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    Ilustração: Carvall

questões criminais

Servidão na fronteira amazônica

Investigação mostra como grupo levava moradores de rua para trabalhar na coleta de castanhas na Bolívia, em condições análogas à escravidão

Allan de Abreu | 10 ago 2022_12h21
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A proposta era tentadora para quem não tinha trabalho, família ou casa para morar: uma temporada de quatro meses no meio da selva boliviana colhendo castanha-do-pará, com salário de 135 reais por dia, ou 2,7 mil no fim do mês, livre de impostos. Com essa oferta de emprego, o casal Dione Chaves Souza e Maria Irismar Lago de Lima, além do pastor da Assembleia de Deus Sidnei Joaquim da Silva, abordavam moradores de rua em frente à Igreja Sagrada Família, em Porto Velho, onde diariamente recebem almoço por parte de ONGs católicas.

Naquele início de dezembro de 2020, inverno amazônico, onze homens aceitaram a empreitada. Era o início de um longo calvário. O grupo seguiu em táxis por 285 km na rodovia BR-364 até Vila Marmelo, pequeno distrito da capital já próximo da fronteira com a Bolívia. Ao chegarem, o casal informou-os de que estavam devendo 95 reais, cada um, pela viagem – o pastor permaneceu em Porto Velho. Em Vila Marmelo, Souza recolheu todos os documentos pessoais do grupo e ofereceu cachaça, a 80 reais a dose, conhaque (1,2 mil reais o litro) e crack – cada pedra de um grama era vendida a 100 reais (na cracolândia, em São Paulo, o preço varia de 5 a 40 reais). Alguns aceitaram. O valor seria descontado no pagamento do salário, que os moradores de rua só receberiam no fim da colheita, em março de 2021.

No dia seguinte, Souza, Lima e os onze homens partiram em barcos pelo Rio Marmelo. Foram quatro dias de viagem fluvial até chegarem a um ponto com dois barracões, um de lona e outro de palha, às margens do Rio Ilha, próximo à cidade de Riberalta, no departamento boliviano de Beni. Lá havia mais oito trabalhadores, inclusive uma criança de 13 anos, segundo integrantes do grupo diriam mais tarde à polícia.

Os moradores de rua não sabiam, mas as investigações policiais mostram que Souza era membro do Comando Vermelho, facção predominante em Rondônia. Violento, o rapaz de 30 anos tinha registros criminais por roubo de veículos, furtos e ameaças – na casa do casal em Vila Marmelo, a Polícia Federal encontrou um automóvel com placas clonadas. Segundo a PF, Souza lidera um pequeno grupo de criminosos no Extremo Oeste do estado conhecido como Bonde do Arromba. Em 2011, incendiou a casa do próprio pai; naquele mesmo ano, foi preso em flagrante por tentativa de homicídio. Em 2017, ele e outros membros do “bonde” teriam roubado armas na selva boliviana e estuprado uma menina menor de idade. Um ano depois, Souza sequestrou e torturou um boliviano concorrente na extração de castanhas no país vizinho.

Na Amazônia boliviana, o grupo de moradores de rua passou a trabalhar de domingo a domingo, sem folgas, 12 horas por dia. Eles recebiam apenas duas refeições: café e farofa ao amanhecer e arroz, feijão e carne de caça no início da noite. Souza pressionava os homens a fumarem crack para suportar o trabalho pesado. Cada homem era obrigado a carregar até seis latas de castanha ao mesmo tempo, um peso total de 100 kg, em média. Quem não conseguia era punido com picadas de formiga taxi, típica da Amazônia, cuja ferroada provoca dor intensa, febre e náuseas – em casos extremos, pode matar por choque anafilático. Outro castigo era obrigar o trabalhador a beber uma mistura de vinho com gasolina. Se alguém adoecesse e não pudesse trabalhar, Souza e Lima descontavam o valor da refeição do pagamento a ser feito dali a três meses. Itens de higiene básicos também eram cobrados em forma de latas de castanha: uma pasta de dente, por exemplo, custava duas latas, ou 90 reais. O controle era feito em um pequeno caderno a cargo da filha do casal, de apenas 13 anos. 

Moradores de rua carregando sacos de castanhas; foto encontrada no celular de Maria Irismar Lago de Lima

 

Se o morador de rua chegasse ao fim da colheita, em março, devendo dinheiro a Souza e Lima (alguns chegavam a acumular 13 mil reais em dívida), era obrigado a passar os próximos meses no corte de madeira para a produção de estacas de cerca, outro serviço explorado pelo casal na região.

Um grupo de quatro capangas armados, liderado por Souza, vigiava os trabalhadores permanentemente, e surrava aqueles que reclamavam ou ameaçavam fugir. Certo dia, um dos trabalhadores, soropositivo, disse estar exausto e que não conseguia mais trabalhar. Souza aproximou-se dele e apontou a espingarda calibre 12 na testa do homem. “Você não serve para mais nada.” A vítima só não foi morta, como diria depois à polícia, porque a mulher de Souza interveio.

Apesar do forte esquema de segurança, cinco homens conseguiram fugir pela mata na noite de 25 de janeiro de 2021. Depois de cinco dias perdidos na floresta, tiveram a ajuda de um casal de bolivianos para chegarem até Extrema, outro distrito de Porto Velho, já na divisa com o Acre. De volta à capital de Rondônia, relataram o caso à Cáritas Diocesana, braço da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que, por sua vez, denunciou o esquema à Polícia Federal e ao Ministério Público.

 

Na manhã de 5 de novembro último, cinco policiais federais foram até a casa de Souza e Lima na Vila Marmelo para cumprir um mandado de busca. Foram apreendidos celulares, documentos de alguns moradores de rua e dois contratos de arrendamento de terras na Bolívia, um em nome do pastor Silva, para uma área de 1,2 mil hectares, outro em nome de Souza. No celular de Lima foram encontradas dezenas de fotos de trabalhadores no meio da mata, durante a colheita da castanha, e também diálogos pelo WhatsApp em que a família trata da extração de castanha e de madeira. “Já botou o pessoal pro rio já pra… Mandaram todo mundo pro rio, quebrar… Tirar estaca já, trabalhar ou estão tudo parado ainda?”, pergunta o filho de Lima. “Uma cerca ali no Moacir, meu filho. Aí, quando terminar agora final de mês, já vamos pra castanha já”, responde a mãe.

O Ministério Público Federal solicitou a prisão preventiva de Souza, Lima e do pastor Silva, mas a Justiça rejeitou os pedidos. Desde junho o trio é réu em ação penal na 7ª Vara Federal de Porto Velho, acusado de tráfico internacional de pessoas. O casal também responde pelos crimes de redução à condição análoga à de escravo e tráfico de drogas. 

A defesa do pastor negou envolvimento no aliciamento de trabalhadores em Porto Velho e disse que confia na absolvição dele. “Vale dizer que o senhor Sidnei é cidadão de bem, trabalhador honesto, pai e marido, não tendo jamais se envolvido com qualquer situação ilícita ou contrária aos bons costumes”, disse em nota o advogado Rafael Abdala. Já o advogado do casal, Fabio Villela Lima, disse ter recebido com “surpresa” a denúncia contra ambos, pois “os elementos produzidos durante o inquérito não indicam a materialidade dos crimes” e a acusação “foi baseada apenas nas declarações de duas supostas vítimas, que, na verdade, prestavam serviços para o principal concorrente dos réus na extração da castanha”. Ainda de acordo com o advogado, a perícia no celular de Lima encontrou apenas fotos do local onde as castanhas são extraídas com os trabalhadores, “todos felizes e posando para a foto”.

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