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    O jardim aprazível da família Höss, com o campo de concentração de Auschwitz ao fundo Imagem: Divulgação

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A poucos passos do horror

Zona de Interesse documenta a barbárie nazista sem mostrá-la abertamente

Eduardo Escorel | 15 fev 2024_10h03
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Hoje, 15 de fevereiro, Zona de Interesse finalmente estreia no Brasil. Escrita e dirigida por Jonathan Glazer, a produção americana, inglesa e polonesa foi consagrada no ano passado em Cannes, onde recebeu o Grande Prêmio, segundo em importância atribuído pelo júri oficial, e o prêmio da Federação Internacional de Críticos de Cinema (Fipresci). Coberto de louros em diversos festivais, de Telluride a Helsinki e de Toronto a San Sebastian, Zona de Interesse foi exibido também na 47ª Mostra Internacional de Cinema, em São Paulo, e concorre em cinco categorias ao Oscar a ser entregue na noite de 10 de março – Melhor Filme, Melhor Filme Internacional, Melhor Diretor, Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Som.

Os créditos finais informam que o filme é “baseado no romance de Martin Amis”. Quem tiver lido A Zona de Interesse, publicado pela Jonathan Cape Ltd em 2014 e traduzido no ano seguinte pela Companhia das Letras, constatará sem dificuldade que ambos guardam entre si meramente uma relação tênue. As diferenças são bem maiores do que as semelhanças, restritas ao título (do qual, entre nós, foi suprimido, sabe-se lá por que, o artigo inicial), ao período histórico e à principal locação – no caso, a réplica da vila residencial, com piscina, jardim florido e estufa, onde moraram o comandante Rudolf Höss (Christian Friedel), sua mulher Hedwig Höss (Sandra Hüller) e seus filhos. “É um jardim paradisíaco”, comenta Linna (Imogen Kogge), mãe de Hedwig, ao visitar a filha. Construída num local próximo à vila original pela equipe do designer de produção Chris Oddy, a casa é separada apenas por um muro alto do campo de concentração de Auschwitz.

Glazer, ao contrário de Amis, atribui aos seus personagens os verdadeiros nomes das pessoas nas quais são baseados. Dessa maneira, acentua a base documental de Zona de Interesse, realçada ainda pela filmagem feita, em boa parte, com múltiplas câmeras ocultas, sem a presença de equipe e equipamentos junto aos atores.

Outra diferença significativa é a maneira de tratar a barbárie nazista, explícita em passagens do romance de Amis e implícita no filme de Glazer, no qual não se veem atrocidades de forma direta. Da parte interna de Auschwitz só é possível olhar, por cima do muro que cerca a vila dos Höss, o topo de construções, telhados, uma torre de vigilância e chaminés de onde sai fumaça escura. Ouve-se, no entanto, tiros distantes, gritos esparsos, máquinas de moer sendo ligadas e o motor de uma motocicleta distante sendo acelerado – segundo o IMDb, Rudolf Höss contratou, de fato, “uma pessoa apenas para acelerar o motor e abafar o horror dos gritos e tiros vindos do acampamento”.

 

No epílogo do romance de Amis, o título da terceira parte é Hannah: A Zona de Interesse. Narrado por um personagem não incluído no filme – Angelus Thomsen, oficial nazista –, esse segmento aborda a relação dele com Hannah, que no livro é a mulher do comandante de Auschwitz, Paul Doll. Thomsen relata, em 1948:

Não era possível viver durante a Terceira Alemanha [referência ao período 1933-1945] sem descobrir quem você era… e tampouco sem descobrir quem os outros eram. […] Sob o nacional-socialismo você se olhava no espelho e via sua própria alma. Você se descobria. Isso se aplicava, em especial e a fortiori… às vítimas… E, no entanto, também se aplicava a todos os outros… e até mesmo aos oponentes menores, como eu e como Hannah Doll. Todos nós descobrimos ou revelamos, indefesos, quem éramos. Quem alguém realmente era. Essa era a zona de interesse. […] (tradução dessa e das demais citações por minha conta.)

Nessa menção ao título feita no epílogo, Amis parece indicar um de seus propósitos – revelar, por meio dos três narradores (além de Paul Doll e Thomsen, Szmul Zacharias, prisioneiro integrante de um comando de trabalho forçado), quem realmente são seus personagens. Intuito confirmado pelo próprio Amis na Jornada do Festival de Humanidades de Chicago, em 2014. Com certa dose de ironia, ele esclarece, primeiro, que “havia interesse” na área ampliada ao redor de Auschwitz “não por ser interessante”, mas porque “era lucrativa. A cupidez e a rapacidade dos nazistas neste projeto do Holocausto é inacreditável e agrava o crime”. (O lucro, no caso, resultava da relação comercial estabelecida por quase 2 mil empresas alemãs com Auschwitz. A IG Farben construiu nos arredores sua terceira grande fábrica de borracha sintética e combustíveis líquidos, dispunha de mão de obra escrava e cedia presos para trabalharem em construtoras; a Osram abastecia os campos de lâmpadas; a Siemens provia equipamentos elétricos; Topf und Söhne projetava e supria partes dos crematórios; Tesch und Stabenow GmbH e Degesch, subsidiária da IG Farben, forneciam o pesticida Zyklon B, usado nas câmaras de gás.)

Em seguida, na Jornada em Chicago, Amis reafirma o que escreveu no epílogo de A Zona de Interesse

“… na sua visão [parecendo se referir a Thomsen, seu personagem], a zona de interesse é o que alguém realmente é. E se você ler os testemunhos dos sobreviventes é algo que surge repetidamente: ninguém conhece a si mesmo até chegar a uma situação extrema. Em uma vida pacífica normal, civilizada, você só tem noção de cerca de 10% do que é capaz e de sua personalidade mais profunda, mas em uma situação atroz você descobre coisas espantosas sobre si mesmo, tanto os criminosos quanto as vítimas. E a outra coisa é que zona de interesse é como eu me sinto em relação ao assunto como um todo, sobre o qual W.G. Sebald disse que ‘nenhuma pessoa séria pensa alguma vez sobre outra coisa’, o que pretendia ser um aparte irônico, mas eu penso que ele, em certa medida, acreditava nisso e eu também acredito.

O tema principal de Glazer, porém, é outro. Em vez de pretender revelar a subjetividade dos personagens, objetivo que está mais ao alcance da literatura, ele procura, sem mostrar a barbárie abertamente, tornar visível e audível a brutalidade resultante de uma aparente harmonia e o horror real, mas desconsiderado, conviverem. “Não estamos nos deixando envolver na psicologia dos personagens. Nós os observamos mais por seu comportamento e suas ações do que por seus pensamentos”, Glazer disse à revista Time.

Segundo Luke Johnson (The Zone of Interest: An insist, Review and Overview of the movie THE ZONE OF INTEREST, 2023), de modo a garantir a autenticidade de Zona de Interesse, assegurando que o filme resultasse “preciso e respeitoso”, Glazer baseou o roteiro em pesquisa feita ao longo de dois anos, inclusive no Memorial e Museu Auschwitz-Birkenau, onde “foram examinados testemunhos de sobreviventes e pessoas que trabalharam na casa dos Höss”. Pelo mesmo motivo, filmou em torno de Auschwitz, além de ter feito filmagens adicionais nas “paisagens pitorescas” de Jelenia Góra, cidade também na Polônia.

O roteirista e diretor dedica a sequência final de Zona de Interesse ao Memorial e Museu Auschwitz-Birkenau. As funcionárias abrem a porta de entrada e varrem o chão. Limpam com esmero os equipamentos de transporte diante dos fornos crematórios e as grandes vitrines através das quais se pode ver os vestígios da atrocidade cometida no campo de extermínio, responsável, estima-se, pelo assassinato de cerca de 1,1 milhão de pessoas – malas empilhadas, montes de pares de sapatos, algumas botas, muletas, uniformes listados de preto e branco. O som predominante é o de um aspirador de pó. Nos planos finais, Rudolf Höss, uniformizado, acaba de descer a escadaria e some na escuridão. A trilha rarefeita de Mica Levi irrompe e prossegue durante os créditos de encerramento no que foi considerado “uma viagem sonora de trem pelo inferno durante seis minutos”.

 

A busca por alicerces documentais para dar solidez ao filme não impede Glazer de pretender, por um lado, deixar claro que a convivência com o horror vista no filme remete à nossa atualidade, na qual essa coexistência persiste; nem, por outro lado, de dar vazão ao seu viés experimental, filmando com câmera térmica duas sequências, quase todas em preto e branco, incluindo em uma delas um trecho da história de João e Maria, dos irmãos Grimm, contada em voz off por Rudolf Höss: “A bruxa se sentou na pá e Maria a empurrou para dentro do forno, o mais fundo possível. Depois ela fechou a porta de ferro do forno e a travou com uma barra. A bruxa foi queimada e assada viva como punição por seus atos abomináveis…” (de acordo com as legendas do filme); e, na outra sequência, os versos da canção de Joseph Wulf, sobrevivente de Auschwitz, escritos em iídiche no campo de Oświęcim, Auschwitz III, em 1943, e apresentados na cópia a que assisti através de legendas em português, com solo de piano, mas sem cantoria: “Raios de sol/ radiantes e quentes/ Corpos humanos/ Jovens e velhos/ E nós/ aqui aprisionados/ Nossos corações/ ainda não estão frios/ Almas em chamas/ como o sol escaldante/ Rasgando, dilacerando/ com toda a dor/ Pois logo veremos/ aquela bandeira tremulante/ A bandeira da liberdade/ que um dia virá.” David Yearsley afirma, no entanto, em CounterPunch: “A voz que ouvimos cantar é na verdade a do sobrevivente de Auschwitz, Joseph Wulf, que escreveu a canção e a gravou no final dos anos 1960. Ele canta em iídiche e a triste melodia em tom menor termina como uma pergunta que paira no ar.” Aguardamos explicação para o sumiço da voz de Wulf.

Em entrevista ao jornal The Guardian, Glazer disse acreditar, 

com toda certeza, que se deve abordar o Holocausto. A questão essencial não é, no entanto, dever ou não tratar do assunto, mas como fazer isso. Penso que essa história tem de ser contada e recontada, mas para tanto é preciso encontrar novos paradigmas de modo a voltar a contá-la, a retomá-la geração após geração, especialmente à medida que o número de sobreviventes diminui e os eventos deixam de ser uma lembrança viva e se tornam história… A razão que me levou a fazer esse filme foi tentar reafirmar nossa proximidade com esse terrível acontecimento que consideramos ter ocorrido no passado. Para mim, isso nunca está no passado e, neste momento, penso que algo em mim está consciente – e temeroso – de que essas coisas estejam aumentando novamente com o crescimento do populismo de direita por todo lado. A estrada que tantas pessoas percorreram está a poucos passos de distância. Está sempre a poucos passos de distância.

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