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questões educacionais

Sem prova nem lápis emprestado

Estudante brasileira em Portugal relata transformações na rotina escolar depois da epidemia de Covid-19

Ana Bertazzo | 26 maio 2020_20h04
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Na segunda-feira, 18 de maio, após cerca de sessenta dias de quarentena, alguns poucos estudantes de Portugal puderam voltar à escola. Acordei às 8 horas para tomar café, o que não fazia em horário tão cedo havia mais de dois meses. Em seguida coloquei máscara, luvas e óculos escuros, para proteger os olhos. Amarrei o cabelo, peguei um frasco de álcool em gel, calcei meus tênis que já estavam fora do apartamento, acendi a luz do hall com o cotovelo, desci dois lances de escadas e saí do prédio. Era a primeira vez que andava para além do perímetro da minha rua em mais de dois meses: meu retorno à “normalidade”, que de normal não teve nada.  Me senti dentro de um filme de ficção científica passado num universo paralelo.

Entrei no ônibus praticamente vazio: não podíamos ficar perto do motorista e sentávamos, de preferência, longe uns dos outros. Todos usavam máscara. Uma das medidas tomadas pelo governo português foi a alteração do horário de entrada na escola, que passou de 8 para as 10 horas, de forma a evitar o pico no transporte público. O transporte, aliás, também foi alvo de mudanças: cada ônibus agora só pode carregar 2/3 de sua capacidade, com utilização obrigatória de máscaras. A partir daí, está autorizado a não parar mais nos pontos para pegar novos passageiros.

Tenho uma amiga que mora perto da escola. Combinamos de nos encontrar no meio do caminho. Não nos víamos havia meses, a saudade batia forte, mas abraços não são permitidos. Ainda há de ser estabelecida uma nova forma de cumprimento pós-Covid. Os dois beijinhos devem ser substituídos por um aceno, talvez? Um aperto de mãos já requer muito contato físico, talvez seja melhor um toque de pés ou de cotovelos. Nos cumprimentamos com o olhar, e andamos juntas até a escola.

Sou brasileira, moro em Portugal desde 2017. Estudo na Escola Secundária Rainha Dona Amélia, uma instituição pública, localizada em Alcântara, um bairro de classe média, fora do centro histórico de Lisboa. Estou no último ano, por isso me enquadro no grupo de alunos que devem regressar às aulas presenciais. As escolas abriram apenas para alunos do 11º e 12º anos, que estão prestes a realizar os Exames Nacionais, em julho – uma espécie de Enem português, usado como um dos dois critérios para entrar na universidade (o outro critério é a média das notas tiradas ao longo dos três anos do ensino secundário). Os estudantes dos demais anos, assim como os universitários, continuam estudando a distância. As creches também reabriram na segunda-feira, para que pais de crianças de até 6 anos possam voltar ao trabalho.

No portão de entrada, havia duas funcionárias: uma conferia os cartões da escola, a outra distribuía máscaras para os que não tinham; nenhuma mediu a nossa temperatura. Havia uma pequena fila, que avançava conforme as pessoas iam entrando. A funcionária dos cartões era quem dava a ordem – “Podes ir!”– , a partir do momento em que o aluno que acabara de entrar já havia andado uns 10 metros. O pátio da entrada estava delimitado com fitas de sinalização, quase como uma cena de crime, que serviam para impedir a passagem a certos locais da escola, como as quadras que usávamos nas aulas de educação física. Havia também setas no chão, indicando o caminho a ser seguido até as salas de aula.

Cruzando a porta, fui obrigada a passar álcool em gel nas mãos. Subi dois andares, passando por vários funcionários com máscaras, luvas e viseiras de proteção; a função deles era garantir que os alunos mantivessem distância entre si. Andei pelo corredor vazio, também com setas no chão, e cheguei à sala 40 – que não era onde minha turma estudava antes. Estava vazia, com janelas e porta abertas, e com as mesas bem distanciadas. Sentei na primeira fileira, no meio da sala. Alguns colegas passaram um paninho sobre a mesa, só para garantir. A professora entrou com seu spray desinfetante, e periodicamente limpava tudo o que via pela frente: mesa, computador, mouse, teclado, livros, bolsa, canetas…

Todas as turmas foram repartidas: a minha, que contava com 24 alunos, foi dividida pela metade, por ordem alfabética, para formar dois grupos. Por acaso, fiquei no grupo dos meus colegas mais próximos. As aulas foram prolongadas para terem duas horas e quinze minutos de duração, sem intervalo. Só tenho aulas às segundas e quartas, um dia para Português, outro para História (as demais disciplinas, como Psicologia e Geografia, continuam sendo ensinadas a distância, em aulas que duram de 45 minutos a uma hora). Outras turmas vão para a escola às terças e quintas, para evitar o excesso de alunos no mesmo dia.

Dos doze colegas que estão no meu grupo, apenas seis compareceram. Alguns não puderam ir por morarem com pessoas do grupo de risco ou com profissionais de saúde que são expostos ao vírus diariamente. Eles não serão penalizados por continuarem em casa. Minha escola também decidiu que não vai haver testes para passar de ano. As notas desse último trimestre serão baseadas nas tarefas realizadas em casa.

Minha primeira aula foi produtiva – talvez pela drástica diminuição do número de alunos –, ainda que estranha. As máscaras atrapalharam a compreensão do que foi dito pela professora ou pelos outros alunos. Visualizamos PowerPoints, a professora fez esquemas no quadro, escrevemos anotações no caderno, fizemos exercícios. Não podíamos compartilhar materiais, acabou a era do “alguém tem um lápis pra me emprestar?”. Caso alguém quisesse ir ao banheiro, um funcionário seria chamado para checar se o banheiro estava vazio; só então voltaria para buscar o aluno, e o acompanharia até a porta do toalete, onde ficaria plantado, como cão de guarda, para evitar a aproximação de outras pessoas.

Finda a aula, arrumamos nossos materiais, e fomos instruídos a sair um de cada vez, sem as aglomerações e os leves empurrões de antes. Desci a escadaria em silêncio, seguindo o fluxo mecânico até o portão. Do lado de fora, acenei aos amigos – “Até quarta!” – com um sorriso escondido pela máscara, e voltei para casa. “Que manhã estranhaaa”, tuitei, já no ônibus, que estava vazio. Pouco depois, desci no ponto da minha rua, abri a porta do meu prédio, subi as escadas, deixei os sapatos fora de casa, tirei a máscara, coloquei as roupas para lavar, lavei as mãos e voltei a vestir um pijama bem confortável que tem sido meu uniforme da quarentena. Batalha vencida. Mais tarde, pedi pelo WhatsApp e pelo Instagram que alguns amigos próximos, não necessariamente da minha turma, também descrevessem o regresso às aulas. “Estranho”, disseram cinco deles. “Triste”, respondeu outro.

Todo esse regresso gradual à liberdade só foi possível devido a uma consciência coletiva e à rápida resposta do governo face ao enorme problema que se avizinhava na Espanha, onde o vírus chegou antes e tomou proporções catastróficas, já tendo causado mais de 26 mil mortes. O estado de emergência foi decretado pelo governo português para todo o país no dia 18 de março, quando o total de casos de infecção estava em 642, com dois óbitos registrados. Não houve disputas políticas, e sim uma união entre todos os partidos, que apoiaram o distanciamento social imposto pelo primeiro-ministro António Costa e pelo presidente Marcelo Rebelo de Sousa. A união foi facilitada pelo fato de os portugueses não terem pensado “E daí?” diante do crescente número de mortes.

Com algumas poucas exceções, a população respeitou as medidas impostas, permanecendo em casa. Após o estado de emergência, no dia 3 de maio foi decretado o estado de calamidade, que é menos rigoroso. Aos poucos, a economia volta a funcionar, os comércios começam a reabrir. Portugal teve, até esta terça-feira (26), 1.342 mortes causadas pelo vírus, e 18.096 casos recuperadas. O primeiro-ministro António Costa deixou claro que, caso ache necessário, voltará atrás com as medidas de reabertura.

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