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    Cristiano Zanin Martins, indicado para o STF e ex-advogado do presidente Lula, no ato pela democracia e pelo direito de Lula ser candidato que ocorreu em 2018, na região central de São Paulo. Crédito: Marcelo Chello / CJPress/ Folhapress

questões político-jurídicas

Por que Lula escolheu Zanin

O Supremo mudou, e os critérios para indicações ao tribunal mudaram junto

Rafael Mafei | 01 jun 2023_14h08
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Se há uma lição a ser tirada da indicação de Cristiano Zanin, é que os requisitos impostos pela Constituição para a investidura no cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal contam uma parte cada vez menos importante da história que de fato leva alguém a ser indicado para o tribunal.

Um desses requisitos, “notável saber jurídico”, é particularmente difícil de se enxergar em Zanin. Não que ele não seja inteligente e muito capaz. Ou que não possa vir a ser um grande jurista e um grande ministro. Fica desde já a nossa torcida. Mas a Constituição não pede mero potencial jurídico, nem se contenta com um talento a desabrochar. Não quer jurista promessa, nem jovem revelação dos tribunais, nem craque de uma só partida – ou um só caso. “Notável” remete ao conhecimento publicamente reconhecido e estabelecido, aferido pela respeitabilidade intelectual do indicado perante a comunidade por um histórico, profissional ou acadêmico, de sucessivos casos, julgamentos, livros etc. Incrível nos darmos conta, hoje, sobre o quanto Zanin era um ilustre desconhecido, mesmo para a advocacia criminal paulistana, até pouquíssimo tempo atrás. 

Conhecimento jurídico notável, ênfase no adjetivo, tem a pessoa perante a qual os demais silenciam para ouvi-la falar. Preferencialmente, no caso de um magistrado cuja principal função será a de aplicar e defender a Constituição, para ouvi-lo falar sobre temas constitucionais urgentes e difíceis. Mas quem já fez silêncio para ouvir Zanin saiu sem escutar nada, ou quase nada. Isso é o oposto da notabilidade.

Não é que a Constituição busque apenas juristas-pavões, aqueles advogados e professores – o masculino é proposital – ególatras, que se julgam indispensáveis a qualquer discussão profícua, e que se ressentem quando a vida jurídica inteligente insiste em acontecer à sua revelia. Esses tipos não rendem bons juízes, pois a condição de magistrado impõe discrição e comedimento que muitas vezes lhes falta – e que Zanin, com sua personalidade aparentemente insípida, talvez tenha (fica mais essa torcida). Mas o recato social não compensa a pouca notabilidade de seu ideário jurídico e constitucional. Pois a notabilidade importa não apenas porque agrega respeitabilidade à inteligência jurídica do tribunal, mas também porque funciona como espécie de régua para o controle público do julgador. A sinceridade de seus votos pode ser testada contra seu histórico de manifestações, escritos, palestras, decisões e arrazoados. 

Nada disso estará disponível em relação a Zanin, um advogado discreto, desconhecido até um dia desses, de poucas palavras e quase nenhum pensamento público. Lula nos entregou uma caixinha de surpresas, com a promessa de que gostaremos do que sairá lá de dentro. Não custa lembrar que seu histórico não é de bom presenteador: da última vez que recebemos pacote semelhante, quem surgiu do embrulho foi Dias Toffoli.

 

Os requisitos constitucionais para indicação de nomes ao STF sempre conviveram com outros critérios não escritos, de natureza mais política e subjetiva. A escolha de nomes ideologicamente alinhados não começou com a dupla Lula-Zanin. Na história do Supremo, não foram poucos os que chegaram ao tribunal vindos de cargos jurídicos de confiança no Executivo, como ministros da Justiça, ou advogados e consultores jurídicos da União.

Mas o caso de Zanin destoa dos congêneres por ser ele um profissional do Direito que ganhou destaque há muito pouco tempo, e graças somente ao caso que lhe rendeu intimidade e confiança de quem o indicou. Nesse sentido, sua indicação se parece com a de André Mendonça por Jair Bolsonaro: ambos foram muito rapidamente do terreno da inexpressividade para o ápice do poder jurídico, exclusivamente pelos serviços prestados aos presidentes da República que os apontaram. Embora a empreitada de Zanin, justiça seja feita, tenha sido um trabalho pela defesa da Constituição, tão surrada pela Lava Jato; enquanto Mendonça ajudou Bolsonaro a agredi-la.

Bolsonaro indicar ao STF cupinchas seus, de saber jurídico pouco notável, não espantava: era a caquistocracia eleita indicando a caquistocracia togada. Mas quando Lula, que se pretende seu oposto, executa receita semelhante, privilegiando lealdade e fidelidade pessoais acima de quaisquer outros critérios – e destoando inclusive do padrão da maioria de suas indicações anteriores –, devemos nos perguntar se não há uma mudança mais profunda em curso, talvez fruto de uma nova visão que a classe política vem formando sobre o tribunal. Se ainda há quem enxergue o Supremo como reunião de juristas que deliberam por convicção e dão corpo às melhores interpretações da Constituição, Lula não está nesse time. 

Lula sabe que o Supremo de hoje, ao menos em alguns dos casos mais graves, se parece mais com uma arena onde facções de ministros tentam fazer com que suas posições prevaleçam a todo custo. Inclusive através de chicanas procedimentais, como o atraso deliberado para devolver pedidos de vista, o furto de decisões monocráticas à análise dos colegiados, ou o deslocamento puramente estratégico de casos das turmas para o plenário. Ao contrário do que determina a Constituição, ministros sozinhos têm enormes poderes, dos quais às vezes abusam sem ruborescer a face. Justamente nos casos politicamente mais sensíveis, certos cânones jurídicos básicos têm maiores chances de ser impunemente ignorados. A jurisprudência do tribunal, que deveria ser estável e garantir segurança jurídica, muitas vezes sacode ao sabor dos ventos da política. Nesse ambiente, o que tem mais valor, aos olhos de quem indica? A respeitabilidade intelectual, a ética do recatamento judiciário, a deferência à letra da lei e à colegialidade, a conduta proba ou republicana? Ou a confiança de que, quando a coisa apertar, alguma lealdade e fidelidade fraternas no tribunal funcionarão como o melhor porto seguro? Se o salão é um risca faca de beira de estrada, o valsista vienense, por melhor que seja, acabará furado.

Quem deseja construir uma candidatura progressista para a sucessão de Rosa Weber precisa enxergar que o jogo da indicação para o Supremo mudou, porque aos olhos de quem tem poder para fazê-la acontecer – o presidente da República e os partidos fortes do Congresso – o tribunal de hoje é uma outra criatura. O STF tornou-se um campo de batalha onde regras estão em permanente desconstrução; onde a institucionalidade vale menos do que a lealdade pessoal; e onde a boa interpretação jurídica vale menos do que a capacidade de construir alianças, nos colegiados do tribunal e na política lá fora. Na falta de regras e instituições realmente capazes de constranger comportamentos, só lealdade incondicional e confiança irrestrita transmitem alguma sensação de segurança. Quem não tiver isso a oferecer, ao presidente e aos políticos de quem a aprovação dependerá, será carta fora do baralho. Pouco importará quão realmente notável seja o seu saber, quão puramente ilibada seja a sua reputação, ou quanta diversidade agregaria ao tribunal.

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