O Ministério da Saúde publicou, nesta segunda-feira (7), uma nota informativa orientando a classe médica a não fazer procedimentos de aborto por telemedicina – isto é, a interrupção de gravidez monitorada a distância, por meio da prescrição de pílulas abortivas e com acompanhamento de profissionais da saúde. A prática, reconhecida em países como Inglaterra e Estados Unidos, foi adotada durante a pandemia pelo Nuavidas (Núcleo de Atenção Integral a Vítimas de Agressão Sexual), vinculado ao Hospital de Clínicas de Uberlândia. O protocolo de aborto legal por telemedicina, até então inédito no Brasil, era uma forma de garantir atendimento às mulheres grávidas após violência sexual – mas virou alvo de pressões de conservadores, conforme a piauí revelou em reportagem publicada na semana passada. A legislação brasileira autoriza o aborto em caso de estupro, de anencefalia fetal (fetos que não desenvolvem o cérebro) e risco de vida à mulher.
A nota, assinada pela Secretaria de Atenção Primária à Saúde, não tem caráter normativo, não proíbe nem impõe condutas – mas pode ser usada como respaldo para interromper procedimentos desse tipo na Justiça e é um claro instrumento de pressão. O documento foi publicado como resposta a uma recomendação feita no final de maio pelo defensor nacional de direitos humanos, André Porciúncula, e pelo procurador regional dos Direitos do Cidadão em Minas Gerais, Fernando de Almeida Martins. Os dois pediam a interrupção do protocolo de aborto legal por telemedicina realizado pelo Nuavidas. Desde agosto de 2020, o procedimento é oferecido como opção a mulheres vítimas de violência sexual que desejarem interromper gestações de até 63 dias (nove semanas) e apenas quando for possível fazer o aborto legal induzido por medicamentos, sem precisar de intervenção cirúrgica.
Na recomendação enviada ao Ministério da Saúde, Porciúncula e Martins alegaram que a utilização do misoprostol, pílula abortiva prescrita pela equipe do Nuavidas, “é algo extremamente temerário” quando feita fora do ambiente hospitalar. O Ministério da Saúde concordou com a dupla. A nota divulgada ontem pela pasta afirma que o “uso indevido” desse medicamento “pode ocasionar malformações congênitas no feto” e “até mesmo ruptura uterina em mulheres que já fizeram cesariana ou qualquer outra cirurgia uterina, cuja hemorragia pode levar à morte materna”.
A recomendação assinada por Porciúncula criou um racha na Defensoria Pública da União (DPU). Dias depois de o documento vir à tona, um grupo de 41 defensores públicos elaborou nova recomendação em sentido contrário, também encaminhada para o Ministério da Saúde. Além disso, defensoras públicas de nove estados brasileiros se juntaram para assinar nota técnica afirmando que é obrigação do poder público não apenas assegurar a continuidade do aborto por telemedicina, como expandir esse serviço.
Evangélico, Porciúncula foi nomeado para o cargo pelo defensor público-geral da União, Daniel Macedo. O chefe da DPU foi empossado pelo presidente Jair Bolsonaro em janeiro deste ano. Embora tenha ficado em segundo lugar na lista tríplice eleita pelos defensores, ele acabou sendo escolhido para a função após receber apoio de lideranças evangélicas. Em outubro, a piauí mostrou que, para se cacifar ao cargo, Macedo – frequentador da Comunidade Presbiteriana da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro – prometeu criar na DPU “um grupo de trabalho em defesa dos direitos do nascituro”. “Se uma parte da Defensoria defende o aborto, temos que ter outra parte que defenda a vida”, afirmou na época. Já o procurador Fernando Martins, que assina o documento junto com Porciúncula, é conhecido por sua abordagem mais conservadora em assuntos comportamentais.
A nota publicada pelo Ministério da Saúde foi assinada por dois diretores da Secretaria de Atenção Primária à Saúde, além do próprio secretário, Raphael Parente. Nomeado para o cargo em junho do ano passado, na gestão do então ministro Eduardo Pazuello, Parente é um médico que há anos vem se posicionando contra uma descriminalização mais ampla do aborto. Em artigo publicado na Folha de S.Paulo, em 2019, ele afirmou que os números de mortes em abortos clandestinos são superestimados e, por isso, “não configuram questão de saúde pública”. O artigo defende o endurecimento da legislação contra o aborto.
Parente defendeu esse mesmo ponto de vista ao participar de uma audiência pública no Supremo Tribunal Federal, em agosto de 2018. Na época, a Corte discutia a ADPF 442, que propõe a descriminalização do aborto voluntário até o terceiro mês de gestação. Em seu discurso no STF, o médico argumentou que os estudos publicados sobre a questão do aborto “são enviesados”, e que há “interesses ideológicos” por parte dos pesquisadores.
A recomendação contrária ao aborto por telemedicina marca mais um passo do Ministério da Saúde no sentido de restringir a interrupção legal da gravidez. Em agosto do ano passado, uma portaria assinada por Pazuello, sob pressão das entidades antiaborto, determinou que médicos que atendessem vítimas de estupro interessadas em abortar eram obrigados a comunicar os fatos à polícia. Além disso, a portaria determinava que a equipe médica deveria perguntar à vítima se ela gostaria de ver imagens do feto ou embrião pelo ultrassom, antes do procedimento. Diante da repercussão negativa, em setembro o Ministério revogou a portaria e publicou uma nova, retirando a necessidade de se perguntar à vítima se ela gostaria de ver o feto. Manteve-se, no entanto, a obrigatoriedade de que os médicos acionem as autoridades policiais, caso atendam vítimas de estupro. Para médicos e entidades que defendem a descriminalização do aborto, essa medida tem o efeito de constranger – e, com isso, inibir – mulheres que buscam unidades de saúde para fazer um aborto seguro e previsto em lei.
A equipe do Nuavidas ainda não foi notificada da recomendação do Ministério da Saúde. “Nós, profissionais de saúde do Nuavidas HC/UFU, estamos certas de que estamos atuando com ética, dentro das leis brasileiras, e seguindo as melhores e mais atuais evidências científicas para a proteção da saúde das meninas e mulheres brasileiras em situação de violência sexual”, afirmou a médica Helena Paro à piauí.
O procurador da República Leonardo Andrade Macedo, que atua em Uberlândia, lamentou a nota do Ministério da Saúde e disse que o MPF enviará nova recomendação ao Hospital de Clínicas da da Universidade Federal de Uberlândia, reiterando o apoio ao protocolo de teleatendimento. Macedo destacou que a atenção remota é apenas parte do atendimento, oferecida como opção. Por fim, destacou que a posição do Ministério da Saúde, ao contrário do que quer fazer crer, não protege a vítima de violência sexual e sim cerceia um direito. “Lamento que essa nota informativa seja publicada aparentemente movida por motivos de natureza ideológica, sem base científica, sem amadurecimento nem discussão. Se a política pública é em benefício das vítimas da violência sexual, elas têm que opinar. O que está se fazendo é restringir um direito das vítimas.”
A piauí procurou o Ministério da Saúde para perguntar qual é o alcance e o impacto prático da nota publicada pela pasta, mas não recebeu resposta até o fechamento desta reportagem.
*Após a publicação da reportagem, o Ministério da Saúde respondeu que a nota informativa “orienta o profissional de saúde a não fazer uso da telemedicina nos procedimentos para aborto por excludente de ilicitude, considerando que a paciente deve ser acompanhada, obrigatoriamente, por um médico no hospital.” A pasta também informou que está elaborando uma nota técnica a respeito do aborto por telemedicina.