Ao ouvir Sergei Loznitsa falar, fica claro que para ele não há fronteira nítida entre filmes de ficção e documentários. Pelo contrário, para ele, conforme disse na masterclass oferecida no Instituto Moreira Salles (IMS), no Rio, terça-feira passada, a estrutura dramática dos dois gêneros tende a ser cada vez mais parecida, não obstante persistam características próprias que os diferenciem.
O maior grau de liberdade da ficção é uma dessas diferenças: “Há coisas que não podem ser feitas em um documentário. Na ficção me sinto livre para fazer o que quiser”, Loznitsa afirmou. Suas palavras ecoam as de Krzysztof Kieślowski, no início da década de 80, ao justificar ter abandonado o cinema documentário “com vergonha e arrependimento”: “todo realizador de filmes não-ficcionais acaba percebendo um dia os limites que não podem ser ultrapassados – aqueles além dos quais arriscamos causar danos a quem filmamos”; e ainda: “a câmera documentária não tem o direito de entrar no que mais interessa, a vida íntima, privada, dos indivíduos. Preferi comprar glicerina na farmácia e os atores simularem choro do que filmar pessoas reais chorando, ou fazendo amor, ou morrendo”.
À parte o que distingue documentário de ficção, para Loznitsa o “processo de construção do filme é exatamente o mesmo”. Consiste em “atribuir significado a cada plano, do primeiro ao último”, com grande margem de liberdade no início e autonomia restrita nos planos finais.
Dizendo não ter qualquer interesse pela “estrutura narrativa tradicional”, Loznitsa afirma que “ver e tornar visível o invisível é o que torna o cinema possível”, assim como sua capacidade de “criar a sensação da passagem do tempo”.
Reunindo doze dos 26 filmes realizados a partir de 1996, a retrospectiva de Loznitsa apresentada este mês no IMS, em São Paulo e no Rio de Janeiro, ofereceu mostra significativa da trajetória do cineasta ucraniano de 54 anos, nascido em Baranovichi, na então União Soviética, hoje República da Bielorrússia.
Ao contrário da ruptura de Kieślowski, Loznitsa não considera haver incompatibilidade entre documentário e ficção, pelo contrário. Desde 2010, quando fez Minha Felicidade, seu primeiro filme de ficção, ele alterna a realização de filmes nos dois registros, situando ambos em espaço comum cada vez mais amplo.
“Cada vez que faço um filme de ficção eu quero me aproximar o mais possível dessa fronteira entre ficção e documentário, enquanto nos documentários é o contrário, quero me aproximar da ficção”, declarou.
Nesse sentido, Donbass (2018) é exemplar de sua busca para “obter [na ficção] o que já conseguiu no documentário”, disse na masterclass, no Rio. Para tanto, um de seus objetivos é fazer filmes sem protagonista, como, por exemplo, os documentários Austerlitz (2016), comentado aqui há dois anos e O Dia da Vitória (2018), conforme explicou em entrevista à revista Film Comment no número de 16 de maio:
“O elemento novo que torna esse filme [Donbass] diferente de filmes anteriores é que não há qualquer protagonista. Personagens simplesmente desaparecem. Há muito tempo eu realmente queria tentar e experimentar uma estrutura semelhante. Eu fui inspirado pelas experiências de Eisenstein e usei a mesma técnica que Buñuel usou em O Fantasma da Liberdade (1974). É uma coleção de episódios e em cada um há um personagem que nos move para o próximo. E minha intenção era que todo episódio do filme mostrasse um lado, uma manifestação, um aspecto desse processo onipresente de desintegração e decadência. Quase todo episódio tem uma referência documentária, pelo fato de ter havido pessoas que filmaram esses tipos de situações – eventos que aconteceram de verdade – com seus telefones móveis e depois os publicaram na internet.”
A decadência e desintegração às quais Loznitsa se refere, tema de seus filmes, “é um processo que vem ocorrendo no território do antigo Império Russo desde a Revolução de 1917. E todos esses filmes contém traços, ecos, indícios, reflexos da guerra. Com esse filme mais recente [Donbass], deixa de haver mais uma alusão. Passamos de insinuações para nomear de modo direto. Por que isso é algo que realmente aconteceu e pode ser que meus filmes apresentem uma espécie de imagem refletida do que está ocorrendo.”
Dividido em treze episódios sem separação nítida, o último retomando e completando o primeiro, todos a respeito de situações coletivas envolvendo grandes grupos de pessoas, Donbass forma um painel sarcástico e aterrador da guerra que eclodiu na Ucrânia, em 2014, depois da assim chamada revolução, à qual se seguiu a intervenção militar russa no Donbass, na região leste do país. De um lado, nacionalistas ucranianos, de outro, separatistas pró-Rússia no território da autoproclamada, e pouco reconhecida, República Popular de Donetsk.
Filmando planos longos e reduzindo cortes ao essencial, Loznitsa procura “atrair o espectador para dentro da situação e do quadro, dando impressão que isto é uma situação aqui e agora”. Procura evitar dessa maneira o alerta que cortes dão ao espectador de que se trata de uma história sendo contada por alguém.
No final dessa mesma entrevista à Film Comment citada acima, falando da feiura e maldade contidas em cada episódio e da repulsa que causam, Loznitsa dá Dostoiévski como exemplo de alguém “inspirado pelo mal. Talvez pertença à cultura, à cultura russa, que tem na sua profundeza interior essa atração pelo inferno”.
Se for possível indicar a cena mais perturbadora de Donbass, sendo cada uma inquietante à sua maneira, a de maior impacto talvez seja aquela em que eclode a barbárie da massa, na qual um suposto exterminador ucraniano (Valeriu Andriutã) é amarrado a um poste, agredido, humilhado e quase linchado por uma turba ululante.
Loznitsa refere-se à afirmação do filósofo russo Pyotr Chaadaev (1794-1856), segundo a qual “a razão de ser da Rússia como nação, como país, talvez seja demonstrar ao resto do mundo como não viver, qual caminho não tomar. Então, o internaram em um hospital psiquiátrico. Ninguém quer ouvir”. Declarado louco pelo governo tsarista, em 1836, Chaadaev teria sido o primeiro dissidente político condenado por suas ideias.
Em 2012, Loznitsa declarou: “A guerra não faz parte da minha vida, mas está no meu sangue.” Mal sabia ele que dois anos depois isso mudaria de figura quando o governo da Ucrânia foi deposto e tropas russas ocuparam o leste do país.
Ainda em 2012, a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo organizou a primeira retrospectiva de Loznitsa no Brasil, exibindo doze títulos, desde o primeiro, Hoje Vamos Construir Uma Casa (1996) até Na Neblina e O Milagre de Santo Antonio, os dois mais recentes na época. No ano seguinte, Na Neblina foi lançado no Brasil. Em 2014, a guerra passou a fazer parte também de seus filmes, como atestam Maidan: Protestos na Ucrânia (2014) e Donbass (2018), sem prejuízo da realização de filmes feitos com imagens de arquivo, como Bloqueio (2006) e O Processo (2018), sobre um julgamento, em 1930, na União Soviética de Stálin.
Na verdade, a presença dos filmes de Loznitsa no âmbito de festivais é até anterior, datando de 1997, quando Hoje Vamos Construir Uma Casa foi exibido no É Tudo Verdade, que exibiu Vida, Outono, Fábrica e Bloqueio em anos seguintes. Outros filmes de Loznitsa participaram da Janela Internacional de Cinema de Recife e Austerlitz foi exibido no Festival do Rio, em 2016.
Apesar dessa presença regular em festivais e mostras brasileiras nos últimos vinte anos, a repercussão dos filmes de Loznitsa entre nós tem sido limitada. A masterclass, no Rio, teve bom público, mas poucas pessoas e ainda menos cineastas assistiram aos filmes da atual retrospectiva, o que diz muito da fragilidade da cultura cinematográfica entre nós.