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    Jota durante sua exposição individual, em outubro de 2021, quando teve todos os quadros vendidos antes mesmo de serem expostos Foto: Divulgação/Alex Reis

depoimento

Pedra, papel e pincel

Ajudante de pedreiro criado em morro do Rio conta como trocou os tijolos pelas tintas e conquistou prêmio internacional

Johny Alexandre Gomes | 08 dez 2021_15h27
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Crescido no Complexo do Chapadão, na Zona Norte do Rio de Janeiro, Johny Alexandre Gomes, o Jota, de 20 anos, viu a vida mudar no último ano. Sempre gostou de desenhar e em 2020 começou a pintar, por incentivo de um colega, em pedaços de madeira ou papelão que encontrava no dia a dia como ajudante de pedreiro. O que não imaginava é que, em pouco tempo, suas obras, sobre temas como pobreza, violência, racismo e o cotidiano na periferia, estariam expostas em eventos artísticos importantes e seriam cobiçadas por colecionadores. Jota diz que o dia mais feliz de sua vida foi o de sua exposição individualmesmo com o sucesso de venda dos quadros, o que mais lhe marcou foi a visita das crianças do Chapadão. A conquista mais recente do carioca foi o Prêmio Príncipe Claus, um valor em dinheiro conferido pelo fundo holandês homônimo a artistas e profissionais da cultura de várias partes do mundo. Com a premiação, Jota pretende realizar ações sociais para as crianças do Chapadão e construir seu ateliê na comunidade.

Em depoimento a Lianne Ceará

 

Nasci e me criei no Complexo do Chapadão, distante de qualquer acesso à arte. Mesmo assim, sempre gostei de desenhar. Desenhava meus colegas de turma da escola e fazia ilustrações. Pintar sempre achei algo mais complexo, nunca tive contato com essa técnica. Ano passado, durante a pandemia, um amigo meu do colégio, que pesquisava coisas sobre pintura, me mostrou algumas telas de artistas de que ele gostava. Ele sabia que eu gostava de desenhar e quis me encorajar, mas eu falei: “Pô, isso não é pra mim, não.” Eu trabalhava como ajudante de pedreiro, subindo laje, pintando e construindo com meu tio lá no Chapadão. Com um tempo, comecei a pensar melhor no assunto que meu colega havia me falado e passei a pintar, sem nenhum conhecimento técnico, com lápis de cor e tinta acrílica normal mesmo, em pedaços de madeira, papelão e compensado, que encontrava nas obras ou que tinha em casa mesmo. 

Pintura vai, pintura vem, comecei a compartilhar nas redes sociais, e as pessoas curtiam, eu via que gostavam, mas eu não tinha intenção de nada, era só um hobby, não queria lucrar. Um colecionador de arte do Rio me achou no Instagram, entrou em contato comigo e quis comprar tudo. Fiquei felizão. Logo depois, o pessoal do MT Projetos de Arte me localizou e me fez entender a arte de uma forma muito mais profissional. Antes eu achava impossível viver de arte, não tinha nenhuma referência dessas, só via meus amigos admirando jogador de futebol, cantor, e ficava achando que esse papo de arte era furada, que era difícil pra caramba. Hoje eu pesquiso e estudo sobre arte para ter a minha identidade, antes eu só aprendia fazendo mesmo. De lá pra cá, nesse pouco mais de um ano, minha vida mudou totalmente. 

Minhas telas foram expostas em outubro de 2020 na ArtRio, uma das principais feiras de arte da América Latina, e eu já fiz até uma exposição individual. Os quadros foram todos vendidos antes mesmo da abertura da exposição, esse dia foi o mais feliz da minha vida. Vi uma galera famosa que eu só via na tevê lá e fiquei impressionado por aquela gente estar ali, vendo meus quadros. O que me fez mais feliz mesmo foi levar o pessoal e a criançada lá do Chapadão para ver meus quadros na exposição, eu via os olhinhos deles brilhando. Não sei o que aconteceu na mente deles, mas espero ter despertado algo bom, quero que eles não tenham medo nem deixem de acreditar no que eles gostam, que percebam que não têm que gostar só de jogador de futebol, assim como eu via. É importante ter alguma referência.

Quando eu me vejo ocupando e estando em lugares a que eu nunca ia, até aqui na Zona Sul do Rio mesmo, eu fico felizão, chego a não acreditar. Outro dia minhas obras estavam sendo projetadas nos salões do Copacabana Palace, num evento luxuoso, quando eu ia imaginar isso? Chegar nesse lugar – antes eu mal descia o morro – é coisa de outro mundo, e eu achava que era impossível. Mas tô vendo que é possível. Até fiquei feliz em ver minha obra ali, mas emocionado mesmo eu fiquei na minha exposição, vendo a galera do Chapadão lá, vendo minhas pinturas que retratam temas nossos ali expostas. Reproduzo coisas que para muitas pessoas é uma realidade distante, mas que estão sempre presentes na minha vida. Pinto cenas sobre racismo, pobreza, funk, que são cenas que eu tenho no meu cotidiano.

É difícil fazer com que esses temas ultrapassem fronteiras, mas acredito que tenho conseguido. Do lugar de onde eu vim, a pressão para trabalhar e botar dinheiro em casa é grande. “Tem que arranjar um emprego pra ajudar dentro de casa”, minha mãe me falava. Ela também duvidava muito de que minha arte podia ser um emprego. Hoje ela tá felizona com tudo que alcancei. Tenho só 20 anos e já pinto até com tinta importada. Pintar na madeira era legal, mas agora na tela é bem melhor. Não preciso mais trabalhar como pedreiro.

Recentemente, recebi a notícia que ganhei um prêmio internacional, o Prêmio Príncipe Claus, da Holanda. Isso nunca nem passou pela minha cabeça e, se passasse, eu diria um ano atrás que era impossível. Minha família ficou sem acreditar, foi bom demais ver a felicidade deles. O pintor do Chapadão ganhando prêmio internacional, tá ligado? Nos próximos passos, com a premiação, quero fazer um ateliê pra mim lá no Chapadão e montar projetos sociais pra ver a criançada de lá como eu vi no dia da minha exposição, com os olhinhos brilhando e sem medo de acreditar nas coisas deles.

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