A construção de cidades – mediante a urbanização de áreas rurais, a implantação de rede de infraestrutura e o erguimento de edificações – é um processo complexo, que exige coordenação entre os diversos agentes envolvidos. Cabe aos municípios controlar essas atividades para produzir um território ordenado, que promova o bem-estar da população, o que se dá pela realização de obras públicas e pela regulação do mercado imobiliário.
Para isso a legislação urbanística adota técnicas conhecidas: delimitação do perímetro urbano, determinando onde podem ser implantados novos loteamentos (o chamado “parcelamento do solo”); divisão do território em zonas, com a identificação das atividades permitidas em cada uma (“zoneamento de usos”); e estabelecimento de índices urbanísticos que definem o potencial construtivo de cada lote (“ocupação”). Em geral essas normas são encontradas em mapas e tabelas aprovadas como anexos de Leis de Uso e Ocupação do Solo (LUOS), também chamadas de “leis de zoneamento”, ou do Plano Diretor (PD), que é o principal instrumento do urbanismo brasileiro.
É essa regulação urbanística que define as densidades populacionais, a disponibilidade de equipamentos públicos e as atividades admitidas em cada região. Baixas densidades e usos segregados, por exemplo, aumentam o custo dos serviços e inviabilizam o transporte coletivo, induzindo os moradores a fazer uso de automóveis particulares e gerando congestionamentos de trânsito e poluição.
Apesar de sua importância para a qualidade de vida nas cidades, essas normas são desconhecidas pelas pessoas e não têm seus impactos avaliados. A legislação urbanística acaba sendo esquecida e mantida inalterada por décadas – a despeito de, em muitos casos, estar criando mais problemas que soluções. Por isso é fundamental rever essa regulação e resgatar a dimensão essencialmente urbanística e operacional dos Planos Diretores.
Ter um plano diretor se tornou obrigatório para as cidades com mais de 20 mil habitantes a partir de 1988, quando a nova Constituição Federal adotou um capítulo específico sobre política urbana. Cabe ao Plano Diretor estabelecer as “exigências fundamentais de ordenação da cidade” definidoras da função social da propriedade.
Essa obrigação foi reforçada pelo Estatuto da Cidade, lei federal que regulamentou a matéria, em 2001, prevendo a revisão do PD a cada dez anos. O Estatuto definiu como conteúdo obrigatório do Plano Diretor a aplicação dos instrumentos de política urbana por ele criados. Omitiu-se, no entanto, com relação aos instrumentos tradicionais, como a desapropriação e o zoneamento.
Para eliminar essa lacuna, o Conselho das Cidades, órgão com competência para orientar a aplicação da legislação federal de desenvolvimento urbano, recomendou a consolidação no plano diretor da legislação de uso e ocupação do solo. Em 2012, introduziu-se no Estatuto da Cidade a determinação de que municípios com áreas de risco incluíssem no Plano Diretor parâmetros de parcelamento, uso e ocupação do solo.
Apesar disso, muitos municípios tratam o PD como uma espécie de plano de governo, que estabelece diretrizes para todas as políticas públicas, mas cuja operacionalização fica condicionada a uma futura e incerta regulamentação. A regulação urbanística permanece inalterada, ficando sua atualização pendente da aprovação de uma nova lei de uso do solo. Esta, por sua vez, é elaborada sem uma avaliação do impacto da legislação vigente ou consulta à população, adota uma linguagem hermética e muitas vezes impede o bom funcionamento do mercado.
Nos municípios que separam Plano Diretor e Luos, em geral o PD trata do “macrozoneamento”, que identifica, com denominações diversas, áreas com infraestrutura, porém de pouca população; povoadas, todavia carentes de infraestrutura; de ocupação possível, contudo restrita, em função de vulnerabilidades ambientais etc. O macrozoneamento não define com precisão o que pode ser construído em cada macrozona, algo reservado à Luos.
Em tese, o zoneamento deveria ser decorrência do macrozoneamento. Na prática, entretanto, ninguém controla essa relação – e o que vale é o zoneamento. Além disso, em muitos municípios, existe um zoneamento antigo, que se mantém praticamente inalterado por décadas, em que pesem a aprovação e a revisão de sucessivos Planos Diretores.
Independentemente de tais disfunções, a simples existência desses dois documentos é fonte de insegurança jurídica, pois, uma vez aprovado um novo PD, automaticamente se cria um descasamento com a Luos existente, o que só será resolvido anos mais tarde, quando esta for atualizada.
Some-se a isso o fato de que, por força do Estatuto da Metrópole, editado em 2015, nas regiões metropolitanas deve ser elaborado um Plano de Desenvolvimento Urbano Integrado (PDUI), que se sobrepõe aos planos diretores municipais. O principal objeto do PDUI é, precisamente, o macrozoneamento da metrópole. Nesse caso, ao seguir-se à risca o que determina o Estatuto, teríamos dois macrozoneamentos – o do PDUI e o do PD – anteriores ao zoneamento propriamente dito (Luos), com três normas incidindo ao mesmo tempo sobre um mesmo território. Ora, parece mais racional deixar o macrozoneamento para o PDUI e incorporar ao Plano Diretor o zoneamento.
Quanto aos demais municípios, pequenos e médios, a incorporação do zoneamento ao PD também contribuiria para simplificar a legislação urbanística para moradores e empreendedores.
Para além do macrozoneamento e do zoneamento, o Estatuto da Cidade admite ainda que o Plano Diretor defina o desenho urbano das zonas de expansão, a ser observado na elaboração dos futuros projetos de loteamento. Esse seria um detalhamento excessivo para as grandes cidades, mas adequado para as pequenas, que não têm por que adotar mais de um documento de ordenamento territorial.
A política urbana é operacionalizada por instrumentos que viabilizam a atuação do poder público. Alguns são tradicionais, como o zoneamento, a desapropriação e o loteamento; outros, relativamente recentes, introduzidos a partir do Estatuto da Cidade, como o parcelamento ou edificação compulsórios, que obriga a urbanização e a ocupação de terrenos ociosos, e a outorga onerosa do direito de construir, que exige uma contrapartida dos proprietários beneficiados com aumento de potencial construtivo. Alguns municípios criam, ainda, instrumentos novos, como a concessão urbanística, pela qual se delega a uma empresa privada a execução de um projeto urbanístico e esta se remunera com receitas imobiliárias geradas pelo próprio empreendimento.
A disciplina desses mecanismos, assim como de procedimentos administrativos para a sua aplicação, não deve ser incluída no PD. Trata-se de uma legislação de caráter permanente, indispensável à execução da política urbana, que não se confunde, porém, com os planos urbanísticos, aos quais cabe definir onde aplicar cada instrumento.
Ressalte-se que a Constituição distingue essas duas competências. A legislação abstrata sobre direito urbanístico, que abrange os instrumentos de política urbana, compete à União e aos estados, podendo ser suplementada pelos municípios. Já a competência para ordenar o território, mediante planejamento do parcelamento, do uso e da ocupação do solo urbano, é privativa dos municípios.
A disciplina dos mecanismos de política urbana poderia, portanto, ser inteiramente realizada por lei federal ou estadual, ficando para a esfera municipal a tarefa de apenas aplicá-los. Contudo, tendo em vista que o Estatuto da Cidade é muito genérico, e que os estados não vêm legislando sobre esse tema, torna-se necessário que os municípios o façam.
O ideal é que essa legislação seja editada antes da elaboração do Plano Diretor, pois ela é necessária à sua implementação. No entanto, sua incorporação ao próprio PD acaba por misturar os dois assuntos e esvazia a discussão propriamente urbanística sobre o futuro da cidade.
As revisões dos Planos Diretores constituem uma preciosa oportunidade de reexame da regulação urbanística. Para tanto, é preciso substituir os instrumentos complicados e genéricos atualmente existentes por outros mais simples e enxutos, que se atenham ao essencial e sejam entendidos pela população – a quem, afinal, o poder público deve servir.