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    Intervenção de Paula Cardoso sobre foto de Pedro Ladeira/Folhapress

questões de poder

Separados pelo coronavírus

Ao falar contra isolamento, Bolsonaro surpreende até Bannon, favorável à quarentena total; no Brasil, cúpula do Congresso teme autoritarismo e evita confronto direto

Thais Bilenky | 31 mar 2020_16h08
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No final de janeiro, quando a disseminação do novo coronavírus era assunto restrito à China, o estrategista americano Steve Bannon, interlocutor e referência ideológica da família Bolsonaro, passou a dedicar seu podcast “War Room” [“Sala de Guerra”] ao assunto, acrescentando a palavra Pandemia ao título do programa. O gigante asiático já era o principal alvo de Bannon em sua retórica nacionalista, e o “vírus chinês”, como se diz nas rodas ultraconservadoras, fez com que ele aumentasse a ferocidade das críticas.

Bannon diz que alertou o presidente americano Donald Trump, de quem foi colaborador, ainda naquelas primeiras semanas do ano. Avisou que o coronavírus extrapolaria fronteiras e se tornaria uma questão global inevitavelmente. Só no fim de março, depois de semanas minimizando os impactos do vírus, Trump afinou seu discurso com o de Bannon: estendeu a quarentena nos Estados Unidos até o final de abril, acatando recomendações das autoridades sanitárias de seu país. “Se é para descer ao inferno, que seja o mais rápido possível”, disse Bannon à Fox News um dia antes de Trump recrudescer a quarentena, medida à qual é “totalmente favorável”.

Qual não foi a surpresa de Bannon, porém, ao ver o brasileiro Jair Bolsonaro na contramão de Trump e de comandantes da maioria dos países. Bannon procurou interlocutores brasileiros querendo entender o posicionamento do aliado, dizendo-se preocupado. Se há uma estratégia por trás da recusa de Bolsonaro em considerar a pandemia mais do que uma “gripezinha”, essa estratégia é de alto risco, alertou.

A economia brasileira não aguentaria um isolamento horizontal imposto a toda a população, argumentaram os interlocutores brasileiros em resposta. A maioria não pode trabalhar de casa, as atividades entrariam em colapso, a pobreza explodiria e o cenário político resultante disso para Bolsonaro seria alarmante. Uma quarentena vertical, restrita a grupos de riscos como idosos, atenuaria os efeitos econômicos, sustentou-se. 

Bannon sugeriu um discurso mais confiante na capacidade de recuperação do Brasil, tanto do ponto de vista da saúde pública quanto da economia. Sem fazer tal correlação (até porque está mais ocupado com o cenário americano), o estrategista sem querer propôs um ajuste à campanha “O Brasil Não Pode Parar”, que o Palácio do Planalto estudou e desistiu de lançar, para algo como “Nada Pode Parar o Brasil”.

É o que Trump passou a fazer, ao prever o começo da recuperação para junho. “Muitas coisas boas acontecerão”, prometeu. A família Bolsonaro manteve a admiração pelo americano. O deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente, replicou publicação nas redes sociais comparando a agilidade de Trump ao declarar o novo coronavírus uma emergência de saúde e de segurança pública à suposta demora de seu antecessor, Barack Obama, ao tomar a mesma atitude perante o H1N1.

Mas, no Brasil, o clã presidencial não ajustou o discurso. Bolsonaristas apontam o exemplo da Suécia, raro país desenvolvido europeu a não suspender o comércio e os serviços e manter normal a vida de seus 10 milhões de habitantes.

A insistência em negar a necessidade de uma quarentena geral para os 210 milhões de brasileiros, que vivem em ambientes muito mais desiguais e subdesenvolvidos que os suecos, dividiu o próprio governo Bolsonaro. O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, é o principal defensor da abordagem técnica. 

A posição do presidente, escancarada com seu passeio pelo comércio em cidades-satélites de Brasília no domingo passado, motivou notícias-crimes da oposição pedindo seu afastamento temporário até que se julgue se “infringiu determinação do poder público destinada a impedir a introdução ou propagação de doença contagiosa”. 

Na cúpula do Congresso, mantém-se um consenso provisório em torno do não enfrentamento. Deputados e senadores argumentam que um movimento para tirar Bolsonaro da Presidência, por impeachment ou notícia-crime, alimentaria o discurso de “perseguição pelo establishment” adotado pela família presidencial e por seus apoiadores.

O avanço da Covid-19 no Brasil e a crise de liderança decorrente das atitudes de Bolsonaro, sua insatisfação com ministros que não o defendem incondicionalmente, seu entrevero com governadores e prefeitos, sua indisposição com o Judiciário e com o Congresso, deixam senadores experientes preocupados. As preocupações sanitárias se juntam às políticas criando uma “catástrofe de proporções bíblicas”, definiu um importante articulador.

Como não se sabe a situação nem daqui a dois dias, é difícil prever mudanças na postura da cúpula do Congresso, que por ora, consolidada na pessoa do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), reluta em falar em impeachment. Avalia-se que é preciso haver um derretimento maior da popularidade de Bolsonaro, com avaliação de ótimo/bom no limite de 10% – as últimas pesquisas mostraram a manutenção do apoio de cerca de 30% dos brasileiros.

Teme-se que Bolsonaro, cada vez mais isolado, se saia com uma solução à la Hungria, que aprovou o direito do primeiro-ministro Viktor Orbán de governar por decreto para agilizar ações contra o novo coronavírus. Por isso a reiteração da cautela como melhor vacina.

Mesmo políticos da oposição foram críticos à carta pública de líderes do PT, como Fernando Haddad, do PDT, como Ciro Gomes, do PSOL, como Guilherme Boulos, e do PCdoB, como Flávio Dino, pedindo a renúncia de Bolsonaro – horas depois decidiu-se ainda entrar com a queixa-crime.

O deputado Orlando Silva (PCdoB-SP) expressou essa insatisfação. Disse que a movimentação enseja o discurso das “milícias bolsonaristas” sobre a obstrução que os derrotados de 2018 supostamente fazem contra o vitorioso. “Qualquer grama de energia gasta agora com algo que não seja o combate ao coronavírus é desperdício”, afirmou. 

“Precisamos fazer o isolamento social e o isolamento político do Bolsonaro. Deixar o Congresso trabalhar com as áreas de Saúde, Economia e social do governo e deixar o presidente fazer as provocações dele sozinho.” Na avaliação de Silva, que tem bom trânsito entre a esquerda e a cúpula da Câmara, “a aposta suicida” de Bolsonaro de opor sua “fé pessoal à ciência” cobrará seu preço, e suas iniciativas cada vez mais acirram a ingovernabilidade.

Nem Bannon nem os políticos mais experientes de Brasília dizem  compreender a lógica por trás das atitudes de Jair Bolsonaro.

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