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Filme aborda relação mãe e filho quando os papéis costumeiros se invertem: quem cuida de quem?

Eduardo Escorel | 08 set 2021_09h01
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De Volta Para Casa (Coming Home Again, 2019), do chinês-americano Wayne Wang, é uma realização incomum da era a.P. (anterior à pandemia), a começar por manter seu vigor, resistindo intacto à tragédia humanitária em curso. O filme estreará amanhã (9/9) no Brasil, em cinemas de quatro cidades (São Paulo, Rio de Janeiro, Aracajú e Balneário Camboriú), após ter sido lançado nos Estados Unidos, em outubro de 2020, com sessões presenciais em cinemas de arte e acesso virtual online.

Magnífico é o adjetivo que me ocorre para definir De Volta Para Casa em uma palavra. Embora baseado, segundo os créditos, no “ensaio” autobiográfico do escritor coreano-americano Chang-rae Lee, publicado na revista The New Yorker, em 1995, Wayne e Chang-rae se referem a esse texto em uma live como sendo um conto (“a short story”).

Cena do filme “De Volta Para Casa”, de Wayne Wang – Foto: Divulgação

 

Além da fonte de inspiração literária, o filme foi motivado pelo espaço do apartamento em Russian Hill, São Francisco, indicado a Wayne por seu produtor. Ao visitar o imóvel, o diretor diz ter sentido “que ele tinha o clima de algo que lembrava o conto [de Chang-rae], e essa talvez tenha sido a causa de ter sido usado como locação” quando uma equipe independente muito pequena foi reunida para fazer o filme.

Diretor premiado de inúmeros filmes realizados a partir de 1982, inclusive Cortina de Fumaça (Smoke,1995), codirigido por Paul Auster, e uma comédia romântica como Encontro de Amor (Maid in Manhattan, 2002), Wayne admira, ao mesmo tempo, Jeanne Dielman (1975), de Chantal Akerman (1950-2015), e Yasujirô Ozu (1903-1963). Ozu dirigiu dezenas de filmes a partir de 1927, entre eles Era Uma Vez em Tóquio (Tôkyô Monogatari, 1953), escolhido em 2019, na pesquisa da revista Sight&Sound, como o melhor filme de todos os tempos.

Longe de mim pretender alçar Wayne à altura celestial de Ozu. Mas, além da admiração confessa, a influência do mestre japonês é notória em De Volta Para Casa – temos aqui um filme de planos longos e fixos, silencioso, sem música não diegética (salvo no epílogo), deliberadamente repetitivo e lento, com aparência de que nada acontece. Em compensação, sofisticado e intenso ao abordar tema de alcance universal, narrado, filmado e interpretado com maestria; atento aos mínimos detalhes, tratando da relação mãe e filho quando a morte se aproxima e os papéis costumeiros se invertem: Quem cuida de quem? Quem cozinha para quem?

Cena do filme “De Volta Para Casa”, de Wayne Wang – Foto: Divulgação

 

Há duas linguagens semelhantes usadas em De Volta Para Casa – a do cinema, naturalmente, e a da gastronomia. Ambas recorrem à escolha cuidadosa de ingredientes seguida de sua combinação refinada. Imagens e sons, em um caso; carnes, peixes, legumes, molhos etc., no outro. A história do filme é a do filho – Chang-rae (Justin Chon), homônimo do autor do conto – que passa o dia preparando o jantar de Ano-Novo, tarefa que sua mãe (Jackie Chung) costumava fazer. Epílogo à parte, a ação se passa durante as cerca de 12 horas que transcorrem entre a volta da corrida matinal, ladeira acima, com a Ponte Golden Gate no horizonte, e o banquete em família, à noite, com a mãe, o pai (John Lie) e a irmã (Christina July Kim).

Na live mencionada acima, o chef coreano-americano Corey Lee, colaborador do filme, diz que “para pessoas que emigraram da sua terra natal para um novo país e tentam manter alguma espécie de identidade com sua cultura nativa, creio que a comida tem um papel importante”.

O autor do conto Coming Home Again, Chang-rae, considera, por sua vez, que as iguarias da culinária coreana não se limitam a um exercício do paladar. Equivalem, para ele, à experiência “de um certo tipo de memória, de vivência, que talvez a geração mais jovem não tenha. É também um modo de… eu acredito, ao menos era para mim e minha mãe, de nos comunicarmos de maneiras que não estávamos nos comunicando na cultura inclusiva. E com certeza não estávamos nos comunicando depois que eu parti para o colégio interno… As maneiras de nos conectar e ser realmente agradável, admirar um ao outro, demonstrar gratidão mútua, e deixar claro a importância que cada um tinha para o outro, não era necessariamente verbal. E talvez esse seja o caso em muitas, em alguns tipos de famílias de imigrantes. Com certeza era o caso na nossa. Mas a maneira que fazíamos isso, minha mãe e eu, era por meio dessas encenações. Que eram genuínas, quer dizer… Era por esse processo de apenas observar ela cozinhando quando eu era mais moço, começando a ajudá-la. Aí, no que a história mergulha, é quando comecei a cozinhar para ela. A ironia, como se vê no filme, é que ela não podia comer nessa época”.

Em entrevista concedida durante o Festival Internacional de Cinema de Toronto, no qual Coming Home Again foi exibido, em setembro de 2019, Wayne conta ter dito ao escritor Chang-rae, um ano antes, que “o ensaio é maravilhoso, e a morte de minha mãe realmente mexeu comigo, emocionalmente, em aspectos relacionados ao artigo; vamos fazer esse filme, e pronto. Então, reunimos algumas coisas diferentes, pessoais e independentes, muito pequenas, e filmamos”.

Adiante, na mesma entrevista Wayne explica que “no começo do filme, eu queria realmente manter os planos longos. Não estou tentando ser indulgente, não estou tentando incomodar as pessoas, mas queria que as pessoas se acomodassem na poltrona e pensassem sobre a cena, pensassem sobre o personagem e pensassem sobre si mesmas. De manhã, você faz um café e fica sentado lá por pelo menos 10 minutos. Eu só quero que o ritmo do início do filme seja muito conscientemente silencioso e muito lento, sem pressa. Conforme o filme se desenrola, o ritmo começa a aumentar. Mas, no começo, eu realmente quero que você se acomode. Algumas pessoas, tenho certeza, ficarão chateadas e simplesmente irão embora, mas outras pessoas, espero, se tranquilizarão. Você vê qualquer um desses filmes de ação hoje em dia, eles não deixam você respirar. Afinal, o filme é sobre o que a vida significa, a lentidão da vida, aceitando uma parte disso e depois também aceitando sua impermanência. Tudo isso está relacionado: o ritmo, a mudança, o fim” (entrevista completa disponível em https://www.hammertonail.com/interviews/wayne-wang/).

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Há dois dias (6/9), foi realizada na Cinemateca Portuguesa, em Lisboa, a exibição de O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969), de Glauber Rocha. A sessão inaugura uma série de periodicidade quinzenal prevista que, de acordo com o release do evento, “só será suspensa quando os nossos colegas da Cinemateca Brasileira puderem de novo regressar ao lugar e à missão que lhes compete. Todas serão de homenagem ao cinema brasileiro, à instituição Cinemateca Brasileira e à sua história, e à atual equipe que a representa”. Em release anterior, de 3 de agosto, a Cinemateca Portuguesa lançou “novo e veemente alerta sobre os perigos de sobrevivência estrita do patrimônio ao cuidado da Cinemateca Brasileira”, manifestando “a nossa inteira solidariedade para com os seus trabalhadores, e declaramos a nossa intenção de levar a cabo iniciativas públicas regulares de apoio à instituição”. O release traz as assinaturas da direção da Cinemateca Portuguesa, tendo à frente José Manuel Costa e Rui Machado.

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Dia 12 de setembro, domingo, como sempre às 11 horas, Piero Sbragia, Vanessa Oliveira e este colunista conversam com Jeferson De, diretor de Doutor Gama, no 65º programa #DomingoAoVivo do canal de YouTube 3 Em Cena. Ao comentar em Autobiografia de Luiz Gama as Primeiras Trovas Burlescas (1859) do autor, Roberto Schwarz escreve que “a sátira à sociedade imperial e sobretudo às suas presunções de brancura alcança uma franqueza possivelmente única na literatura brasileira”. E ainda: “O percurso biográfico incrível [de Gama], o escândalo das situações, dos problemas morais e ideológicos, fazem ver um mundo sui generis, pressentido e recalcado.”

O acesso à conversa do próximo domingo pode ser feito através do link https://youtu.be/MUVQsR4CSSw

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