Quando 26 presos da maior penitenciária do Acre quebraram as paredes das celas e escalaram o muro de seis metros com cordas feitas de lençóis amarrados – as conhecidas “teresas” – para ganhar as ruas de Rio Branco, na madrugada do dia 20 deste mês, a cúpula da segurança pública acriana estava bem longe dali: o governador Gladson Cameli (PP), o vice Major Rocha (PSDB) e o comandante da PM, coronel Ulysses Araújo, visitavam a “Shot Show 2020”, uma feira de armas nos Estados Unidos, para equipar a polícia acriana. O secretário de Segurança, coronel Paulo César, estava de férias e acompanhava o filho em um tratamento de saúde fora do Acre.
Os fugitivos integram o Bonde dos 13, facção criminosa ligada ao Primeiro Comando da Capital. No dia anterior, 76 detentos do PCC haviam escapado da penitenciária de Pedro Juan Caballero, Paraguai, fronteira com o Brasil – alguns por um túnel, outros pela porta da frente, auxiliados pelos próprios agentes penitenciários corrompidos pela facção paulista.
As duas fugas em massa inauguraram mais um janeiro tumultuado nos presídios brasileiros, sinal da sazonalidade das ocorrências carcerárias em meio à superlotação crônica das prisões. Uma busca simples na ferramenta Google Trends mostra que, de 2016 a 2020, o interesse pela expressão “rebelião” é acima da média nos meses de janeiro, agosto e outubro, e que elas coincidem com saídas temporárias dos detentos. A Lei de Execuções Penais prevê que os presos em regime semiaberto têm direito a cinco saídas temporárias no ano – cada saída dura até sete dias corridos. As datas são diferentes em cada estado, mas no geral coincidem com datas comemorativas e feriados ligadas à religiosidade ou à família, como Dia das Mães, Páscoa, Dia dos Pais, Dia das Crianças ou Finados e Natal.
Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, diz que os presos aproveitam essas saídas para se comunicar com integrantes de seu grupo que estão nas ruas. Depois, retornam à prisão com novas informações, os chamados “salves”, como dívidas de outros detentos, ordens a serem cumpridas ou mudanças em postos de liderança dentro do presídio. “O ambiente fica tenso e, a depender das reações da direção dos presídios antes ou depois das saídas, a cadeia vira, como se diz.”
Em janeiro, há um agravante: o mês é tradicionalmente de férias para os servidores públicos, incluindo os ligados à segurança pública e à administração penitenciária, como foi o caso do Acre neste mês. Não à toa, as rebeliões mais sangrentas dos presídios brasileiros nos últimos anos ocorreram no primeiro mês do ano, caso do motim em janeiro de 2017 no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, o Compaj, em Manaus, quando 56 presos, a maioria ligados ao PCC, foram assassinados por integrantes da facção rival Família do Norte, FDN. Consulta da piauí ao boletim Fonte Segura, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, contabilizou 62 rebeliões em cadeias e penitenciárias brasileiras e paraguaias nos meses de janeiro de 2016 a 2020, com um saldo de 472 fugitivos, 143 mortos, 71 feridos e 27 reféns. O Paraná lidera em número de rebeliões nos meses de janeiro: foram 12 no período de 2015 a 2019, seguida de Goiás, com sete 7.
O sociólogo Eduardo Matos de Alencar, autor do livro “De Quem É o Comando?: o Desafio de Governar uma Prisão no Brasil”, aponta que, a cada início de ano, é comum haver mudanças na tensa relação entre a massa carcerária e a direção dos presídios. “A assunção de um diretor mais rigoroso nas revistas, mudanças de natureza administrativa que diminuam a vigilância ou simplesmente o aumento do calor em celas superlotadas no mês de janeiro são fatores que podem contribuir para aumentar o risco de problemas dessa natureza.” Agentes penitenciários do Acre ouvidos pela reportagem confirmam o diagnóstico dos especialistas. “É quando os diretores dos presídios tiram férias”, disse um deles.
Nos meses de agosto foram 82 rebeliões em presídios do país no período de 2015 a 2019 e, em outubro, 63 revoltas. Os dois meses coincidem com datas em que costuma haver saídas temporárias: Dia dos Pais e Dia das Crianças, respectivamente. “Essa prevalência de rebeliões prisionais em janeiro, agosto e outubro chama a atenção para o fato de que há, nas políticas criminais, uma crise sistêmica que ultrapassou a dimensão da superlotação e das condições prisionais. Temos questões de ordem jurídica, aspectos psicossociais, de gestão prisional, da dinâmica de funcionamento cotidiano das prisões, da relação entre Estado e organizações criminosas e, sobretudo, de desalinhamento de expectativas. Os presídios não oferecem nenhuma perspectiva de futuro e, no começo de cada ano, isso ganha força, é dramatizado”, afirma Lima.
Em Pedro Juan Caballero, tudo indica que a fuga em massa do dia 19 último – quarenta brasileiros e 36 paraguaios – foi ocasionada por outro fator: a corrupção do poder público no país vizinho. A pedido do Ministério Público, a Justiça determinou a prisão do diretor da penitenciária e de trinta funcionários, acusados de facilitar a fuga em troca de propina no valor somado de US$ 80 mil (R$ 330 mil). Desgastado, o vice-ministro de Política Criminal do Paraguai, Hugo Volpe, renunciou ao cargo no dia 20.
A fuga reforçou o exército que o PCC possui no Paraguai: são cerca de quinhentos integrantes da facção paulista no país vizinho, segundo estimativa do Ministério Público de São Paulo. O PCC passou a controlar o tráfico de drogas no eixo Pedro Juan Caballero-Ponta Porã depois de patrocinar o atentado que matou o maior líder criminoso da região, Jorge Rafaat Toumani, conhecido como o “rei da fronteira”, em 2016. Dos que fugiram da penitenciária de Pedro Juan, a maioria é ligada a dois conhecidos integrantes do PCC radicados na região: Sérgio de Arruda Quintiliano, o Minotauro, preso em Santa Catarina em fevereiro de 2018, e Levi Adriano Felício, detido em outubro último pela polícia paraguaia em Assunção. Felício é irmão de Rodrigo Felício, o Tico, maior liderança do PCC no interior paulista. A Polícia Federal e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) apuram se há relação entre as fugas de Pedro Juan Caballero e de Rio Branco.
A perda da rota Paraguai-São Paulo para o PCC fez com que o Comando Vermelho migrasse para o Norte do país, em busca de caminhos alternativos para transportar cocaína do Peru e da Bolívia para os seus lucrativos pontos de venda nos morros do Rio de Janeiro. Por fazer fronteira justamente com esses dois países, o Acre, palco da fuga do dia 20, converteu-se na nova meca do CV. “Esta corrida para o Norte tornou-se estratégia de sobrevivência para que a facção garanta o acesso à cocaína”, diz o promotor Bernardo Albano, do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Acre.
Ao avançar em solo acriano, no entanto, a facção carioca encontrou o Bonde dos 13, ou B13, gangue ligada ao PCC. A violência explodiu no estado: de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2017, o Acre teve a segunda maior taxa de homicídios do país no ano passado, com 63,9 mortes violentas por 100 mil habitantes, só atrás do Rio Grande do Norte (67,2 mortes por 100 mil pessoas). Em todo o país, essa taxa foi de 30,9. Dois dias antes da fuga dos 26 detentos, sete pessoas ligadas ao Comando Vermelho foram vítimas de uma chacina na periferia de Rio Branco.
À fuga em massa dos presos do B13 e aos assassinatos em série somou-se a disseminação, pelo aplicativo WhatsApp, de um suposto “salve” atribuído ao CV orientando os moradores da capital a não saírem de casa. “Estamos passando pra avisa[r] a todos os moradores de rio branco não saia de suas casas hoje a guerra começou não somos de matar inocente Quem vem de ônibus muito cuidado Rio branco vai fica pequeno no dia de hoje por isso estamos dando toque de recolher a todos para que inocente mais morra nessa guerra. A partir das 19:00 a guerra começa contra os alemão”, informava o “aviso geral”.
Resultado: passava um pouco das 21 horas da segunda-feira, 20 de janeiro, e Rio Branco, com 407 mil habitantes, parecia uma cidade fantasma. Do Centro às áreas mais nobres, todos os imóveis estavam com as portas e janelas trancadas. De nada adiantou a Secretaria de Segurança Pública divulgar nota pedindo para que a população desconsiderasse o toque de recolher, informando que o policiamento havia sido reforçado na capital. Nem a divulgação de um segundo “salve”, cuja autoria foi assumida pelo CV, negando ter sido o autor da mensagem anterior.
Policiais ouvidos pela reportagem afirmam que a facção carioca já tem o domínio de quase 90% do território acriano. O auge desta conquista ocorreu no fim do ano passado, quando o CV anunciou a tomada de Cruzeiro do Sul, a segunda maior cidade do Acre. O município está na fronteira com o Peru, onde nascem os rios que cruzam a região. É na selva amazônica peruana onde se encontram os maiores laboratórios para a produção de cocaína. No meio da floresta também estão os acampamentos do CV que recebem e distribuem a droga peruana. Comunidades ribeirinhas e indígenas passaram a conviver com estes novos moradores da floresta. O governador Cameli é entusiasta da construção de uma rodovia ligando Cruzeiro do Sul à cidade peruana de Pucallpa. Se sair do papel, certamente a estrada facilitará o escoamento da cocaína pelo Comando Vermelho.
Em dezembro, a piauí mostrou o domínio do CV sob a cidade de Tarauacá, a meio caminho entre Rio Branco e Cruzeiro do Sul, o que levou centenas de jovens membros do B13 (PCC) a “aceitar Jesus como o Senhor de suas vidas” em uma igreja evangélica da cidade ou passar para o CV. Era a única maneira de saírem vivos do conflito iminente – que, diante da rendição da facção minoritária, acabou não ocorrendo.
Até terça-feira (28), pelo menos nove presos haviam sido recapturados e dezessete seguiam foragidos. Em 2018, Cameli e Rocha tinham como uma das principais bandeiras de campanha acabar com a crise na segurança, prometendo “devolver a paz para a sociedade”. Em um dos programas eleitorais – ressuscitado agora – Major Rocha afirmava que iria dar um “choque de segurança”. “Já nos primeiros meses a população vai sentir a diferença”, dizia o então candidato a vice.
Uma semana após a fuga em massa na penitenciária de Rio Branco, os 1 912 presos que permaneceram no local cumprindo pena no regime fechado iniciaram uma greve de fome em protesto contra a redução do horário de visitas e a retirada de aparelhos de tevê, ventiladores e geladeiras das celas. Nas negociações, o governo decidiu atender apenas a reivindicação de melhorar o serviço de atendimento médico aos presos. A greve de fome foi encerrada.