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    Ilustração: Carvall

questões de gênero

Proteção feminina na pandemia

Mesmo atingidas pela perda de renda e sobrecarregadas com trabalho doméstico, mulheres de territórios vulneráveis criaram respostas efetivas diante da Covid-19

Antonia Cleide Alves, Carmen Silva, Eliana Sousa Silva, Ester Carro, Evaniza Rodrigues, Juliana Miranda Mitkiewicz e Marília De Santis | 28 dez 2021_09h49
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Entre outubro e dezembro de 2020, o Núcleo Mulheres e Territórios do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper realizou uma pesquisa com 150 moradoras do conjunto de dezesseis favelas da Maré, no Rio Janeiro, das comunidades do Jardim Colombo, no Complexo de Paraisópolis, e de Heliópolis, em São Paulo. O objetivo era entender qual a visão das mulheres periféricas a respeito das mudanças em seus trabalhos remunerados e não remunerados – os “trabalhos de cuidados”, relacionados a filhos, companheiros e outras pessoas com as quais dividiam o teto – durante o primeiro ano da pandemia. E o que já era intuído ganhou dados e evidências: elas, as mulheres, foram as primeiras e as mais diretamente afetadas pelo desemprego em função do surto global do novo coronavírus.

Um artigo publicado pelo Núcleo em abril passado neste mesmo espaço chamava a atenção para o fato de que, no mercado de trabalho brasileiro, a participação feminina caíra de 53,3% no terceiro trimestre de 2019 para 45,8% em igual período de 2020. Quando se levavam em conta os empregos formais, o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) mostra que 81% das vagas fechadas de janeiro a setembro haviam sido ocupadas por mulheres. De acordo com a pesquisa do Laboratório, nos casos em que se insinuava uma retomada da atividade econômica, as mulheres continuavam em situação desfavorável. Já o trabalho não remunerado, o doméstico propriamente dito, segundo as entrevistadas, tinha se ampliado sobremaneira. Fora e dentro de casa, a pandemia pesara mais para as mulheres. Logo elas, arrimo de família em grande número de residências.

Monitorar os desdobramentos desse quadro dramático foi o passo natural que se seguiu à divulgação da pesquisa. E, de novo, o que era intuitivo ganhou dados e evidências: em todas as favelas estudadas – áreas de atuação de diversas integrantes do próprio Núcleo Mulheres e Territórios –, muitas das respostas efetivas à devastação social trazida pelo Sars-CoV-2 foram gestadas pela militância feminina. Diante da desastrosa condução do país no combate à Covid-19, especialmente por parte do governo federal, vieram do engajamento comunitário das mulheres alternativas capazes de dar algum fôlego às camadas mais atingidas pela falta de tudo: trabalho, alimento, saúde. Sororidade e resistência racial – 69% das mulheres que vivem em favelas se autodeclararam negras – se cruzaram nesse esforço. Entretanto, é preciso sublinhar que a rede de proteção contra a pandemia nos territórios vulneráveis não se pautou, e não se pauta, por isso.

Os exemplos se multiplicam – justamente quando se observam iniciativas de entidades comandadas por mulheres naquelas regiões empobrecidas.

 

Em Heliópolis, são muitas as ações realizadas para o enfrentamento da doença. A Unas – União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região –, tem realizado diversas campanhas, desde o início da pandemia, com o objetivo de assistir milhares de famílias, a maioria mantida por mulheres que se viram desamparadas quando perderam qualquer possibilidade de gerar renda.

Além da articulação feminina nas redes de trabalho formadas para atuarem no projeto “Heróis Usam Máscaras” – ação conjunta dos bancos Bradesco, Itaú e Santander, com concepção do Instituto Bei, para viabilizar a produção daquele equipamento de proteção contra a Covid-19 e gerar renda para as costureiras na comunidade – e da distribuição de mais de 60 mil cestas básicas, a Unas sustenta um intenso calendário de atividades educativas e mobilizações que acolhem e orientam mulheres em situação de vulnerabilidade. Muitas delas são vítimas de violência doméstica e encontram no Movimento de Mulheres de Heliópolis e no Centro de Defesa e Convivência da Mulher (CDCM) Sonia Maria Batista apoio para romperem com o ciclo de agressões a que estão submetidas.

Os projetos desenvolvidos em espaços administrados pela Unas, por meio de convênios com a Prefeitura ou em parceria com a iniciativa privada, têm sido fundamentais para que a população de Heliópolis possa encontrar uma chance de seguir adiante. Em tempos de profunda crise no ensino, a mobilização dos funcionários das escolas públicas, dos educadores sociais, das lideranças comunitárias e dos habitantes do bairro em torno de uma agenda emergencial de enfrentamento à pobreza e à fome representa uma demanda por ações governamentais que deveriam ser pensadas e executadas com maior participação popular e de forma intersetorial.

Para minimizar as consequências econômicas e sociais causadas pela pandemia, o Instituto Fazendinhando, que atua no Jardim Colombo e região, estruturou uma campanha de arrecadação de fundos e doações – diga-se de passagem, sem qualquer experiência prévia nesse tipo de ação. O Fazendinhando levantou aportes financeiros com instituições parceiras e, semanalmente, passou a entregar cestas de legumes para distribuição à população através do projeto Campo Favela, um programa desenhado por professores e alunos do Insper. Com isso, a organização se tornou um hub, apoiando aproximadamente cerca de treze comunidades em vulnerabilidade social do estado de São Paulo. O Jardim Colombo, ressalta-se, não registrou nenhuma morte por Covid-19.

Para além das iniciativas assistencialistas e apesar das restrições impostas pela quarentena, o Instituto Fazendinhando se ocupou ainda de ações de estímulo às condições de empregabilidade dos habitantes do local. A urgência disso se mostrou evidente depois que um levantamento feito com 951 chefes de família na comunidade do Jardim Colombo – dentre as quais 702 mulheres – revelou que 54,7% declararam não estar trabalhando, 28,3% que se encontravam na informalidade e 67,7% que moravam de aluguel ou de favor. Desse total, apenas 29% tinham concluído o ensino médio e 33,4% o fundamental. Abriram-se, então, cursos de qualificação para mulheres no setor da construção civil, da gastronomia e do artesanato, em um projeto batizado afetivamente de “Fazendeiras”.

 

No conjunto de dezesseis favelas da Maré, onde vivem cerca de 140 mil pessoas, o enfrentamento da pandemia passou pelo diagnóstico das demandas mais urgentes. A organização Redes da Maré montou a ação “Maré Diz Não ao Coronavírus”, que abrangeu a realização das seguintes atividades: segurança alimentar, com a entrega de cestas básicas e kits de higiene e limpeza para 18 mil famílias em 2020 e em torno de 6 mil em 2021, além da produção de 300 refeições diárias de março a dezembro de 2020 e de 100 em 2021 para a população em situação de rua; geração de renda, com ajuda de custo mensal para 26 mulheres que cozinharam as quentinhas, 54 costureiras responsáveis pela produção de 200 mil máscaras de pano distribuídas nos 47 mil domicílios do complexo, 20 motoristas que entregaram cestas básicas e 18 profissionais que atuaram na desinfecção das quase 1 mil ruas da região; limpeza e desinfecção de ruas com a aplicação de produto para cuidado e prevenção de contágio pelo Sars-CoV-2; ações de comunicação que envolveram a produção de conteúdos para ajudar na divulgação de informações relativas à epidemia nas favelas; promoção do acesso a direitos e cuidados e prevenção e saúde, com arrecadação de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) para distribuição aos profissionais atuantes nas unidades básicas de saúde, na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) e no Consultório na Rua que atuaram no conjunto da Maré. A população também teve acesso a máscaras de proteção e álcool em gel. Além disso, foi estruturada a ação Conexão Saúde, voltada para a oferta de testes gratuitos de diagnóstico de Covid-19, de orientação profissional adequada e de isolamento seguro para os casos diagnosticados.

As rodas de conversas promovidas antes da pandemia pela União dos Movimentos de Moradia da Grande São Paulo e Interior a respeito de violência doméstica passaram a ocorrer de modo virtual, incentivando as mulheres a se apropriarem de ferramentais digitais e participarem de seminários e oficinas sobre temas como a garantia dos direitos femininos e a busca de ajuda em casos de agressão. Tais atividades constituíram uma rede de apoio reunindo mais de cem localidades, capacitando mulheres para se apoiar umas às outras em situações de risco de violência. Um banco de vagas de emprego foi criado com as famílias dos movimentos na Zona Leste da capital paulista, a fim de socializar oportunidades de trabalho e cursos gratuitos.

Ninguém discute que terá sido um preço altíssimo, pago, no mínimo, com muito sofrimento material – para não falar em vidas. Porém, se as lições de solidariedade diante da pandemia expressas pela população feminina dos territórios vulneráveis servirem para mobilizar políticas públicas que priorizem os mais necessitados, já se poderá considerar um alento.

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Todas as autoras são professoras do Núcleo Mulheres e Territórios do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper.

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