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Sobre Jorge Ben e o futebol

Paulo da Costa e Silva | 30 maio 2016_19h33
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Muitas vezes esquecemos que a música diz respeito a sequências vibratórias que se dirigem não apenas aos ouvidos, mas ao corpo inteiro. O significado musical é assim literalmente desenhado na pele, injetado nos ossos, capaz de afetar todos os órgãos. Desse modo, a música é capaz de simular a experiência corporal do tempo, para além de emoções específicas, individuais e conscientes, afetando diretamente as energias que animam a vida psíquica. O que ela, em sua magia, reproduz para nós, é a mais íntima essência, o ritmo e a energia do nosso ser espiritual.

Diferentemente do que fazem as palavras, a música não simboliza, mas, antes, mimetiza. O compositor e pesquisador Robert Jourdain sintetizou de forma brilhante tal percepção quando escreveu que a música “pode imitar não apenas a fúria da pantera, mas também o que a pantera sente ao caminhar, pular ou escalar. Isso é alcançado replicando-se os ritmos desses movimentos, modulando harmonias para imitar as tensões e relaxamentos do corpo, e fazendo melodias que seguem a geometria das ações físicas”. Ao oferecer sofisticadas arquiteturas sonoras e complexas coreografias de movimento, a música pode corporificar, fazer com que experimentemos em nosso próprio corpo um jeito de estar no mundo.

Boa parte do efeito das canções de Jorge Ben vem, ao que parece, dessa conexão profunda entre o sentido de movimento musical, sonoro, e a descrição narrativa de uma cena ou episódio também baseados em algum sentido de movimento. Ben trabalha com imagens musculares. Talvez por isso ele tenha sido o compositor que melhor captou em canção a essência do futebol brasileiro.

Fio Maravilha é exemplar. A descrição visual é perfeita: quase podemos testemunhar, da arquibancada do Maracanã, os sucessivos momentos que resultam no gol de placa. Esse seria o plano da “pintura” na música de Ben. Mas a canção vai além, porque realiza em nós algo da cadência do batimento cardíaco do torcedor diante de um lance de beleza e glória que jamais irá se repetir. Desde o solo de baixo da introdução, Fio Maravilha estabelece uma atmosfera épica. A imagem vai sendo paulatinamente construída, em sutis acréscimos de tensão e euforia. Da localização temporal do lance “aos 33 minutos do segundo tempo”, numa situação de partida empatada (“1 e 1”), aos zagueiros que vão ficando para trás, junto com goleiro, culminando no momento cabal do gol, a canção parece apenas confirmar o destino de um grande feito. Tudo se desenrola numa espécie de câmera lenta, como se estivéssemos vendo um replay em vídeo, ou como se fosse essa a temporalidade realmente sentida quando estamos diante do que é belo – e realmente parece que a beleza “desacelera” o tempo.

O domínio de Ben é tão grande que os momentos em que ele caracteriza a figura do herói (Fio Maravilha) são cantados em registro solene, num tom que busca levar uma aura sagrada à música. As palavras são ditas com vagar e peso, alongam-se os grandiosos “ãos” das últimas sílabas (“e novamente ele chegou com inspiração / com muito amor, com emoção / com explosão em gol”). Mas na parte propriamente dedicada a descrever a jogada em campo (“tabelou, driblou dois zagueiros / deu um toque, driblou o goleiro”), o canto se torna mais dinâmico e ritmado, mimetizando o próprio movimento veloz e driblador de Fio Maravilha, com ataques e pausas imprevistas.

Em seguida retoma a cadência mais lenta e solene de quem narra um evento mítico, voltando seu foco novamente para os atributos espirituais do jogador. A sabedoria é revelada a partir da própria ação, da atitude do protagonista: “Só não entrou com bola e tudo / porque teve humildade em gol”. O gol é louvado não apenas por seu aspecto plástico, mas porque tornou visíveis qualidades da alma do herói: “Foi um gol de classe / onde ele mostrou sua malícia e sua raça”. Trata-se de uma “beleza total”, por assim dizer; da percepção da existência de atributos espirituais na carne, presentes no gesto físico. Na parte final, as câmeras do cinema-canção novamente se voltam para as arquibancadas e a música toma a forma dos cantos de torcida. À “galera agradecida” só resta a consagração efusiva da persona do herói (“Fio Maravilha!”), a demonstração explícita de afeto (“nós gostamos de você!”), e o apelo para que outros momentos dessa estatura sejam alcançados (“Fio Maravilha, faz mais um pra gente ver!”).

Nenhum outro compositor conseguiu dizer o futebol com tanto vigor. Suas canções ludopédicas não são exatamente canções sobre o futebol, ou sobre determinados jogadores, mas canções que nos fazem sentir a dimensão corporal e concreta desse esporte e de sua aura mítica no Brasil. Está tudo ali, in praesentia: Fio Maravilha chega com inspiração, para logo zarpar na direção do gol; em outra canção, Zico, o “Camisa 10 da Gávea”, nos é apresentado em uma situação concreta de jogo (“é falta na entrada da área”); Umbabarauma, o ponta de lança africano, se confunde com um continuum frenético de movimentos que sintetizam cinematograficamente o futebol (“pula, cai, levanta, mete gol, vibra, abre espaço, chuta e agradece”); e antes de ter esmiuçada a sua “ciência da grande área”, o famoso “Zagueiro” já “arrepia” e “sai jogando”. Tudo se passa na superfície da pele, na realidade cabal do movimento. Com Jorge Ben, a canção literalmente entrou em campo.

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