncias da filmagem.

Sabendo que o principal interesse de Groff era fotografar e filmar panoramas naturais, e a cidade de Curitiba, o que o teria levado a fazer Pátria Redimida? Até outubro de 1930, ele projetava paisagens na parede do porão da sua casa, produzia e vendia postais, fotografados e revelados por ele, na sua pequena loja de material fotográfico. E difundia seu trabalho na imprensa e em álbuns fotográficos. Nada sugeria que tivesse vocação de repórter político..

Nas suas imagens, Curitiba é representada “como uma cidade moderna”, escreve Daniele Marques Vieira, em João Batista Groff, Um olhar fotográfico no Paraná das primeiras décadas do século XX (Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Paraná, 1998). Com sua primeira câmera de filmar, mandada por engano no lugar das máquinas fotográficas que encomendara, Groff se dedicou a registrar vistas da natureza. Entre outros locais, filmou as cataratas de Foz de Iguaçu, o pico de Marumby, praias e cidades do Paraná, a ilha do Mel etc.

Tendo sido o criador  da revista Ilustração Paranaense (1927-1930), a partir de referências feitas por Lira Neto na biografia de Getúlio Vargas, talvez seja possível arriscar uma conjectura para explicar o súbito interesse de Groff pelos acontecimentos políticos de 1930, assim como o que o levou a ser detido, em 1942, e a abandonar a realização de filmes.

Dirigida por Groff, e financiada pelo presidente do estado, Affonso Camargo (deposto em outubro de 1930), a Ilustração Paranaense, segundo Daniele Marques Vieira, procurava consolidar a história da formação de Curitiba, recorrendo a versões indígenas de lendas que faziam referência ao Paraná. Segundo Lira Neto, a revista “não escondia suas simpatias pelo Duce”, e acolhia colaborações como a do cônsul da Itália, Amedeo Mammalella, “intelectual assumidamente fascista, cujo maior orgulho era ter participado da Marcha sobre Roma”. No artigo, Mammelella compara a obra de um escultor paranaense “à arquitetura da potência fascista”.

Financiado até a véspera da Revolução de 1930 pelo governo do Paraná que foi deposto, Groff teria procurado fazer um filme para agradar os novos donos do poder? Pátria redimida seria uma iniciativa em benefício próprio, resultante de um fascínio pela Marcha sobre Roma à brasileira, empreendida por Getúlio Vargas rumo à capital federal?

Lira Neto comenta semelhanças entre a “marcha revolucionária” de Getúlio Vargas e a feita oito anos antes, também de trem, por Benito Mussolini – ambas tiveram chuva e lama como principais obstáculos.

O que se pode afirmar com segurança é que, depois de outubro de 1930, Groff continuou a receber apoio, agora do novo governo, para realizar Cidades do Paraná, em 1936, mal disfarçado institucional da Caixa Econômica Federal do estado. Nesse filme, de interesse muito restrito, retomou o gosto por paisagens, construções urbanas e ruas.

No ano seguinte, retomando tema político, filmou um comício integralista em meio a pinheiros, que sem ter sido editado em forma narrativa é um documento valioso, de importância equivalente à de .

Depois do Brasil declarar guerra à Alemanha e à Itália, aliando-se aos Estados Unidos, em 1942, Groff foi acusado de ser simpatizante do Eixo, como tantos brasileiros, descendentes ou não de alemães e italianos, inclusive o próprio Getúlio Vargas, além de políticos e militares da cúpula do governo. Ameaçado de prisão se voltasse a filmar, Groff encerrou sua carreira. Dessa vez, para se adaptar à nova situação, comprou um cinema e se tornou exibidor por dez anos.

Entre a profusão de fontes consultadas pela equipe de pesquisa envolvida no projeto da biografia de Getúlio Vargas, os jornais da época servem de base para vários relatos de grande interesse. Mas até que ponto são fontes confiáveis e textos publicados podem ser tomadas ao pé da letra? Lira Neto está atento a essa dubiedade, sem dúvida, e faz algumas críticas aos jornais como fonte de informação histórica. De maneira geral, porém, assume como factual o que foi publicado, acatando o texto por seu valor de face.

Um exemplo simples confirma o risco de tomar notícias de jornal como fonte: a crítica sobre , publicada pelo Jornal da Manhã, de Porto Alegre, em 28 de dezembro de 1930, citada por Celina do Rocio e Clara Kano, no ensaio mencionado acima. Segundo o artigo,

“A Groff-Film de Curitiba realizou um filme sobre a revolução, focalizando os principais aspectos da luta realizada nos campos do sul do país. Desde os pampas até as fronteiras de São Paulo, por onde se estenderam tropas revolucionárias; nas trincheias de Itararé, Ribeira e em outros pontos onde se chocaram as forças governistas e revolucionárias a máquina cinematográfica esteve filmando aspectos e flagrantes dos combates, dos encontros.[…]”

O tom ufanista e a propaganda enganosa – uma vez que a câmera de Groff, como dissemos, não filmou “aspectos e flagrantes dos combates, dos encontros” – são suficientes para indicar a baixa confiabilidade dos jornais.

Por outro lado, sugerem não haver motivo para excluir um filme como , além de outras filmagens e fotografias, de pesquisa tão ampla quanto a feita pela equipe de Lira Neto.

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