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questões político-jurídicas

Pegos pelo SUS

Ironia da história aumenta pelo fato de Bolsonaro e sua turma terem sido apanhados por um sistema eletrônico público e auditável

Rafael Mafei | 04 maio 2023_13h32
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Se há dúvidas ainda pendentes sobre o destino jurídico de Jair Bolsonaro, algo está claro desde logo: as coisas não estão ficando melhores a cada dia para ele. Além das perspectivas sombrias na Justiça Eleitoral, onde é provável que sua inelegibilidade seja em breve declarada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), outras tantas investidas têm se aproximado, cada uma a seu ritmo, do ex-presidente e de seu círculo mais íntimo. Aos inquéritos penais sobre, entre outros possíveis crimes, milícias digitais, tentativa de golpe no 8 de janeiro, descaminho e desvio das joias sauditas, um punhado de crimes da pandemia e interferência na Polícia Federal, soma-se agora a investigação sobre fraudes a documentos e sistemas públicos de saúde.

A apuração veio a público já com um conjunto robusto de evidências documentais que levam o esquema a um palmo do nariz de Bolsonaro. Seu braço direito e homem de absoluta confiança, com quem o ex-presidente talvez passasse mais tempo do que gastava com a própria família, agiu, de forma planejada e através de diversos atos, para (i) fraudar diversos cartões vacinais, entre os quais os do ex-presidente e de sua filha; (ii) inserir essas informações fraudulentas em um sistema informático do governo federal, visando a obter vantagens que sem elas não estavam garantidas; (iii) apagar essas informações fraudulentas após havê-las utilizado, na esperança de que isso eliminaria os rastros dos crimes anteriores (sim, sim, que gênios…); e (iv) constituir, em seu favor, documento público de teor falso, que pode ou não ter sido efetivamente usado, no Brasil ou no exterior.

A motivação para a prática dos crimes apontados pela Polícia Federal está desde logo bastante clara: diversos dos envolvidos, Bolsonaro inclusive, precisavam de um documento com fé pública que atestasse sua condição de vacinados, para garantir que pudessem ingressar, permanecer e retornar de um país que exigia a imunização de viajantes estrangeiros. Apenas um dos envolvidos precisava remover obstáculos de outra ordem para obter um visto de viagem: Marcello Siciliano (PP-RJ), ex-vereador do Rio de Janeiro, não conseguia obter vistos para os Estados Unidos por ter sido citado nas investigações sobre a morte de Marielle Franco, e pediu ajuda ao braço direito de Bolsonaro, o tenente-coronel do Exército Cid, para que essa dificuldade fosse superada. Em troca, garantiria que agentes públicos do município fluminense de Duque de Caxias, reduto de políticos fiéis a Bolsonaro, inserissem informações falsas, inclusive as do ex-presidente, no cadastro nacional de vacinação. “Quem quer rir tem que fazer rir” é o lema da bandeira que tremula sobre essa irmandade.

Tudo começou a dar errado quando, já há algum tempo, a Polícia Federal teve a boa ideia de focar suas atenções em Mauro Cid, provável executor dos possíveis crimes praticados em benefício de Jair Bolsonaro. Atuando como agente público comum em funções civis, Cid não dispunha das proteções constitucionais e privilégios funcionais que a Constituição guarda nem para a Presidência da República nem para agentes militares. Seu celular, uma vez apreendido no inquérito das milícias digitais, disse muito aos investigadores, inclusive sobre potenciais crimes até então desconhecidos, como a fraude aos cartões de vacina e ao sistema do SUS. Daí foi puxar o fio do novelo, e as perícias mostraram que Jair Bolsonaro e sua filha caçula estiveram entre os beneficiários do esquema.

Entre os possíveis crimes que figuram no horizonte de alguns ou todos os investigados estão, em primeiro lugar, a falsidade ideológica, com pena de dois a cinco anos. Todo o esquema começou com a inserção de dados mentirosos em um documento público, o cartão físico de vacinação, assinado por um agente com fé pública (um médico do SUS), com o objetivo de alterar a verdade sobre um fato de relevância jurídica (o status vacinal). O passo seguinte, que implicaria outro crime em potencial – inserção de dados falsos em sistema de informações, pena de dois a doze anos –, foi a transposição dessa informação falsa do documento físico para o sistema do SUS. Na sequência, veio um terceiro ato: a alteração não autorizada do mesmo sistema, dessa vez para suprimir os dados falsos inseridos, com pena de até dois anos. Finalmente, para cada vez que o atestado fraudulento de vacinação tiver sido efetivamente utilizado, restará configurado um delito de uso de documento falso, com pena de dois a cinco anos. Mesmo que o crime de corrupção de menores, aventado pela PF, pareça por ora improvável, pois não há indícios de que a filha de Bolsonaro tenha sido diretamente envolvida ou exposta à execução de qualquer delito, a encrenca não é pequena, como parecem acreditar os bolsonaristas que desdenham da gravidade dos delitos para defender o ex-presidente nas redes.

Como a materialidade dos crimes parece estar convincentemente demonstrada pelos muitos rastros digitais deixados pelos investigados, seja nas mensagens de seus celulares, seja no próprio sistema do SUS (que documenta cada acesso e cada alteração, tentada ou consumada, sobre seus dados), o esforço daqui em diante deve se concentrar na determinação do quinhão de responsabilidade de cada um dos envolvidos. Bolsonaro sabe disso, razão pela qual apressou-se em dizer que ele não tinha conhecimento, nem participou da execução, de nenhum dos atos de fraude praticados em benefício dele e da sua filha. De fato, quem tem as mãos sujas com os rastros do crime são os médicos que assinaram a fraude, os agentes públicos que inseriram os dados mentirosos no sistema, e os militares, comandados por Mauro Cid, que agiram positiva e diretamente para colocar em andamento essa engenhoca de crimes de falso. 

Mas não é impossível que Bolsonaro seja alcançado, pois sua relação hierárquica e sobretudo o nível de confiança pessoal que o une a Mauro Cid podem levar à interpretação de que as condutas praticadas pelo ajudante de ordens eram também suas. Isso porque Cid agia de forma regular e rotineira em nome de Bolsonaro, sendo notoriamente reconhecido como um longa manus do presidente – inclusive pela chancela pública que o próprio Jair lhe dava. O ajudante de ordens está para Bolsonaro como os diretores-corruptores das empreiteiras estavam para seus chefes. Era com ele que Bolsonaro contava não apenas para as tarefas ordinárias, que são típicas da ajudança, como também para as inconfessáveis. Foi o mesmo Mauro Cid que enviou um emissário para, sem sucesso, tentar liberar os diamantes que Bolsonaro queria guardar para si. Alexandre de Moraes e a Polícia Federal não parecem acreditar que Cid tenha tido um arroubo de pró-atividade insubordinada e agido à revelia de seu chefe. Só Lindôra Araújo, a vice-procuradora-geral que não consegue ver maldade em Bolsonaro, acredita nisso.

Além da medida de autoria de todos os investigados, a principal questão jurídica remanescente tem a ver com a competência processual. Moraes e a PF sustentam que há íntima relação entre a fraude aos cartões e os atos antidemocráticos, pois ela serviria para permitir ao presidente manter sua persona antivacinal. Daí porque, diz Moraes, o juiz prevento seria ele, que já cuida dos atos antidemocráticos. Mas a modificação da competência pela prevenção exige mais do que a circunstância de um fato ter sido descoberto no contexto da investigação sobre outro, sob pena de um procedimento de objeto mais amplo fagocitar tudo no seu entorno, em prejuízo da regra constitucional do juiz natural. Nunca é demais lembrar que foi esse o pecado jurídico que desmontou a operação Lava Jato, que tentou constituir a 13ª Vara Federal de Curitiba como uma espécie de juízo universal para assuntos de corrupção federal. 

 

Além da defesa jurídica do “fraudaram meu cartão, foi?”, Bolsonaro e seu entorno montaram também um discurso político para o revés de ontem. Apontaram para a natureza política da operação, que teria sido armada para reagir a uma semana boa do ex-presidente, que desbancou o ministro da agricultura como principal personagem de um grande evento de ruralistas no interior de São Paulo, e ruim para o governo, que deu mostras de sua fraqueza na Câmara ao não conseguir garantir a votação do PL 2630, sobre transparência e responsabilidade na internet. 

Esse argumento pode colar perante a claque, mas faz pouco sentido juridicamente. Não apenas porque a ação da PF foi precedida de uma longa investigação, que estava em curso muito antes das sortes e reveses desta semana, mas principalmente porque uma operação de porte, como a desta quarta-feira, precisa ser preparada com certa antecedência. É jurídica e logisticamente impossível que uma ação da PF contra múltiplos investigados, em diferentes locais do país, seja posta em marcha na quarta-feira porque na noite do dia anterior o governo não conseguiu encaminhar uma votação no Congresso.

Ao mesmo tempo em que os bolsonaristas buscam reagir, é impossível negar a significação política de que esse apuro específico, que chega próximo de Bolsonaro como nenhuma outra ação anterior – a busca e apreensão em sua residência, inclusive de seu celular, são um novo patamar de pressão contra ele – tenha se dado em uma série de crimes contra o SUS, a quem sua presidência tanto maltratou. Não bastasse isso, as provas fartas que parece haver quanto aos crimes cometidos só existem porque o sistema eletrônico violado, o banco de dados vacinal, é auditável. Se os crimes tivessem ficado no papel, e os cartões físicos tivessem sido destruídos após sua utilização, é possível que a materialidade dos delitos não pudesse ser comprovada. Mas graças a um sistema de informações que registrou cada passo de seus violadores, Bolsonaro e sua trupe não podem contar com a impunidade em seu favor.

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