As câmeras acopladas aos uniformes dos policiais que estavam na viatura VTR-M38019 na madrugada do dia 13 de maio registravam o tráfego do carro pela periferia da Zona Leste de São Paulo. Pelos vidros, viam-se as casas passando ao lado em velocidade normal.
Dentro do veículo, um militar mexe no seu celular, outro bebe água em um garrafa térmica e o que está sentado no banco do carona dá baforadas em um cigarro eletrônico. O motorista por vezes olha para fora da janela como quem procura por algo.
Ocasionalmente, um deles bota para fora da janela a ponta de sua arma.
Tudo muda às 2h43.
O giroflex é ligado. Pela aceleração da paisagem nas janelas, se vê que o automóvel arrancou. Foi o momento em que a viatura começou a perseguir a moto Honda CG 160 Start de placa SSZ-8F26. As casas da rua agora passam em alta velocidade e, dentro do veículo, há uma trepidação acentuada. Não há som nos vídeos.
A moto é pilotada por Albert Wanderson de Moraes Balmant, de 18 anos, e tem na garupa Manuella Sousa Carvalho, de 13. Por vezes, a distância entre viatura e motocicleta é pequena. O carro persegue a dupla por algumas ruas e dobra as esquinas em alta velocidade.
Às 2h45, acontece a tragédia. Encurralada, a moto colide com o desnível de uma calçada e os jovens são arremessados contra um poste de luz. A cena é visível dos vidros.
Os policiais mexem os braços, um deles faz um sinal abrindo e fechando uma mão, tocando as pontas dos dedos, típica de quem pede para que algo seja feito rapidamente. O giroflex é desligado. A velocidade da viatura que deixa a cena é reduzida. Os quatro homens não param para prestar socorro nem acionam uma unidade do Samu.
Menos de cinco minutos depois, como mostram as câmeras dos uniformes, a viatura estaciona em um posto de gasolina. Três dos militares descem do carro. A última imagem das câmeras dos uniformes mostram o quarto militar estacionando a viatura na loja de conveniência do posto e pegando algo no banco de trás, enquanto seus colegas de trabalho e de ação já estão fora do veículo.
A piauí teve acesso ao inquérito da Polícia Civil sobre o caso, que está sendo mantido sob sigilo há quase dois meses, sem que informações sejam repassadas aos familiares das vítimas ou para a Justiça Militar. Nele, constam o nome dos militares da Força Tática que perseguiram e não prestaram socorro aos adolescentes: Carlos Augusto Silva dos Santos, Guilherme Camargo Costa, João Daniel da Cunha Balog e Lucas Mendonça Carrara.
Em razão dessa ocorrência, três deles – Carlos Augusto, João Daniel e Lucas – prestaram depoimento no dia 22 de maio, na 49a Delegacia de Polícia, onde o delegado Daniel Bruno F. Colombini coordena as investigações. Os três policiais que depuseram adotaram a mesma estratégia. Guilherme não prestou depoimento nesta data por estar de licença após ter se casado.
Os três militares presentes no depoimento usaram a prerrogativa de não falar uma palavra, daí constar nos autos a frase: “Ciente sobre os fatos que são apurados no inquérito militar, manifestou seu direito de permanecer em silêncio e de somente se manifestar em juízo.” João, Carlos e Guilherme também deram o mesmo endereço residencial, uma rua do bairro Jardim Alto Paulistano, na Zona Leste da capital paulista, cujo número não consta no site do Google Mapas. Cada um apareceu com um advogado diferente. Além dos depoimentos, foram entregues as imagens das câmeras de seus uniformes, conforme havia solicitado o delegado. Guilherme compareceu ao depoimento, quando ficou também em silêncio, no dia 27 de junho. As imagens de sua câmera não constam no inquérito.
O inquérito registra 30 minutos de cada uma das três câmeras. Carlos Augusto está sentado do lado esquerdo no banco passageiro, João Daniel é quem pilota a viatura e Lucas está no banco do carona. Como a moto colidiu no poste ao lado direito da rua, é a câmera do uniforme de Lucas que mostra com mais clareza o momento da tragédia.
As imagens, no entanto, não têm som (os policiais são responsáveis por ligar o dispositivo de áudio). “Não constam os áudios porque eles não ligaram a câmera”, explica Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. As atuais câmeras da PM de São Paulo são da marca Axon, que mesmo desligada capta imagens (em qualidade inferior), porém sem som. “É uma infração não ter ligados as câmeras, ainda mais em uma ocorrência que resultou em duas mortes.”
A situação deve piorar. Um novo edital do governo paulista para a instalação de câmeras corporais foi vencido pela Motorola, cujos modelos não gravam nada quando estão desligados – nem imagens em baixa resolução, como o caso dos dispositivos da Axon que registraram a ação que resultou nas mortes de Manu e Albert. “Com o modelo novo, não teríamos nem essas imagens deste caso.”
Ainda que os nomes dos quatro militares tenham sido revelados, os familiares das vítimas seguem sem saber o que aconteceu com cada um deles. Foram esses parentes, aliás, que encontraram uma série de vídeos de câmeras de prédios e estabelecimentos comerciais que, combinados, ajudam a mostrar com clareza a perseguição, conforme mostrou esta reportagem da piauí.
Não são os únicos a ficar sem informações. Nem quem comanda a investigação do caso tem essas notícias. No dia 3 de julho, o delegado Colombini mandou um ofício para a Corregedoria da Polícia Militar de São Paulo a fim de saber se houve a instauração de procedimento para a apuração pela prática de crime militar, informando a natureza dos crimes e o número do procedimento. Na delegacia, quando os familiares das vítimas prestaram depoimento, ainda em maio, existia a suspeita de que tudo caminhasse para que os envolvidos fossem investigados apenas por omissão de socorro. No entanto, depois da obtenção de câmeras de segurança no trajeto da moto e da viatura, a perseguição deixou de ser uma suspeita. O próprio investigador Celso dos Santos relata da seguinte forma o caso, em um despacho presente no inquérito: a imagem “bem nítida” mostra uma guarnição em “perseguição” a uma moto com dois ocupantes.
A reportagem de piauí entrou em contato com a Secretaria de Segurança de São Paulo com alguns questionamentos: se existe algum histórico dos quatro militares da Força Tática junto à Corregedoria; por qual razão o som das câmeras estava desligado; qual medida disciplinar foi aplicada a cada um deles, caso tenha sido aplicada alguma; por qual razão três deles deram o mesmo endereço residencial em seus depoimentos; e se João Daniel da Cunha Bolog, o piloto da viatura, já sofreu algum tipo de punição por ser dono e atuar em uma empresa de segurança privada. Dentre os diferentes graus de infração (leve, média e grave), trabalhar como segurança figura entre as graves.
A assessoria respondeu às perguntas por uma comunicado: “A Polícia Militar investiga todas as circunstâncias do caso por meio de um Inquérito Policial Militar (IPM), conduzido pela Corregedoria. O envolvimento de um dos policiais em segurança privada também é apurado, já que essa atividade constitui infração disciplinar. Os PMs permanecem afastados do serviço operacional e mais detalhes serão preservados em decorrência do sigilo das apurações”.
“Foi torturante”, disse Ilma Sousa, após conseguir acesso às imagens da perseguição que resultou na morte de sua filha. Ela não conseguiu assistir tudo. “Fiquei dilacerada, em estado de pânico e vivendo um choque novamente. É como se eu voltasse àquela madrugada e vivesse um filme de terror, no qual eu sou protagonista. Ninguém merece passar por uma dor assim.” Já Michael Weslei, irmão de Albert, define da seguinte forma o fato de a viatura ter quatro homens na perseguição, que deixaram o lugar sem prestar socorro a dois adolescentes: “A mais pura covardia.”
Manu morreu na hora da colisão. Albert, a caminho do hospital. Quem chamou a polícia, o Samu e os bombeiros foram os vizinhos que escutaram o estrondo. Os dois voltavam para casa após se encontrarem em uma festa de rua, em frente a uma adega, na mesma região onde moravam, no Jardim Iguatemi.
A morte dos adolescentes após essa perseguição sem prestação de socorro é um dos casos que ilustra uma fase especialmente sangrenta da polícia de São Paulo. A reportagem Um Homem e Seu Passado, publicada na edição de maio da revista piauí (que pode ser lida neste link), narra a trajetória chefe da Secretaria de Segurança Pública do estado, Guilherme Derrite, repleta de mortes em ações das quais participou.