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    Ilustração: Projeto Comprova

anais da desinformação

Queimadas alimentam fogueira de boatos

Enquanto o fogo avança no Pantanal e na Amazônia, conteúdos falsos sobre meio ambiente e combate aos incêndios se espalham nas redes sociais

Plínio Lopes | 02 out 2020_16h03
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Na metade de setembro deste ano, quando o Pantanal já ardia em chamas e a Amazônia já tinha mais focos de incêndio do que em 2019, o ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles compartilhou um vídeo em sua conta pessoal no Twitter afirmando que “a Amazônia não está queimando”. O vídeo viralizou na rede social principalmente porque, entre as imagens da Amazônia, exibia um mico-leão-dourado. O problema é que essa espécie existe apenas na Mata Atlântica – e Salles virou piada no Twitter. O mesmo conteúdo foi compartilhado pelo vice-presidente Hamilton Mourão (PRTB).

Esse não foi o pior erro de Salles e de Mourão ao compartilharem o conteúdo. O Comprova – coalizão que reúne 28 veículos de comunicação (inclusive a piauí) para verificação de boatos – mostrou que essa e outras informações do vídeo eram falsas. A filmagem é só mais um exemplo de conteúdos de desinformação sobre queimadas e florestas que circulam nas redes sociais. Apenas em setembro, o Comprova mostrou serem falsas ou enganosas quatro publicações do tipo. Juntas, tiveram mais de 170 mil interações e mais de 350 mil visualizações até o momento da checagem.

No caso do vídeo publicado pelo ministro, a principal afirmação da gravação é a de que a Amazônia “não está queimando novamente”. Porém, dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram que haviam sido registrados 20.485 focos ativos de queimadas na Amazônia entre os dias 1º e 14 de setembro neste ano, o que já era superior a todos os 19.925 focos de calor identificados em setembro de 2019.

Outros 29.307 focos de queimadas foram identificados em agosto de 2020; número ligeiramente inferior aos 30.900 pontos de incêndios identificados no mesmo mês do ano anterior. Ao longo de todo este ano, até o dia 14 de setembro, o Inpe identificou 64.498 focos de queimadas na Amazônia. Esse dado é 11% superior ao que foi registrado, em 2019, no mesmo período. Em 2020, 77,19% dos incêndios realizados no bioma ocorreram nos meses de agosto e setembro.

Além disso, análise feita pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) sobre os focos de calor na Amazônia em 2020 aponta que a maior parte deles está relacionada ao desmatamento, não à severidade da época seca do ano. “O indicador principal é a alta proporção de focos em propriedades privadas (PP) e assentamentos (ASR) possivelmente devido à conversão de florestas em outros usos, e em florestas públicas não destinadas (ND), como resultado da grilagem e da ação de criminosos interessados em especular com a terra”, informa a nota técnica divulgada pelo Ipam.

Outra publicação verificada no começo de setembro foi uma fotografia mostrando indígenas prendendo e amarrando algumas pessoas no meio da floresta. Na peça de desinformação, a versão dos autores da publicação era de que as pessoas presas seriam “incendiários” e membros de “ONGs” [Organizações Não Governamentais]. Essa versão é falsa, mostrou o Comprova. A imagem original foi registrada pelo fotógrafo Lunaé Parracho para a agência Reuters e mostra uma operação de indígenas da etnia Ka’apor na Terra Indígena Alto Turiaçu, no Maranhão, contra a exploração ilegal de madeira em 7 de agosto de 2014. Com membros de outras tribos, eles prenderam e expulsaram desmatadores daquele local – e não funcionários de uma ONG. 

Uma das páginas que compartilharam a foto, o perfil @Galeradadireita, retirou o post do ar após constatar que o conteúdo era falso e publicou uma errata. Outras pessoas que publicaram a fotografia com a legenda falsa foram procuradas pelo Comprova, mas não retornaram o contato. O tom da publicação é alinhado com as declarações do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Em agosto do ano passado, ele acusou, sem provas, as ONGs de estarem por trás dos incêndios na floresta. Três meses depois, o presidente pediu em uma de suas lives que as pessoas não fizessem doações para ONGs. “Logicamente o mundo não está vendo o que eu estou falando aqui, mas não doem dinheiro para ONG. ONGs não estão lá [na Amazônia] para preservar ambiente, mas em causa própria.”

Outro vídeo analisado pelo Comprova, ainda em setembro, mostrava cinco homens andando por uma área de vegetação rasteira, queimando pequenos trechos de plantas secas. Atrás deles, um sexto homem grava a ação e pode ser ouvido dizendo: “Os brigadistas, ao invés de apagar o fogo, tão tacando fogo. É brincadeira? Quem é que taca fogo no Pantanal?” Na parte de trás de seus uniformes é possível identificar o nome do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Ao contrário do sugerido pelo narrador da gravação e por usuários em redes sociais, no entanto, o ICMBio explicou que os homens do vídeo não estavam provocando um incêndio florestal, mas realizando uma manobra de combate indireto das chamas conhecida como “queima de expansão”. 

Ou seja, eles não estavam “tacando fogo”, mas sim combatendo fogo com uma técnica de queima controlada que consiste em queimar pequenas áreas, de modo planejado e monitorado, para eliminar pasto seco que pode servir de combustível para incêndios florestais. O analista ambiental do Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (PrevFogo), do Ibama, Alexandre Pereira avaliou o vídeo compartilhado nas redes e confirmou que as imagens mostram uma técnica de combate às chamas. Além disso, a prática é prevista no Manual de Formação de Brigadistas do ICMBio.

A publicação mais recente verificada pelo Comprova, já no final de setembro, é um vídeo defendendo a atuação do governo Bolsonaro na preservação da Amazônia, mas que usa informações enganosas. A produção afirma que Jair Bolsonaro “criou um conselho para atuar na proteção da floresta brasileira” e que “é a primeira vez na história que um governo mobiliza todas as suas forças para combater, de verdade, os ilícitos ambientais”. O Conselho Nacional da Amazônia Legal foi, na verdade, regulamentado em 1993, pelo então presidente Itamar Franco, e teve algumas mudanças no governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1995.

Tudo que Bolsonaro fez foi reinstalar o órgão, apesar de tê-lo anunciado como novidade em resposta às cobranças de entidades ambientais. Em janeiro deste ano, no Fórum Econômico de Davos, ele afirmou que criaria um conselho para a proteção da Amazônia. Segundo ele, o objetivo é “coordenar as diversas ações em cada ministério voltadas para a proteção, defesa e desenvolvimento sustentável da Amazônia”. 

Menos de um mês depois, em 11 de fevereiro, Bolsonaro assinou o decreto que dispõe sobre o Conselho Nacional da Amazônia Legal, revogando o decreto de FHC, de 1995 – que, por sua vez, anulou o de Itamar, de dois anos antes. A sigla do órgão passou a ser CNAL. Se, em seu formato anterior, o conselho ficava sob o guarda-chuva do Ministério do Meio Ambiente, agora ele foi transferido para a vice-presidência da República – Hamilton Mourão passou a ser o presidente do órgão. Além disso, os governadores da região amazônica, que faziam parte do conselho, foram excluídos do texto de Bolsonaro. Questionado sobre essa mudança, o presidente afirmou que ter governadores no grupo “não resolveria nada”, mas que não tomaria decisões sem falar com eles.

Além da questão ambiental, o vídeo ainda afirma que o governo Bolsonaro teria prestado “mais assistência em saúde aos povos indígenas do que nos cinco anos de governos anteriores”. De acordo com o Ministério da Saúde, foram realizados 19,6 milhões de atendimentos entre 2014 e 2018; e 21 milhões entre 2019 e agosto de 2020. Porém, ao informar apenas sobre o número de procedimentos, o órgão não leva em conta os recursos voltados às populações indígenas.

Uma consulta simples no site Siga Brasil, que reúne informações sobre orçamento da União, mostra que o orçamento planejado para assistência aos povos indígenas neste ano, de 1,4 bilhão de reais, é o menor desde 2015. Em 2017, na presidência de Michel Temer, os recursos planejados foram de 1,8 bilhão de reais.

Em nota enviada ao Comprova, o Instituto de Estudos Socioeconômicos, afirma que houve uma redução nos valores do programa Promoção, Proteção e Recuperação da Saúde Indígena, do governo federal: “Houve uma queda de 9% no valor autorizado entre 2019 e 2020. Isto, seguido de uma queda de 5% entre 2018 e 2020, totalizando um corte de 14% se comparado ao orçamento autorizado para 2018.”

A peça alega ainda que o “país irá prover a segurança alimentar do mundo. Já somos responsáveis por alimentar 1 bilhão de pessoas no planeta”. Segundo a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), essa conta teria como base dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Porém, o órgão, braço das questões ligadas à fome na ONU, afirma que é difícil estabelecer essa estatística de maneira precisa. A FAO tem dados sobre a quantidade nutricional necessária ao ser humano, mas não estudos que indiquem o potencial de pessoas que cada país consegue alimentar com sua produção.

Além disso, especialistas contestam a metodologia da Embrapa argumentando que não é possível comprovar quantas pessoas são beneficiadas por alimentos oriundos do Brasil, já que muitos produtos exportados – grãos, principalmente – são usados para alimentar animais, não humanos. O papel do Brasil na segurança alimentar do planeta também é posto em xeque pela FAO e por pesquisadores. A publicação viralizou no Twitter a partir do dia 20 de setembro, mas circula na internet pelo menos desde o dia 8, quando foi publicada no YouTube pelo deputado federal Coronel Armando (PSL-SC). Ao Comprova, ele disse que não sabe a origem do material e que apenas compartilhou. Avisado sobre a conteúdo enganoso, ele enviou o link de uma reportagem sobre o anúncio da criação do Conselho da Amazônia feito por Bolsonaro. Sobre a assistência aos indígenas, disse que “tem a impressão” de que os índios estão sendo melhor atendidos porque  vivenciam “diariamente todas as ações que o governo federal vem tomando em prol do Brasil e dos índios” e se informam “diretamente pelos sites dos ministérios, sem a distorção produzida por uma parte da grande imprensa”.

As verificações citadas no texto foram feitas pela equipe do Comprova, com participação de jornalistas dos seguintes veículos: Folha de S.Paulo, GaúchaZH, UOL, Jornal do Commercio, O Estado de S. Paulo, Correio 24 Horas, A Gazeta, Poder360, SBT, O Povo, AFP e revista piauí. Você pode acessar todas elas no site do Projeto Comprova: https://projetocomprova.com.br/

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