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Quase toda a política é identitária

Não há por que achar que a motivação econômica é a mais relevante para justificar o voto

Lucas de Abreu Maia | 23 nov 2018_09h32
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Há uma divisão na esquerda. E isso é ótimo para manter as coisas exatamente onde elas estão. Não que a esquerda seja necessariamente melhor do que a direita. É que, por definição, o conservadorismo é a vertente política que defende a manutenção do status quo.

No século passado, o peso gravitacional de Estados Unidos e União Soviética organizou automaticamente as políticas – internas e externas – de cada país em torno de visões econômicas. Mais ou menos intervenção estatal na economia, mais ou menos distribuição de renda. (Note que a primeira é uma questão majoritariamente técnica, que deve ser decidida por economistas, enquanto a segunda é uma questão majoritariamente moral, que deve ser decidida pela sociedade, mas isso é assunto para outra coluna.) Mas, quando a Guerra Fria acabou, um dos polos que organizava o sistema internacional desapareceu. Subitamente cada país se viu obrigado a lidar com os inúmeros satélites das próprias políticas locais, exercendo seus pesos em direções complexas e conflitantes.

A esses diferentes pesos, chamamos hoje de políticas identitárias. São pressões focadas em questões específicas a grupos sociais minoritários, mas que por vezes bastam para desorganizar todo um país – está aí 2013 e as passagens de ônibus que não me deixam mentir. Elas são difíceis de lidar justamente porque são difusas e por vezes contraditórias. É impossível atender a reivindicação por salários justos por parte de mulheres com mais formação e menores salários que seus colegas homens e, ao mesmo tempo, agradar ao crescente número de homens brancos sem emprego e formação adequada nas periferias brasileiras. Ambos são vítimas, mas o processo que machuca um beneficia o outro.

As lutas identitárias, portanto, tendem a ser criticadas pelo potencial de desunião que geram. Seriam uma briga de soma zero, em que, se alguém ganha, outro alguém tem de perder. Essas críticas, porém, ignoram três aspectos importantes. O primeiro deles, e o mais óbvio, é que é muito fácil dizer isso quando se está no topo da hierarquia social. Quase sempre essas críticas partem de homens. Na maioria das vezes homens brancos. Por motivo óbvio, não preciso gastar mais tempo neste ponto.

O segundo é quase tão óbvio quanto o primeiro: essa não precisa, necessariamente, ser uma briga de soma zero – embora frequentemente seja, sim, e é bom admitir quando for. Direitos para pessoas LGBT não tira em nada o direito de pessoas cis e heterossexuais. O direito de uma mulher abortar com segurança não afeta em absolutamente nada o direito de quem não quer abortar. Me sinto estúpido por ter de escrever isso, de maneira que vou avançar para o próximo ponto.

O terceiro é o ponto mais interessante, para mim. Quem foi que disse que briga por redistribuição de renda não é uma luta identitária? O que Marx entendeu muito bem, aliás, foi exatamente que classe social é uma identidade. Existe um modo de vida associado com ser trabalhador ou ser burguês. É por essa identidade que os trabalhadores deviam brigar, de acordo com o argumento de Marx no Manifesto Comunista. A questão é que Marx foi um pouco longe demais. Ele achava que nenhuma outra identidade importava, a não ser classe social. Talvez compreensível, já que ele vivia na branquérrima e vitoriana Inglaterra do século XIX, assolada pela desigualdade gerada pela revolução industrial.

Dado o peso de Marx na sociologia, na ciência política e (que os economistas não me leiam) na economia, não é de estranhar que a única forma de ativismo político entendido como legítimo seja o econômico. Não é. Sofrer por ser mulher, preto ou veado é tão ruim quanto sofrer por ser pobre. No fim, todas elas são identidades.

Eu comecei esse texto apontando para o fato de que a direita, pela própria natureza da sua agenda política, tem, em tese, um trabalho mais fácil no governo. Eles não precisam mudar a política pública. Eles querem conservar o status quo. Ocorre que as populações estão cada vez mais diversas e os grupos políticos de minorias estão cada vez mais ativos e menos dispostos a manter-se quietos. A pressão contra o status quo pode ser irresistível. Será mais fácil resistir enquanto as críticas às pautas identitárias vierem da própria esquerda.

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