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    Ilustração: Carvall

questões de segurança pública

Quatro anos para denunciar casos de violência policial, oito para arquivar

Pesquisa mostra que, dos inquéritos sobre mortes cometidas por policiais analisados pelo Ministério Público do Rio de Janeiro em dez anos, 91% acabaram arquivados

Pablo Nunes | 10 abr 2023_12h01
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Em 2019, primeiro ano do governo natimorto de Wilson Witzel, o Rio de Janeiro alcançaria o pico na escalada de violência policial. Naquele ano, 1.814 pessoas foram mortas por policiais, algo sem precedentes no Brasil. Quase 2 mil inquéritos foram enviados pela polícia ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ). Dentre todas essas mortes, o Ministério Público só finalizou 105 casos – seja denunciando os policiais, seja pedindo o arquivamento da investigação. São casos considerados “resolvidos” pelo MP – menos de 2% daquelas quase 2 mil mortes.

Diferentemente dos casos de homicídios, as mortes decorrentes de operações policiais podem ter dois tipos de “resolução”: o arquivamento, adotado 1) quando não há elementos suficientes na investigação ou 2) quando há provas de que a morte foi em legítima defesa do agente ou de terceiros (aí o caso é enquadrado como “excludente de ilicitude” e arquivado); ou a denúncia, quando há elementos que apontam para a ilegalidade da morte, como evidências de execução, e o agente policial é denunciado. 

Desses 1.814 mortes cometidas por policiais em 2019, só dois casos tiveram denúncia criminal. Um deles foi uma morte ocorrida em abril de 2019, na cidade de Engenheiro Paulo de Frontin. O acusado pelo crime, um sargento alocado no 10° Batalhão da PM, já fora denunciado sob acusação de ter praticado tortura no mesmo ano, mas o caso foi arquivado. No ano anterior, ele foi homenageado na Alerj pelo deputado André Lazaroni pelos “belos e inestimáveis serviços prestados ao Estado do Rio de Janeiro”. O processo ainda está em curso.

Mas o caso do sargento é uma exceção em relação ao que ocorre todos os anos no Rio de Janeiro.

Pesquisa realizada pelo Fórum Justiça publicada esta semana mostrou que, entre 2011 e 2021, o MPRJ se pronunciou, por denúncia ou arquivamento, em apenas 1.491 inquéritos de mortes decorrentes de atuação policial. O caso é assim considerado finalizado. E aqui analisamos apenas os casos sobre os quais não há sigilo. Considerando o conjunto dos inquéritos, seriam 4.527, mas o MP não forneceu todas as informações sobre eles, e por isso essa análise se concentra nos 1.491 casos sem sigilo. Todas essas mortes ocorreram de 1993 a 2021, período no qual as polícias fluminenses mataram mais de 23 mil pessoas. O Fórum Justiça é uma organização que articula membros do sistema de justiça, organizações e movimentos da sociedade civil para pensar e construir propostas para uma justiça mais democrática. Essa pesquisa foi conduzida por mim e por Jonas Pacheco em uma parceria entre o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) e o Fórum.

Nos 1.491 casos considerados finalizados, o MPRJ apresentou denúncia em 130 deles e arquivou os outros 1.361. É isso mesmo: 91,3% dos casos foram arquivados. Essa proporção condiz com o que foi encontrado em outros estudos realizados no Rio de Janeiro e em outros estados e reflete o quão bem azeitada está a engrenagem que mantém a impunidade como uma certeza. 

Outro fator que dificulta a investigação e a denúncia de casos de mortes cometidas por policiais é a morosidade do sistema de Justiça, num jogo de empurra entre MP e Polícia Civil. O Fórum Justiça ouviu operadores do direito, como defensores, promotores e advogados da OAB. Eles relataram ser muito comum que o MP peça novas diligências para a Polícia Civil e que a mesma demore a entregar resultados satisfatórios. Nesse jogo, a demora em chegar a uma conclusão é uma certeza. Em média, até decidir fazer a denúncia, o MPRJ levou 1.513 dias, ou quatro anos aproximadamente. E, para arquivar, foram longos 2.977 dias em média, ou oito anos.

Um leitor incauto poderia pensar que, quando a polícia mata mais, o MP finaliza mais os casos. Mas não é bem assim. O gráfico abaixo revela uma relação quase inversamente proporcional entre o número de mortos pela polícia no ano e o número de processos finalizados pelo MPRJ relativos às mortes ocorridas naquele mesmo ano. Ou seja, quando há menos mortes, o MPRJ entrega uma taxa de processos finalizados maior do que a média.

É o caso, por exemplo, dos anos 2012 e 2013, quando houve uma redução de mortes. E o MPRJ finalizou um número recorde de casos. 

Na mesma linha, quando a barbárie atingiu o seu nível mais alto, nos anos 2018 e 2019, o MPRJ simplesmente não mudou sua atuação, registrando menos de 3% de respostas aos casos ocorridos naqueles anos. No momento em que foi mais necessária a atuação forte e eficiente do MPRJ, ele simplesmente não agiu para responder à altura da pilha de corpos produzida pelas polícias sob o comando do general Braga Netto, em 2018, e de Witzel, em 2019.

A máquina de morte montada nos últimos anos no Rio de Janeiro seguiria a produzir números absurdos nos anos seguintes. Nem mesmo a pandemia de coronavírus freou a violência policial em 2020. Nos primeiros meses das medidas de distanciamento social, foram registradas diversas operações com registros de mortes até mesmo durante a entrega de alimentos e produtos de higiene para os necessitados. Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal foi instado a agir por meio da ADPF das Favelas e proibiu operações policiais que não fossem extremamente necessárias. Quatro meses depois, o então secretário de Polícia Civil, Allan Turnowski, declarou em entrevista que a situação do Rio de Janeiro era excepcional e que por isso todas as operações policiais estariam cumprindo a decisão do STF..

 

A pesquisa do Fórum Justiça, repito, se refere a processos sem sigilo. Essa informação é curiosa tendo em vista que o ordenamento jurídico brasileiro define que a publicidade é a regra e o sigilo, a exceção. Ainda mais em se tratando de casos já finalizados, ou seja, arquivados ou denunciados pelo MPRJ. A equipe do Fórum Justiça pediu acesso a dados básicos dos processos em sigilo, mas eles foram negados. Os pesquisadores se depararam com um obstáculo intransponível: a classificação de documentos como mecanismo de redução da transparência e, consequentemente, a redução da responsividade da instituição frente às demandas da sociedade civil.

O que temos visto nos últimos anos é um aumento do uso desse expediente para controlar o escrutínio público em torno de alguns assuntos delicados. Em 2019, o governo federal expediu o decreto 9.690/2019 que, em poucas palavras, ampliava a lista de funcionários públicos com poderes para classificar informações como sigilosas. Após pressão da sociedade civil, o decreto foi revogado, mas a sua breve existência foi um sinal claro da falta de apreço do governo de turno à transparência.

No caso do MPRJ, a negativa ao pedido de informação foi justificada mencionando o artigo 16, inciso V, da Resolução n° 89, do Conselho Nacional do Ministério Público, de 28 de agosto 2012 e a Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011; ambas as normativas estabelecem proteções às informações sob sigilo. Mas as informações solicitadas em nada poderiam vulnerabilizar os envolvidos no processo nem tampouco atrapalhar as investigações. Por isso, não deveriam estar sob sigilo. Estamos falando de processos finalizados, sob os quais o MPRJ já deu o seu parecer. Mesmo assim, os dados solicitados, data de ocorrência do fato e o tipo de movimentação realizada pelo MPRJ (arquivamento ou ajuizamento de denúncia), não seriam suficientes para singularizar nenhum dos envolvidos no caso, tampouco as circunstâncias da investigação.

 

Produzir informações sobre a atuação do MPRJ sobre os casos de mortes decorrentes de intervenção policial é um esforço fundamental para construir políticas públicas eficientes e dividir as responsabilidades em relação ao cenário de violência cometida por policiais. 

Além disso, chamar atenção para o comportamento sistemático do MPRJ de não se debruçar na medida necessária sobre as mortes cometidas por policiais permite deslocar o problema dos casos individuais para a urgência de medidas mais estruturantes. Só elas poderão, por meio de políticas públicas consistentes, reduzir a letalidade da ação policial. 

O MPRJ não tem o papel tão somente de investigar casos de mortes cometidas por policiais, mas também é da sua atribuição acompanhar sistematicamente o trabalho das polícias, sugerir ajustes em políticas públicas de segurança e agir para que as mesmas possam caminhar em direção a instituições policiais mais eficientes e menos violentas. A transparência da sua atuação também é peça fundamental para que a sociedade civil se engaje nesse esforço.

E aqui voltamos ao homicídio cometido pelo sargento em Paulo de Frontin. Ao longo do processo, a defesa do policial solicitou a devolução da arma utilizada no caso. O policial militar já estava de volta às ruas e alegava precisar do armamento para seguir atuando no policiamento. Três anos depois do ocorrido e com o policial ainda respondendo ao processo, a Polícia Militar classificou o sargento como apto A, ou seja, “Plena aptidão do inspecionado para todos os serviços de natureza policial-militar”. O Ministério Público, questionado, não se opôs à devolução da arma ao policial.

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