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Rituais festivos e fúnebres – os fantasmas voltaram

Número de infectados aumenta na Itália enquanto transcorre o Festival de Veneza presencial

Eduardo Escorel | 09 set 2020_09h13
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Casos de coronavírus foram identificados em 41 das 825 escolas de Berlim, duas semanas depois de elas terem sido reabertas; na Espanha, a pandemia está fora de controle em alguns lugares; no início de agosto, na França, houve aumento de 42% nos casos de pessoas contaminadas e forte incremento da circulação do coronavírus entre adultos jovens – informações colhidas no jornal The Guardian de 22 de agosto.

Artigo recente publicado na revista Science (01/09) confirma o quadro preocupante: “Depois de fazer a Covid-19 recuar na primavera, a maior parte da Europa está vendo o ressurgimento da doença. A Espanha está notificando cerca de 10 mil casos por dia, mais do que no auge do surto na primavera. A França voltou a registrar milhares de casos por dia. Na Alemanha, os números ainda são baixos, mas crescem constantemente. A pandemia está afetando países que viram poucos casos na primavera, como Grécia e Malta, mas também está se disseminando em lugares que sofreram terrivelmente, incluindo as cidades de Madrid e Barcelona.” O título do artigo em questão é uma pergunta de resposta incerta – “A Europa pode domar a próxima onda da pandemia?”

Não se trata de alarmismo, mas de encarar fatos incontestáveis desse panorama inquietante, para dizer o mínimo, mas que não impediu a abertura do 77º Festival de Cinema de Veneza há uma semana (02/09) – a primeira grande festa do cinema a ser realizada de forma presencial após “os níveis alarmantes de contaminação e, também, de falta de ação [dos governos]” terem levado a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 11 de março, a declarar que o surto da Covid-19 se tornara uma pandemia.

Uma das primeiras notícias divulgadas sobre o Festival tratou de alta moda, não de cinema. Para gáudio dos fotógrafos de plantão, atrizes e modelos desfilaram no tapete vermelho, usando vestidos assinados por costureiros famosos e vestes cafonas, em alguns casos com decotes abissais ou talhos de alto a baixo que revelavam as pernas.

Na tentativa de justificar a realização presencial do evento em Veneza, o diretor do Festival, Alberto Barbera, apelou para argumento verdadeiro mas insatisfatório – “a sensação de assistir a um filme na tela grande com outras pessoas é da própria natureza da indústria cinematográfica.” Em ligeiro surto de grandiosidade, Barbera afirmou ainda que o esforço para reabrir cinemas e realizar festivais presenciais foi uma “batalha pela civilização e pela cultura”. Declarações que receberam apoio dos diretores de outros sete festivais europeus, inclusive Thierry Frémaux, do Festival de Cannes, cancelado em maio, e os de San Sebastian e de Londres, que pretendem seguir o exemplo italiano e festejar nos próximos meses com presença de público.

No caso de Veneza, a pandemia na Itália deu sinais, de fato, que ajudam a entender a decisão, tomada há alguns meses, de planejar uma festa presencial. Depois de a contaminação atingir o pico de 6557 casos em 21 de março, a curva oscilou, com tendência de queda progressiva nas semanas seguintes, até chegar a 355 casos no final de maio, e a 142 casos em junho. Entre o final de março e o final de junho, as mortes causadas pela Covid-19 passaram, por sua vez, de 837 a 23. Esses dados levaram os autores de artigo recém-publicado na revista The Lancet (03/09) a afirmar que “a primeira onda da pandemia de Covid-19 terminou na Itália: nenhum excesso de mortalidade em maio de 2020”, incluindo a região da Lombardia, a mais atingida pelo coronavírus.

Tratando-se de um festival internacional, porém, havia a considerar a situação da pandemia nos países de onde viriam convidados e jornalistas, além da possibilidade de haver uma segunda onda da Covid-19, conforme cientistas haviam advertido que poderia ocorrer. Tampouco foi levado em conta o mau exemplo dado aos negacionistas de países como os Estados Unidos e o Brasil. Ambos vivem fases da pandemia diversas da Itália, com milhões de contaminados e milhares de mortos exigindo preservar restrições sanitárias, enquanto medidas de liberalização são tomadas, estimulando aglomerações irresponsáveis em praias, parques, restaurantes e bares.

Barbera apostou alto sem avaliar de maneira adequada a possibilidade de enfrentar o que está acontecendo na Itália desde o início de agosto: o crescimento de contaminados, tendo atingido 1733 casos no início deste mês, mantendo-se baixo o número de mortos desde julho. Em algumas semanas será possível conferir qual o efeito do Festival, que termina daqui a três dias (12/09), na saúde dos participantes italianos e estrangeiros, e se o festejo valeu a pena. 

Dezoito filmes, sendo quatro dirigidos por italianas ou italianos, concorrem ao Leão de Ouro, prêmio máximo do Festival. Entre os participantes da mostra competitiva, além dos filmes de Amos Gitai e Kiyoshi Kurosawa, há os de Gianfranco Rosi, Pedro Almodóvar e Lav Diaz, todos três vencedores do Leão de Ouro para melhor filme em anos anteriores.

Participam da mostra oficial fora de competição os documentários City Hall, de Frederick Wiseman, e Narciso em Férias, de Renato Terra e Ricardo Calil, lançado segunda-feira (07/09) no Brasil, na plataforma de streaming Globoplay, mesmo dia da estreia em Veneza, depois da exibição na véspera (06/09) para a imprensa.

Os textos de Wiseman, Terra e Calil, em que apresentam seus filmes no site do Festival, têm uma preocupação em comum – sublinhar que tratam de questões da atualidade. São demandas que dizem respeito às condições necessárias para que as pessoas possam “viver juntas com sucesso”, nas palavras de Wiseman, o que “depende de o governo oferecer uma ampla gama de serviços importantes e necessários… de uma maneira coerente com a Constituição e as normas democráticas”.

Narciso em Férias, de seu lado, “exclui tudo que é desnecessário para se concentrar nas palavras, gestos e olhares de Caetano Veloso”, segundo Terra e Calil. “Essa é uma escolha estética e moral”, indica João Moreira Salles, um dos coprodutores: “Diante de tamanha violência, todo excesso seria descabido. Este é um filme sobre o Brasil, de então e de agora. Os fantasmas voltaram.”

(Não me tendo sido dada a possibilidade de assistir a Narciso em Férias antes de escrever esta coluna, fica para outra ocasião comentar o filme.)

Cena do filme Narciso em Férias – Foto: Reprodução

 

O fato de Narciso em Férias ser lançado no Brasil em plataforma de streaming, no mesmo dia da estreia oficial em Veneza, é irônico ao confirmar a possibilidade de as duas formas de lançamento serem complementares, refutando a ameaça fatal representada, segundo Barbera, pelo “favorecimento dos sites de streaming na batalha por espectadores e o número crescente de assinantes da Netflix”.

O suposto antagonismo entre festivais e serviços de streaming, apontado por Barbera, recebeu endosso parcial de Frémaux. O diretor do Festival de Cannes alertou, por um lado, para a ascendência do que chamou de “plataformas de TV” durante o surto do coronavírus, mas disse, de outro, que streamers, salas de cinemas e festivais precisavam “encontrar um meio de coexistir”.

Eventos presenciais de cinema, no Brasil, deveriam continuar fora de cogitação por enquanto. Afinal, o país passou de 4,1 milhões de casos registrados de coronavírus, e o número de mortos pela Covid-19 superou 127 mil. A média móvel do número de contaminados está estável, mas em patamar alto, e a de falecimentos apresentou queda, chegando nos últimos dias a 691 óbitos. Festivais, como o de Curtas Metragens de São Paulo, concluído em 30 de agosto, e o CineOP – 15ª Mostra de Cinema de Ouro Preto, realizado de 3 a 7 de setembro, optaram pelo formato online. Da mesma forma, Amir Labaki, diretor do Festival Internacional de Documentário É Tudo Verdade, anuncia nesta quarta-feira (09/09) a segunda etapa do 25º Festival, a ser iniciada em 24 de setembro. Prevista inicialmente para ser presencial, por força das circunstâncias foi levada a transcorrer online, como a primeira etapa realizada entre o final de março e primeira quinzena de abril.

Na sessão de abertura do É Tudo Verdade no Belas Artes Drive-In, em São Paulo, A Cordilheira dos Sonhos (2019), de Patrício Guzmán, será exibido para convidados, ao mesmo tempo em que estará disponível online em âmbito nacional, podendo ser acessado sem custo no site do Festival. A Cordilheira dos Sonhos completa a trilogia do diretor dedicada aos vestígios da ditadura chilena (1973 – 1990), tema dos dois extraordinários documentários anteriores, Nostalgia da Luz (2010) e O Botão de Pérola (2015). Até 3 de outubro, véspera de ser anunciada a premiação, o Festival exibirá mais de 60 filmes online, entre brasileiros e estrangeiros, estando prevista uma sessão presencial dos contemplados no Rio de Janeiro, no final do ano, caso até lá as salas de cinema tenham sido reabertas. O É Tudo Verdade confirma, dessa maneira, que as duas formas de exibição, com presença física de público e online, podem coexistir e parecem ter vindo para ficar.

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Realizado entre outubro de 2018 e dezembro de 2019, Na Dança! Doc, de Roberto Gervitz, estreia amanhã, 10 de setembro, e permanece em exibição até o dia 20, no site br.in-edit.tv do Festival IN-EDIT, na mostra Brasil.doc. Nas palavras de Gervitz, o documentário “revela o poder transformador da dança. A partir do Festival de Músicas e Danças do Mundo, 2018 – uma maratona de aulas e performances com grandes dançarinos imigrados – conhecemos a vida de quatro desses mestres. Eles refletem sobre os seus desafios no novo país e as suas motivações, numa perspectiva de encontro e aprendizado mútuo”.

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Sementes: Mulheres Pretas No Poder, de Éthel Oliveira e Júlia Mariano, estreou em 7 de setembro e está disponível online, com acesso gratuito, no site embaubafilmes.com.br. O documentário foi filmado no Rio de Janeiro, durante o primeiro turno das eleições de 2018, acompanhando seis candidatas: Mônica Francisco, Renata Souza, Talíria Petrone, Rose Cipriano, Tainá de Paula e Jaqueline Gomes. Sementes: Mulheres Pretas No Poder nasce do desejo de contar como a barbárie da morte de Marielle Franco se transformou no maior levante político conduzido por mulheres negras que esse país já viu e nasce, também, com o objetivo de quebrar, de certa forma, essa cultura no audiovisual, e mostrar uma história sobre lideranças negras, contadas por profissionais negras”.

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Outra opção segura é visitar o CINEMA ROOM e assistir a cinco filmes de Cao Guimarães, disponíveis até 25 de setembro no link https://www.xippas.com/category/cinema/cor-acao-mo-vi-mento/ . No texto de apresentação, Guimarães escreve: “… Eu mando esta carta. Carta de cores, sem saber seu destino, ou seu destinatário. Ainda assim, eu sei que nós precisamos dessas cores em movimento.”

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Na próxima terça-feira, 15/09, às 11 horas, Piero Sbragia, Juca Badaró e este colunista conversam ao vivo, no canal 3 em Cena, com Camila de Moraes, cineasta gaúcha que mora na Bahia, diretora de O Caso do Homem Errado (2017). O documentário conta a história do operário Júlio César, confundido com um assaltante e executado pela Brigada Militar do Rio Grande do Sul, em maio de 1987. Acesso no link https://youtu.be/CxzLHmkRWLo

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Resistindo heroicamente para sobreviver, após ter sido obrigada a entregar o edifício sede aos Correios, a Escola de Cinema Darcy Ribeiro iniciou sábado (05/09) a desmontagem dos espaços da antiga sede com a remoção do acervo e dos equipamentos. A Escola resiste, porém, oferecendo cursos de direção, roteiro e montagem online com inscrições abertas. Inscrições através do link http://www.escoladarcyribeiro.org.br/cursos-regulares-de-cinema/

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Iniciado ontem (08/09) e prosseguindo até 27 de setembro, o DOBRA – Festival Internacional de Cinema Experimental será hospedado pelo Canal da Cinemateca do MAM, na plataforma Vimeo, e exibido no site do Festival, integrando a celebração dos 65 anos da Cinemateca. Todas as sessões dos dez programas de filmes são gratuitas e estarão disponíveis em www.festivaldobra.com.br. Haverá ainda um curso e bate-papos online. Com a curadoria de Cristiana Miranda, Lucas Murari e Luiz Garcia, foram selecionados 44 filmes, sendo catorze brasileiros, dos 1.094 inscritos de 71 países.

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A Trilogia do Futebol, de Lucho Pérez Fernández, que se apresenta como “assistente de mágico e fabulador de verdades inventadas”, continua em https://vimeo.com/440045735. A Copa dos Refugiados, Os Boias-Frias do Futebol e Boca de Fogo, três documentários de curta-metragem, estão acessíveis em programa único de 37 min, e permanecem online até 20/9. O diretor é ex-aluno do curso Cinema Documentário da Fundação Getulio Vargas.

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