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    Silvia Regina aplicando um cartão amarelo na partida entre Guarani e São Paulo, no Brasileirão de 2003. | Foto: Arquivo Pessoal

anais do futebol

Pioneira do apito

A história, o erro e o machismo enfrentado pela primeira mulher a apitar um jogo masculino da Conmebol

Pedro Tavares | 18 jul 2023_10h03
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O Morumbi estava praticamente vazio no feriado de Nossa Senhora Aparecida, na tarde de 12 de outubro de 2003, para o clássico São Paulo x Corinthians. Os dois times estavam em uma má fase: vinham de derrotas por 3 x 0, contra Bahia e São Caetano, respectivamente. Para os jogadores, entretanto, o clássico surgia como uma chance de reanimar a torcida e honrar aqueles pouquíssimos pagantes presentes. Depois de anunciar as escalações, a transmissão da TV Globo apresentou o trio de arbitragem: Silvia Regina de Oliveira e as assistentes Ana Paula da Silva e Aline Lambert. O narrador Galvão Bueno chama o comentarista de arbitragem, Arnaldo Cezar Coelho, para analisar o trio. “Uma atração a mais”, pontuou. Há vinte anos, aquele era o primeiro e único trio de arbitragem 100% feminino da CBF para jogos do Brasileirão série A masculino. Ao comentar sobre a árbitra principal, Coelho prosseguiu: “Talvez sua pouca experiência seja compensada pela sensibilidade que as mulheres têm apitando futebol. Elas são mais atenciosas, elas são mais exigentes, rigorosas. Têm mais amplitude visual, como se diz.” Silvia apitava jogos amadores desde 1982, jogos juvenis da federação paulista desde 1985, jogos profissionais a partir de 1999 quando entrou pra CBF e em 2001 se tornou árbitra FIFA. O comentarista de arbitragem terminou sua primeira intervenção prevendo que seria um jogo difícil. Ele tinha razão. 

Aos 12 minutos do segundo tempo, após um escanteio para o São Paulo, o atacante tricolor Luis Fabiano atinge o rosto do zagueiro do Corinthians, Marquinhos, com uma cotovelada, e é expulso. Antes de sair de campo, revoltado com a decisão da arbitragem, Luis Fabiano se dirige a Silvia exaltado. Tinha que ser mulher mesmo. Sua burra”, registrou a súmula da partida ao relatar o que o jogador disse à árbitra. Passados 20 minutos desse lance, uma outra expulsão, agora para o lado do Corinthians: em uma dividida, o atacante Abuda deixa a perna e acerta o rosto do goleiro Rogério Ceni. O clássico terminaria com a vitória do São Paulo, que fez 3 gols contra nenhum dos alvinegros. O atacante Luis Fabiano foi julgado dias depois pela Justiça Desportiva e levou quatro jogos de suspensão. Para quem quiser rever a partida, um vídeo no YouTube traz os melhores momentos do jogo com a seguinte descrição: “Em jogo marcado pela péssima arbitragem de Silvia Regina e suas assistentes, o São Paulo goleou o Corinthians no Morumbi.” Para o comentarista Arnaldo Cezar Coelho, as duas expulsões foram corretamente aplicadas. 

 

“Eu comecei a gostar de futebol por causa do meu pai”, conta Silvia Regina da sala do VAR (arbitro de vídeo) na sede da Federação Paulista de Futebol, em Barra Funda, São Paulo, onde trabalha como professora de cursos de arbitragem, além de assessorar a observação do VAR. O pai, Luiz Emilio de Oliveira, torcedor fanatico do Juventus da Mooca, levava Silvia para assistir aos jogos do time no estádio Conde Rodolfo Crespi, na Rua Javari, no bairro da Mooca, Zona Leste de São Paulo. Com capacidade para um pouco mais de 4 mil pessoas, o estádio permite que os torcedores fiquem bem próximos ao campo, com visão privilegiada para os jogadores e os repórteres que circulam ao longo da partida. “O meu primeiro interesse foi ser repórter de campo”, conta. Ao lado da biblioteca municipal perto de sua casa, em Mauá, região metropolitana de São Paulo, Silvia viu um cartaz anunciando um curso de arbitragem. “Ali eu pensei: se eu quero trabalhar com futebol, no mínimo eu tenho que saber a regra do jogo”, lembra. 

Em 1980, aos 16 anos, Sílvia se inscreveu no curso de arbitragem da Liga de Futebol Mauá. Ela era a única mulher da sua turma e não tinha nenhuma outra referência no ramo que servisse de inspiração. “Muito tempo depois eu fui descobrir que o Brasil teve uma pioneira, na década de 1960, mas isso não chegava pra mim naquela época”, relata. Oliveira faz referência à mineira Léa Campos, conhecida como a primeira mulher árbitra de futebol profissional do mundo, que atuou na década de 1970 no Brasil e no exterior. Hoje, aos 78 anos, Campos mora nos Estados Unidos.

Quando Silvia concluiu o curso, dois anos depois, seu interesse continuava com o jornalismo esportivo. A arbitragem só surgiu como opção profissional quando outras duas árbitras a convidaram para formar o que seria um dos primeiros trios femininos nos campos de futebol do Brasil. Ao longo da década de 1980, ao lado de Cleide Rocha e Rita de Cássia Rogério, Silvia Regina apitou muito: jogos de base, amadores, campeonatos de indústrias, (oficialmente chamado de Campeonato Classista), que competiam funcionários de empresas como Pirelli, Goodyear, Volkswagen, campeonatos regionais, mas nunca jogos profissionais ligados à federação paulista. ”Elas acabaram desistindo alguns anos depois”, relata. O fato de haver pouca perspectiva de serem designadas para apitar jogos maiores foi um dos fatores, dentre outros, que desestimulou suas colegas Rocha e Rogério a seguirem na arbitragem. Oliveira tentava pensar sempre positivamente para se manter motivada e atuante.”Independentemente de ser um campo de terra ou em um estádio eu estava feliz, então se não me escalarem não tem problema. Pensava assim”, conta Oliveira.

Depois de formada, ela passou dezessete anos até ser designada para a primeira partida de futebol profissional na Federação Paulista. Antes disso, o máximo que chegou foram jogos não profissionais, a partir de 1997, como juvenis e algumas categorias do feminino. 

Hoje os jogos profissionais da federação são as três divisões do Paulistão (A1,A2 e A3) sub 23, Copa Paulista, e Campeonato Feminino adulto.

Seus colegas homens deixavam o curso já praticamente escalados para jogos da federação. ”Apesar de ter me dedicado, estudado e concluído em primeiro lugar com a melhor nota final, não tive a mesma oportunidade.” Oliveira explica como era o processo para solicitar ao presidente da federação um pedido de escalação para jogos oficiais: “A gente pegava uns papéis pra fazer a inscrição, eu preenchia e levava pra ele. Depois eu descobri que eles pegavam meu papel e jogavam fora.”

Oliveira arbitrou seu primeiro jogo no futebol profissional em 1999, um confronto entre Jabaquara x Comercial de Registro, pela quarta divisão do campeonato paulista. Em menos de dois anos virou árbitra FIFA, a maior designação que o profissional da área pode atingir. Compôs o primeiro trio de arbitragem feminino de um campeonato nacional de primeira divisão em todo o mundo, ao ser escalada no Brasileirão série A de 2003; a primeira árbitra a comandar jogos da Copa Sul-Americana pela Conmebol, também em 2003; a primeira mulher em um cargo de Diretoria da Escola de Árbitros da Federação Paulista de Futebol; em 2019 se tornou a primeira a trabalhar na sala de controle do VAR (arbitro de vídeo) pela CBF. Em 2004, recebeu a “notícia mais feliz da sua vida”, ao ser convidada para representar o Brasil na equipe de arbitragem das Olimpíadas de Atenas, na modalidade futebol feminino. Nesse dia, quem morava na Rua Atibaia, em Santo André, ouviu gritos enlouquecidos de alegria e euforia. A classificação da seleção brasileira feminina para a final foi um misto de alegria e desânimo. Os árbitros não podem apitar jogos que tenham seu país de origem envolvido – se o Brasil não passasse, Silvia seria a árbitra da decisão. “ E nem pro Brasil ser campeão, né?”, brinca. A seleção brasileira perdeu para os Estados Unidos e ficou com a medalha de prata.

Em 1982, Oliveira começou a apitar as partidas de futebol do torneio Jogos Abertos do Interior, organizado pelo governo de São Paulo. Os jogos são uma mini olimpíada estadual; no lugar dos países, são as cidades paulistas que disputam as diferentes modalidades. Durante três anos, ela foi a única representante feminina na arbitragem de toda a competição, de qualquer modalidade. “Na alojamento, eles separavam as mulheres para ficar numa sala e os homens numa outra sala. O quarto dos homens ficava lotado com os árbitros. Como era a única mulher, me botavam junto das funcionárias da cozinha, que faziam as refeições dos atletas.” Em 1985, depois de três anos dessa forma, foram inscritas árbitras de boxe e vôlei. As árbitras ganharam um quarto exclusivo.

O episódio em que foi xingada por Luis Fabiano, em 2003, representou um caso isolado ao longo de sua carreira na relação com os jogadores dentro de campo . “Eu tinha uma postura meio durona, eles me respeitavam e tinham até um pouco de medo de mim”, lembra. Essa postura funcionava como um escudo, para se proteger naquele ambiente hostil para uma mulher. Hoje, nos cursos que aplica, Oliveira ensina que essa postura não é a correta para o árbitro. “Jogador não tem que ter medo de árbitro, mas era o recurso que eu tinha. Eu precisava disso.” 

O desrespeito maior vinha de fora de campo. Treinadores, dirigentes, jornalistas e sobretudo torcedores eram os grupos que mais atacavam verbalmente a árbitra. Oliveira lembra uma frase dita pelo técnico Tite, em 2005, ao avaliar a sua atuação após uma partida: “o torque [força] da mulher, a força muscular e a velocidade dela fazem com que ela não possa acompanhar os homens”. 

Depois de meia hora de conversa por vídeo chamada com a piauí, a árbitra foi ficando mais à vontade para entrar no episódio que se tornou o maior trauma de sua vida, ocorrido num jogo na 10ª rodada da Copa Federação Paulista de Futebol de 2006. A partida ocorria em Santa Cruz do Rio Pardo, município do interior paulista, entre Santacruzense, dono da casa, e Atlético Sorocaba. A equipe visitante vencia por 1 x 0 até os 44 minutos do segundo tempo, quando o time da casa realizou uma jogada de ataque que terminou com um chute que bateu na rede do gol pelo lado de fora.” Foi um equívoco grande que eu cometi. Por uma ilusão de ótica, a bola que foi na rede de fora, eu vi dentro da meta. Eu dei o gol, mas não foi gol”, explica Oliveira. O pior foi o que aconteceu em seguida: logo após a validação do gol, a edição de imagens da transmissão mostra o gandula, que estava atrás do gol, pegando a bola e jogando para dentro das redes. A manchete estava feita: “Árbitra valida gol de gandula.” 

Oliveira se emociona ao lembrar. “Isso repercutiu mundialmente. Foi uma coisa muito impactante na minha carreira. Eu tinha pensamentos suicidas. Ali praticamente acabaram com a minha carreira”, conta. Silvia Regina de Oliveira parou de apitar jogos profissionais no ano seguinte.

Esse caso do gandula se tornou o gatilho perfeito para que comentários machistas e misóginos se perpetuassem na mídia. E, na avaliação de Oliveira, esvaziou a já combalida participação de mulheres árbitras em jogos masculinos da CBF nos anos seguintes. 

“Sofri chacotas de todos os setores da sociedade, pessoas que olhavam pra mim e davam risada, nos programas de rádio, TVs, na internet e no próprio meio da arbitragem”, lembra. 

Depois desse episódio, ela passou a apitar pouquíssimos jogos, nenhum deles de primeira divisão nacional ou do mesmo escalão daqueles que vinha apitando até então. Depois que passaram a escalá-la somente como quarta árbitra (quem ajuda o árbitro fora de campo, nas substituições e questões administrativas), algo que ela atribui ao erro, Oliveira optou por encerrar a carreira 

Somente catorze anos depois do último jogo de Oliveira no Brasileirão, uma mulher voltou a apitar uma partida do campeonato brasileiro série A masculino — com a paranaense Edina Alves estreando na competição apitando a partida entre CSA e Goiás em 27 de maio de 2019.

Na avaliação de Oliveira, a geração de Edina Alves, posterior à dela, marca também uma mudança de postura das federações de futebol, que hoje procuram, cada vez mais, mulheres para serem árbitras e assistentes. “Eles querem que as mulheres prossigam nessa carreira. Então mudou muito de lá pra cá”, explica Oliveira . Hoje as mulheres terminam os cursos já escaladas em partidas do futebol profissional, seja masculino ou feminino. Mas apesar dos avanços, Oliveira ainda alerta para a disparidade com os homens: “Ainda assim, aqui na Federação [paulista], menos de 10% dos alunos do curso de arbitragem são mulheres.”

Silvia Regina Oliveira aplicando curso de arbitragem na Federação Paulista de Futebol. | Foto: Rodrigo Corsi/Ag.Paulistão

 

Hoje, Oliveira trabalha no quinto andar da Federação Paulista de Futebol, com o desenvolvimento da arbitragem paulista. Ministra cursos, analisa jogos da rodada e trabalha na capacitação dos profissionais da área (árbitros, VAR e analistas de arbitragem). É também instrutora de arbitragem da CBF e da Conmebol. Na segunda semana de julho viajou para o Rio de Janeiro para um curso da FIFA. 

Perguntada sobre duas dicas que ela daria se pudesse ser professora da jovem Silvia Regina no início da carreira na década de 1980, a árbitra não hesita: “Primeiro seria sobre o aspecto físico, eu falaria pra não tentar se sobrecarregar nos treinamentos e sempre envolver profissionais da área nos exercícios. Eu tive muitas lesões.” Depois de pensar alguns segundos, Oliveira vai para a segunda dica. “Não tenha medo de errar e aproveite o que você vai vivenciar. O medo fazia com que eu não desfrutasse o jogo e todo aquele meu momento. Eu não tinha noção da grandeza daquilo que eu estava fazendo.”

 

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