A fresta aberta pelo auxílio emergencial permitiu que, em meio à maior tragédia sanitária e econômica de nossa história (e apesar de ideário progressista não ser lá a marca do atual governo), ideias antigas e movimentos novos encontrassem espaço. E, de repente, começamos a falar sobre renda básica – uma ironia e uma oportunidade única. Porém, também de repente, o debate público parece agora não sair do lugar. Se não faltam boas ideias, por que há tanto “tira-põe-deixa-ficar” de alternativas e propostas? Por que estamos patinando tanto?
O problema é que as verdadeiras barreiras não estão sendo efetivamente tratadas.
A experiência brasileira na implementação de programas de transferência de renda esteve na vanguarda. Iniciada nos anos 1990 com políticas municipais dispersas, logo se tornou iniciativa federal. Em 2003, o Bolsa Família unificou um conjunto de programas sociais pré-existentes sob uma mesma diretriz e uma mesma matriz de informações, o CadÚnico. Não há qualquer dúvida de que, desde seu nascimento, tenha percorrido uma bem documentada trajetória virtuosa.
No entanto, o Bolsa Família veio ao mundo com limites. Anualmente deve conquistar um espaço na lei orçamentária – e uma vez definido, o número de beneficiários, a linha de pobreza e a existência ou não de reajustes serão calibrados, de forma a caber nos limites fiscais. Na prática, o programa cresceu quando houve crescimento econômico, e perdeu espaço de 2015 a 2019, enquanto a pobreza aumentava a galope. O orçamento foi cortado sistematicamente desde então; houve queda acentuada nos valores dos benefícios (por família e per capita), acompanhada de um declínio do papel ativo do governo no cadastramento das famílias mais pobres. Porém, o ajuste fiscal foi seletivo. Nem todas as cabeças precisaram se curvar ao teto baixo, nem todos os pés ficaram de fora do cobertor curto. Na prática, o montante de gastos não foi reduzido, o que houve foi apenas uma recomposição de rubricas, na qual a assistência aos mais pobres saiu em desvantagem.
Quando o coronavírus desembarcou no Brasil, obrigando-nos a tomar drásticas medidas de desaceleração econômica para a devida contenção da Covid-19, os mais pobres já acumulavam perdas e desgostos havia pelo menos cinco anos. Para a base da distribuição de renda, no início deste ano, a crise iniciada no segundo trimestre de 2014 não havia passado, embora comitês de datação a tivessem dado como encerrada em dezembro de 2016. Em janeiro, uma “fila” de 1,7 milhão de famílias esperava indefinidamente na antessala do Bolsa Família, embora atendessem a todos os critérios de elegibilidade. Eram evidentes as consequências dos limites de seu formato.
Nesse bojo, o auxílio emergencial, inadvertidamente, foi a pá de cal. O programa formulado às pressas pelo Congresso logrou de fato proteger os mais pobres, recompondo inclusive parte das perdas que datavam de muito antes da pandemia. A população sentiu no bolso a diferença com respeito ao Bolsa Família – e agora, obviamente, não deseja voltar para a realidade da crise pré-pandêmica. Uma preferência nada mais do que racional. Elevamos assim o “valor de reserva” de um benefício de transferência de renda. Sete meses depois da chegada da Covid-19, a taxa de desemprego atinge seu máximo histórico (14,4%), e o nível de ocupação flutua em torno de seu mínimo (estando hoje em 48,7%). E ainda que determinados estados e municípios declarem que já estão em “zona verde”, fora de perigo epidemiológico, não há postos de trabalho para os quais retornar. Desprotegidas, pequenas e microempresas, as que mais empregam mão de obra no Brasil, foram devastadas. E os prospectos futuros não agradam — não há razões razoáveis para retomar contratações e investimentos frente à grande incerteza. Sem uma rede de proteção social mais ampla, não haverá salvação.
Precisamos de um programa mais robusto do que o Bolsa Família e mais fiscalmente viável do que o auxílio emergencial. Esse é o consenso entre pelo menos 23 dos 24 partidos representados no Congresso Nacional, que hoje compõem uma frente ampla parlamentar por um programa de renda básica (sem novidade: quem ficou de fora foi o Novo). Novos desenhos e projetos não faltaram. O que varia é o grau de focalização (deveria ser restrito aos extremamente pobres ou abarcar também a população informal que sofre de crônica volatilidade de renda?) e a estratégia de focalização (deveria se basear na renda domiciliar ou em algum tipo de estratégia indireta, como, por exemplo, uma Renda Básica Infantil, fundada num critério etário?).
O financiamento tem sido objeto de inúmeras e diferentes propostas – e podemos também diferenciá-las em função das fontes de financiamento necessárias à sua implementação. Há pelo menos quatro tipos de estratégias. Duas que, em tese, respeitariam o teto de gastos; e outras duas condicionadas à mudança da regra.
Das que se propõem a respeitar o teto, uma primeira tentaria obter recursos basicamente por meio da reestruturação de programas existentes. Um exemplo é a proposta do Centro de Debates de Políticas Públicas (CDPP), sugerindo a utilização de recursos do Abono Salarial, Salário Família e Seguro Defeso. Outros propuseram desindexar aposentadorias e pensões acima de um salário mínimo e até o próprio salário mínimo. O presidente da Câmara dos Deputados pareceu ser favorável à ideia de desindexar, cortar, fundir, recompor e realocar esses gastos para financiar uma renda básica. Uma segunda estratégia para respeitar o teto seria contorná-lo criativamente, tal como a hipótese aventada pelo Executivo federal, que previa lançar mão de recursos atualmente destinados ao pagamento de precatórios e também de parte da complementação da União ao novo Fundeb.
Propostas com custo mais elevado exigem a realização de algum tipo de mudança na regra do teto, permitindo aumento de gastos e exigindo maior arrecadação. Atrelam, assim, o financiamento à aprovação de medidas de reforma tributária. Um dos focos seria nas mudanças em impostos diretos, como o Imposto de Renda Pessoa Física ou impostos sobre patrimônio (heranças e doações, grandes fortunas). Nessa linha, tanto especialistas como políticos apresentaram propostas. Inclusive, projetos de lei foram protocolados no Congresso Nacional (como os PLs de José Serra e da bancada do PT e a PEC de Tasso Jereissati, por exemplo). Uma segunda possibilidade seria compor uma espécie de fundo com a devolução prevista pela PEC 45 às famílias mais pobres (reforma dos tributos sobre bens e serviços), para então transferir esses valores às pessoas mais pobres na forma de uma renda básica.
Os custos adicionais das propostas até agora apresentadas variam de aproximadamente 20 bilhões (na proposta do CDPP) até 200 bilhões de reais (na proposta apresentada pelo PT). No entanto, todas elas padecem do mesmo mal: o de não serem plenamente executáveis no prazo previsto para o fim do auxílio emergencial, em dezembro de 2020. A combinação de um novo desenho com uma nova fonte de financiamento dificilmente, ou apenas parcialmente, seria exequível no início de 2021. A viabilidade teria que ser construída com uma transição mais longa entre o auxílio emergencial e um novo desenho de transferência de renda, como proposto por pesquisadores do IPEA e outros especialistas.
É necessário diferenciar, assim, o curto e o longo prazo. A prorrogação do chamado Orçamento de Guerra para 2021 poderia fornecer tempo para a construção de uma maioria no Congresso em torno de um novo programa. Embora não seja uma alternativa de financiamento permanente, permitir o endividamento de emergência deixaria em suspenso os problemas do teto e da arrecadação. Mas é preciso cuidado, porque estratégias frequentemente concebidas como temporárias podem abrir caminhos para vícios e problemas duradouros. No horizonte próximo, porém, parece não haver alternativa.
Permaneceremos num impasse enquanto a viabilidade fiscal não for demonstrada. A quantidade de propostas e a dificuldade em definir fontes de financiamento mostram um grande impasse em relação ao ajuste orçamentário necessário para aprovar um programa de renda básica: cortar despesas (e reduzir direitos) ou aprovar aumento de carga tributária? Como fazer a renda básica caber no teto de gastos e no orçamento de 2021?
O elevado número de propostas que hoje tramitam ou são discutidas mostra que se tornou relativamente fácil propor um desenho de renda básica. Para os políticos, basta um conjunto de assessores parlamentares; para os especialistas, um bom conjunto de dados e simulações de cenários. Nossa carência não é de ideias geniais que pudessem resolver tudo, mas de coalizões verdadeiramente capazes de mexer no “imexivel”: a progressividade dos tributos e o teto. O problema fiscal não é meramente contábil. É, sobretudo, político. A questão latente é nosso eterno conflito distributivo: a busca por aumentos de bem-estar social sem ônus para os mais ricos.
Ao longo de todo o período democrático, desde 1985, não houve uma única reforma tributária aprovada com cunho progressivo e redistributivo, como mostram Lazzari e Arretche. Nossa Constituição de 1988 foi inclusiva na forma como concebeu os gastos, mas não a arrecadação. A Emenda do Teto adicionou então uma limitação do lado dos gastos. Estamos com as duas mãos amarradas. Não há dúvida de que despesas não podem crescer indefinidamente e o Estado deve ser responsável com seus credores. Mas apontar para a necessidade de revisão da regra do teto, ao menos no que concerne aos mais vulneráveis, parece soar, nesse contexto de tabus, como um grande flerte com a irresponsabilidade. E não deveria.
Esse é o ponto no qual patinamos: o inconciliável desejo de proteger simultaneamente pobres e ricos, quando, na realidade, uma escolha necessária se torna cada vez mais inadiável. O silêncio político sobre esses pontos é análogo àquele de uma elite que, olhando a desigualdade por detrás de seus vidros fechados, faz mímicas para os que estão de fora, balbuciando: “não, obrigado.”