Ilustração: Carvall
A reconciliação da República
Bolsonaro esvaziou CGU e cooptou cúpula do Ministério Público Federal; sociedade brasileira precisa de pacto para garantir impessoalidade republicana das instituições
A sentença condenatória do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva proferida pelo ex-juiz Sergio Moro – e já anulada pelo Supremo Tribunal Federal – tem um trecho que não costuma ser muito comentado. Um trecho um tanto inusual para uma sentença judicial, mas está lá. O agora ex-ministro da Justiça e atual pré-candidato a presidente da República afirma:
É forçoso reconhecer o mérito do governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no fortalecimento dos mecanismos de controle, abrangendo a prevenção e repressão, do crime de corrupção, especialmente nos investimentos efetuados na Polícia Federal durante o primeiro mandato, no fortalecimento da Controladoria-Geral da União e na preservação da independência do Ministério Público Federal mediante a escolha, para o cargo de Procurador-Geral da República, de integrante da lista votada entre membros da instituição.
É certo que não se trata de exclusiva iniciativa presidencial, já que o enfrentamento à corrupção é uma demanda decorrente do amadurecimento das democracias, mas o mérito da liderança política não pode ser ignorado.
É muito interessante analisar esse trecho. No primeiro parágrafo, Moro reforça algo que é um fato notório, mas que nem sempre é relembrado. Os avanços no combate à corrupção realizados nas gestões Lula foram muitos. O ex-juiz menciona aqui a prevenção e repressão do crime de corrupção, o fortalecimento da Polícia Federal por meio de altíssimos investimentos, a criação da Controladoria-Geral da União e seu fortalecimento e a preservação da independência do Ministério Público Federal por meio da indicação do mais votado da lista feita pelos membros da carreira (medida que o ex-ministro não conseguiu convencer seu então chefe a tomar enquanto ele esteve no cargo).
Esses são alguns exemplos. Há outros mais. Eu estava no governo nessa época, seja como assessor especial do ministro Marcio Thomaz Bastos ou secretário nacional na gestão Tarso Genro. Acompanhei de perto essa transformação. Havia uma decisão política de se levar a sério um projeto de criação de instituições republicanas fortes que possibilitassem a ruptura com séculos de patrimonialismo.
Nesse projeto, além dos pontos mencionados por Moro, posso citar a criação de uma cultura de transparência. Falo não apenas da Lei de Acesso à Informação, fruto de um trabalho concertado do governo e da sociedade civil. Mas sou testemunha do esforço enorme que representou a decisão de, pela primeira vez, disponibilizar todos os contratos e gastos públicos na internet.
Olhando especificamente para o fortalecimento da Polícia Federal, com mais pessoal, salários mais altos e mais investimento em tecnologia, a instituição funcionava de maneira independente sob a liderança de Paulo Lacerda. Mas ainda mais importante que isso foi a criação da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA). Um esforço liderado pelo Ministério da Justiça, que reunia todas as instituições de controle do Brasil para pensar na criação de políticas públicas para enfrentar a corrupção. Essa iniciativa fez toda a diferença na construção de uma ampla agenda de reformas, tais como Lei de Lavagem de Dinheiro, Lei de Combate ao Crime Organizado, Lei Anticorrupção, penhora online, cooperação jurídica internacional, cursos de formação de agentes públicos, processos de fiscalização por parte da CGU. Implementadas, realmente transformaram o Estado brasileiro.
E aí entra o segundo parágrafo aqui citado da sentença de Moro. O então juiz, após tecer os elogios à gestão do ex-presidente, mesmo reconhecendo o “mérito da liderança política”, afirma que esses avanços ocorreram porque “o enfrentamento à corrupção é uma demanda decorrente do amadurecimento das democracias”. Esse era mesmo um debate importante no início dos anos 2010. Os inegáveis avanços eram mérito do governo ou eram mera decorrência do amadurecimento da sociedade?
O governo pelo qual Moro abandonou sua carreira de juiz para se tornar ministro da Justiça respondeu à pergunta de forma eloquente: a revolução institucional promovida nos anos anteriores foi, de maneira tão rápida quanto eficiente, reduzida a pó. O aparelhamento da Polícia Federal, muito bem descrito na reportagem de Allan de Abreu na edição de novembro da piauí, em um processo que contou com apoio de ministros de tribunais superiores simpatizantes do governo, deixou claro que um presidente decidido a transformar a PF em “sua” polícia consegue fazê-lo.
O governo também desmontou em grande parte os esforços de transparência pública, esvaziou a Controladoria-Geral da União, atacou a independência do Coaf, e, mais importante, conseguiu cooptar a cúpula do Ministério Público Federal, tornando-se virtualmente imune a qualquer processo de responsabilização.
É como se todos os avanços construídos desde 1988 para que a Constituição criasse instituições fortes, impessoais e republicanas tivessem sido completamente apagados. O mito de que esse processo era irreversível e se mantinha mais por pressão da sociedade do que por vontade política do governo se desfez com a administração Bolsonaro. A República é um projeto que depende, ainda, de um programa apoiado fortemente pelo chefe do Poder Executivo.
Mas é evidente que não basta conduzir ou reconduzir candidatos que afirmem publicamente o compromisso com a reconstrução do arcabouço republicano desmontado por Bolsonaro.
De um lado, é também evidente que o governo do Partido dos Trabalhadores, ao mesmo tempo em que avançava com a agenda republicana, não rompeu com uma forma de fazer política que se amoldou perfeitamente nos esquemas corruptos e patrimonialistas do Estado brasileiro. E caiu em uma armadilha que ele mesmo montou. Um governo não é algo monolítico. É resultante de forças, muitas vezes contraditórias, e isso é parte do processo democrático. Mas se há, de um lado, forças que aumentam a possibilidade de responsabilização pública como nunca antes e, de outro, forças que navegam a política como sempre se navegou no Brasil, a colisão era só uma questão de tempo.
Não será possível retomar o projeto de reconstrução das combalidas instituições republicanas sem mudar a forma de se fazer política, de se relacionar com o Congresso e de conduzir partidos políticos.
Há, também, outro aprendizado importante: a criação de instituições republicanas depende da política, como vimos acima, mas não pode servir ao jogo político posteriormente. O fortalecimento da PF, do Ministério Público e do Judiciário trouxe consigo novos atores políticos. Esses atores traíram a ideia de impessoalidade e legalidade que deve inspirar um projeto republicano e se utilizaram do enorme poder que essas instituições renovadas lhes conferiam para avançar uma agenda político-eleitoral.
A capacidade de investigar casos de corrupção no Brasil e de responsabilizar corruptos é fruto da democracia. É fruto da decisão política de se levar adiante um projeto republicano. E dependia, para ser perene, de um compromisso amplo com os valores republicanos. Mas os atores que surgiram desse novo poder conferido, ao invés de reconhecer o mérito da política democrática que deu origem a essas instituições, caminharam no sentido contrário. Se esforçaram ao máximo para tratar a política como equivalente à corrupção. E, a partir disso, capturaram a agenda republicana para criar seu próprio palco político.
A política democrática pós-88 no Brasil foi responsável pela construção das instituições republicanas. E, uma vez constituídas, deveriam se afastar da arena política. Mas o que vimos com alguns atores da Lava Jato vai na direção oposta da relação saudável . A Lava Jato nega a política que a constituiu e mergulha na política eleitoral.
A ilusão de que era possível fazer o salto da vara judicial para o Ministério da Justiça sem corromper o projeto republicano se desmanchou em meses. O salto apenas consolidou o destino que foi traçado por eles mesmos. A ruptura com a impessoalidade e a perseguição direcionada a adversários (e as mensagens da Vaza Jato escancaram isso) não poderiam dar em outro resultado que não em um governo que destruísse completamente essas instituições. No patrimonialismo, o poder serve a interesses pessoais. Esses interesses muitas vezes capturam as instituições para a perseguição de adversários e, portanto, para a destruição da democracia.
O futuro projeto de país previsto na Constituição de 88 depende de uma reconciliação da República com a Democracia. Uma compreensão de que a construção de instituições fortes depende da política. Depende da eleição de líderes dispostos a levar adiante esse projeto. Mas também depende da contenção dos impulsos políticos dos servidores públicos que ocupam essas instituições. A independência da Polícia Federal, do Ministério Público e do Judiciário não pode ser a autorização para se fazer política, pois é exatamente isso que está na origem da corrupção dessas instituições.
Qualquer que seja o próximo governo, que oxalá venha para romper com o bolsonarismo e com o patrimonialismo autoritário que ele representa, tem que dar as condições para que as instituições cumpram suas missões constitucionais. Mas também deve construir, em conjunto com a sociedade, um pacto para garantir que essas instituições não sejam capturadas por projetos políticos. De dentro ou de fora do governo.
A autonomia ampla para investigação deve ser acompanhada de corregedorias firmes contra o uso político da PF. Operações devem contar com todo o apoio logístico do Ministério da Justiça, porém com protocolos rígidos para evitar a espetacularização do processo penal. O escolhido para o Ministério Público deve sair da lista indicada pelos membros da carreira, mas deve firmar compromisso com a não politização da instituição.
De maneira geral, é preciso valorizar as carreiras públicas. Do Ibama ao Itamaraty, da Receita Federal à Advocacia da União, dos Gestores Públicos ao Tesouro Nacional. Mas devemos desconfiar sempre daqueles que veem nessa valorização a substituição da política. As diretrizes políticas devem ser claras, transparentes e virem dos eleitos. Aos servidores públicos caberá executar as políticas e garantir que se implementem sempre na forma da lei.
O Brasil já mostrou que sabe como fazer para conciliar República e Democracia. É necessário apenas aprender com os nossos erros para valorizar os enormes acertos do país nessa área, no quarto de século que se seguiu à Constituição de 1988.
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