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    Ilustração: Carvall

questões da transição

Redistribuir cargos não resolve gestão da segurança pública

Lula prometeu dar prioridade ao setor, mas falta de estrutura ameaça conquistas recentes, como a redução de mortes violentas intencionais

Renato Sérgio de Lima | 15 dez 2022_08h39
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É muito cedo para qualquer análise mais aprofundada sobre qual será a política de segurança pública do governo Lula. Alguns sinais emitidos durante a transição, porém, permitem afirmar que alguns desafios históricos da área deverão persistir e, no intuito de contribuir para o sucesso do projeto de resgate civilizatório, faço alguns pontos de alerta para a nova gestão. 

Em primeiro lugar, a definição por um único Ministério da Justiça, não obstante a promessa de campanha de querer uma pasta específica para a segurança pública, foi justificada por um enquadramento conceitual que precisa ser, no mínimo, debatido. A tradição política e jurídica brasileira considera a segurança pública como um subsistema do sistema de Justiça criminal. Assim, todos os esforços são pensados a partir do ideal de integração e coordenação por dentro da política criminal e penitenciária, que é a resultante da ação política dos diferentes órgãos de estados e poderes da República.

No entanto, para além do debate teórico sobre a (im)possibilidade de integração de ações de poderes independentes, a nossa Constituição ampliou o conceito de segurança pública e o considera um direito social. E, enquanto tal, a área não deveria ser capturada completamente pela lógica criminal, pois embute estratégias de prevenção da violência, mas sobretudo de proteção social e ampliação da cidadania, em especial para grupos vulnerabilizados como negros, jovens, mulheres e crianças. Vincular segurança à lógica exclusiva do sistema de Justiça criminal é priorizar o enfrentamento do crime e, diante da arquitetura institucional das polícias hoje existente, legitimar a opção político-institucional que aceita que operações policiais paralisem a vida de milhares de pessoas inocentes que são impossibilitadas de sair de suas casas em meio ao fogo cruzado da guerra cotidiana.

Em segundo lugar, há um problema federativo grave. O Brasil conta com 86 corporações policiais, 25 corpos de bombeiros militares e mais de 1 mil guardas municipais. Ao contrário do que se imagina, as normas que regulam essa miríade de organizações são federais. Segurança pública não é responsabilidade apenas de governadores e prefeitos. Aliás, foi o fato de Bolsonaro ser o primeiro presidente desde a redemocratização a não fugir do tema que fortaleceu seu vínculo com os mais de 700 mil profissionais da área, mesmo que, no frigir dos ovos, ele tenha feito muito pouco para eles. Bolsonaro soube explorar as fissuras de um campo de políticas públicas do qual todos antes deles se distanciaram.

Como? Potencializando o discurso do medo, da insegurança e da violência como linguagem corrente. E, na falta de coordenação e governança federativa, manteve arranjos, padrões operacionais de uso da força e práticas anteriores à Constituição criados na lógica da segurança como neutralização do inimigo interno e que ainda balizam a atuação das forças de segurança. As contradições e as dissonâncias de governança têm se mantido intactas e são exploradas pelo bolsonarismo para cooptar policiais ao associá-las a qualquer voz ou visão de mundo que não seja a sua. As agruras cotidianas dos policiais, como carreiras, salários, condições de saúde mental, riscos da profissão, entre outras, são atribuídas por Bolsonaro e seus apoiadores à falta de atenção que tais instituições estariam merecendo de segmentos do campo democrático à direita e/ou à esquerda do espectro político-ideológico. 

 

Não à toa estamos presenciando a leniência e a demora das instituições diante das ocupações e ataques antidemocráticos de apoiadores do ainda presidente. Afinal, elas se sentem autorizadas e são autônomas em definir em que vão ou não atuar, mesmo com as pressões para inibir cenas que, pela natureza de subversão da ordem democrática, remetem à ideia de terrorismo doméstico, fenômeno que tem preocupado as democracias ocidentais nos últimos anos. Isso ocorre também porque todas as normas e regras infraconstitucionais que regulam as polícias brasileiras são anteriores à Constituição, com exceção da Lei que criou o Susp (Sistema Único de Segurança Pública), aprovada em 2018. Sem enfrentar uma agenda de governança e de gestão, não conseguiremos reduzir o peso da radicalização de segmentos policiais.

E aqui entra a variável de gestão e administração pública.

Uma das diretrizes que balizaram o trabalho dos GT da equipe de transição foi a de que propostas de readequação das estruturas dos ministérios preservassem o número de cargos de cada ministério ao final do governo Dilma Rousseff, em meados de 2016. Todavia, nesse período, o Brasil convivia com a escalada de mortes violentas intencionais, a guerra entre milícias e facções de base prisional e ainda não existia o Susp, que ajudou o país na articulação e na mobilização para a redução da violência observada exatamente a partir de 2018. 

Ou seja, se o novo governo mantiver a ideia de retomar a estrutura organizacional anterior à aprovação do Susp, com apenas uma Secretaria Nacional dedicada à área, não existirá estrutura para garantir a Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social criada por leis posteriores a 2018. E, em termos operacionais, não teremos cargos para que todos os mecanismos de governança, avaliação e monitoramento criados pelo Susp sejam implementados, de modo a reverter o estrago feito pelo bolsonarismo. A ordem do presidente Lula para colocar a “casa em ordem” ficará, assim, dependente de puxadinhos organizacionais que podem fragilizar a posição dos gestores principais da área. Mas, mais do que isso, as conquistas no controle da violência letal ficarão ameaçadas. 

Como não existem servidores concursados ou carreiras de gestão da área em número suficiente no Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), o indicador de capacidade de gestão acaba sendo o número disponível de cargos de livre provimento. Hoje, considerando apenas as três secretarias nacionais dedicadas diretamente à segurança pública (Senasp, Seopi e Segem), sem incluir PF e PRF, há ao menos 147 cargos de direção e assessoramento de livre provimento. Em 2016, quando só existia a Senasp, ainda sem muitas das atribuições previstas no Susp, havia 67 cargos/funções. E, como agravante, a Senasp funcionava (ainda funciona) à base de colaboradores eventuais precários, muitos cedidos pelas Unidades da Federação para a Força Nacional de Segurança Pública, desvirtuando o caráter e a proposta desse importante convênio federativo. 

E o que isso significa? Significa pouca capacidade de planejamento e que um colaborador eventual será o responsável por decidir a liberação ou fiscalização de milhões de reais, em uma enorme insegurança jurídica para esse profissional. Ao mesmo tempo, mesmo com novos cargos, a atual estrutura ainda não contempla novas tarefas definidas por leis recentes, como a que destina 5% dos recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública (lei nº 14.316/2022) para o fortalecimento da rede de proteção e enfrentamento à violência contra a mulher.

 

Assim, pela lógica da administração pública, se só a Senasp for mantida, teremos uma redução aproximada de mais de 50% na equipe de alta direção dedicada à segurança pública no MJSP. A segurança pública corre o risco de ter sua prioridade rebaixada e que outras áreas, como a já sobrecarregada área de logística do Ministério, sejam impactadas com demandas e prazos de compras, convênios e repasses para Unidades da Federação e forças de segurança pública.

E não para por aí. Pelo desenho de 2016, não há espaço para a urgente repactuação federativa sobre a atuação do poder público na Amazônia frente à sobreposição de crimes e violências na região observada a partir especialmente de 2017. Ou ainda para que a gestão e modernização do sistema de controle e rastreabilidade de armas de fogo sejam otimizadas, já que hoje os sistemas do Exército e da Polícia Federal não se conversam e muitas armas são desviadas para o crime. O modelo de 2016, como o próprio governo Dilma afirmava, era insuficiente para o tamanho e a quantidade dos desafios postos.

Não basta achar que redistribuir cargos e funções para a PF e para a PRF resolverá o problema. Entre 2016 e 2022, as duas polícias ganharam 1.243 cargos de direção e assessoramento e nem por isso ficaram imunes à radicalização política e ao desvio de funções que temos visto nos últimos meses. Em uma Federação, não cabe à Polícia Federal, por exemplo, assumir a função de polícia que coordena as demais e, por isso, não cabe tirar sistemas de informações ou inteligência e ações de coordenação federativa de outras unidades do MJSP e transferi-las para a corporação.

A segurança pública exige investimentos pesados de construção de novas regras de governança e de novas capacidades institucionais. O problema não é apenas de mais dinheiro. É um problema de modelo de Estado. Ou entendemos isso, ou apenas estaremos enxugando gelo ou trocando seis por meia dúzia. Um bom exemplo é o vaivém das leis orgânicas das polícias, que são pensadas apartadas e sem a devida articulação em torno da premissa de segurança como direito social. E isso vai esgarçando a relação com as forças de segurança.

O esforço da equipe do futuro ministro Flávio Dino na construção de uma política nacional de segurança pública forte e duradoura será imenso. Ao trazer os pontos de alerta deste texto à tona, meu objetivo é frisar: as demandas que a nova política fará por nova estrutura e por novas capacidades institucionais não são meros detalhes e não podem repetir o modelo de 2016. Casa Civil, Planejamento, Gestão e Fazenda precisam entender que a área deve se beneficiar das conquistas residuais feitas até aqui, sobretudo pelo Susp, e serão centrais para o sucesso do governo Lula na área. É preciso avançar.

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