minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos

questões musicais

Sobre um detalhe em Lascaux

O “Questões musicais” faz uma breve pausa em suas reflexões sonoras para focalizar as formas visuais pintadas na alvorada da humanidade. Do ouvidos para os olhos, e, em breve, novamente dos olhos para os ouvidos.  

Paulo da Costa e Silva | 09 jun 2015_12h39
A+ A- A

Pesquisando imagens de pinturas rupestres na internet me deparei com esta que o leitor vê acima. A composição cuidadosa, em formato quadrado, trouxe um sentido de controle para algo que, na superfície acidentada das paredes da caverna, devia parecer ainda mais solto. A espinha do megaloceros representado se desenvolve numa graciosa curva ascendente, que termina de modo preciso um pouco antes do limite superior da imagem. Ainda assim, mesmo depois de recomposta numa foto, mesmo com seus relevos achatados numa superfície plana, a imagem respira uma liberdade espantosa. Uma capacidade de síntese e um sentido raro de elegância que torna difícil de acreditar que ela tenha sido feito há cerca de 18.000 anos atrás. Talvez seja até possível falar no “bom gosto” dos homens do paleolítico superior. Quando a caverna de Lascaux foi descoberta, nos anos 1940, a arte moderna já havia remodelado a sensibilidade européia. As pinturas foram percebidas em sua agudeza e sofisticação. É bem conhecida a exclamação de Picasso ao deparar-se com elas: “nós não aprendemos nada”. Ainda que fossem ecos de um passado remoto, quase inimaginável, soavam estranhamente contemporâneas – continuam soando.

Voltando ao painel, o desenho do animal sequer é completado. O artista dobrou-lhe a espinha e parece ter ficado satisfeito com o contraponto estabelecido entre essa linha (que se desdobra num volume em negro) e os contornos orgânicos, algo vegetais, dos chifres. Como acontece quase sempre nas pinturas rupestres, estes são desenhados mais de frente, enquanto o restante do corpo é colocado de perfil. Omitidos pernas e pés, ficamos sem saber se o tal megaloceros está voando, caindo… o sentido de movimento da forma é vigoroso, insinuando-se nas cavidades da pedra, mas sem se libertar inteiramente dela. A primeiras pinturas eram, de fato, tridimensionais. Os pintores tiravam partido dos relevos naturais da caverna para sugerir o volume daquilo que representavam. O ponto alto de tal tendência pode ser percebido na caverna de Pech-Merle: um cavalo pintado a partir de um recorte rochoso capaz de sugerir com clareza, pasmem, a cabeça de um cavalo. Estranha comunhão da natureza fluida, algo líquida da imaginação, com a solidez natural, concreta e irrefutável da pedra.


Pinturas na caverna de Pech-Merle 

Especula-se sobre um processo no qual as próprias formas da pedra – formas que, vistas à luz de pequenas “lâmpadas” carregadas pelos pintores, não paravam de se animar diante dos olhos –, fossem relevos ou manchas minerais, sugeriam figuras zoomórficas, que depois eram “fixadas” pelo artista na parede. Colocando o humano no centro do universo, o artista do Renascimento tendia a enxergar sugestões antropomórficas nas formas variadas da natureza. Nas pinturas de Arcimboldo, raízes, frutos, folhas e legumes eram combinados para formar retratos humanos.


Arcimboldo

Foi uma época de esfuziante redescoberta da beleza, das harmonias e potencialidades do corpo humano – explorado em suas profundezas por práticas cada vez mais comuns de dissecção. Acima disso, talvez, o Renascimento tenha sido marcado por uma atenção nova ao potencial expressivo do rosto, às nuanças espirituais que ele comportava na própria carne. Era praticamente o inverso do que acontecia com o homem do paleolítico. Não há retratos humanos nas cavernas. Das 1963 figuras pintadas em Lascaux, apenas uma possui traços antropomórficos. Quando pintadas, as figuras humanas tendem a ser esquemáticas, feitas sem capricho; meros símbolos. Algumas vezes apresentam-se como entidades mistas: humanas no corpo e animalescas na cabeça (como a única figura de Lacaux, que tem cabeça de passarinho). Em compensação, na mais antiga das cavernas pintadas até hoje descobertas, La Grotte Chauvet, avultam esplêndidos retratos de leões, cavalos, ursos, rinocerontes, mamutes e até corujas. Retratos feitos com uma riqueza naturalista de detalhes. De fato, para os artistas das cavernas, o homem não estava no centro. Antes, era uma parte ínfima do mundo. Até por uma questão meramente numérica – eram pequenas comunidades agrupadas em torno dos Pirineus, que não chegavam a totalizar 5 mil indivíduos, todos vivendo no final da Era do Gelo, rodeados por uma natureza poderosa e sem fim. Sendo comunidades de caçadores, olhos e mentes estavam totalmente voltados para o mundo natural, para a observação dos animais – seus hábitos, comportamentos; para os traços da estranha semelhança física deles conosco. Fala-se em identificação mística, na ausência de limites e separações entre as coisas.

Todas essas especulações são fascinantes. Mas nada me parece tão intrigante quanto o detalhe que aparece logo abaixo do pescoço do megaloceros: um simples quadrado, acompanhado por uma linha de pontos. São muito comuns os desenhos abstratos nas cavernas do paleolítico. Em Lascaux, 1/5 das figuras são signos geométricos. Novamente, chovem especulações, a maioria de ordem simbólica: seriam identificações de tribos, signos mágicos, assinaturas específicas, representações de configurações astrais, etc… A mais interessante, me parece, é menos interpretativa do que científica. Foi feita por Nigel Spivey, arqueólogo e professor da universidade de Cambridge, na série da BBC How Art Made The World. Tais figuras abstratas seriam o resultado da projeção de estruturas cerebrais congênitas, estimuladas pela imersão prolongada num ambiente de escuridão. Através de alguns experimentos óticos, Spivey demonstra que um estímulo preciso dos nervos visuais é capaz de causar “alucinações geométricas”: quadrados, grades. O canal sensorial tem via dupla: não apenas recebe e decodifica informações vindas de fora (pelos olhos, bocas, narinas e orelhas), mas é também capaz de produzir e inundar os sentidos com informações que, pode-se dizer, vêm “de dentro”; ou seja, alucinações. Isso faz lembrar o caso contado por Oliver Sacks no livro “Alucinações musicais”, de um marinheiro que, depois de permanecer longos dias sozinho e em silêncio no mar, começa literalmente a ouvir músicas, como se houvesse um rádio acoplado em sua cabeça. É como se, privado de estímulos, o fluxo majoritário se invertesse: não mais de fora pra dentro, mas de dentro pra fora.

Voltando à pintura de Lascaux: enquanto as representações de animais eram plasmadas a partir da percepção do ambiente e do engajamento com o mundo natural, suas formas e seres, tudo sendo mediado pelo deleite da imaginação humana, as figuras geométricas eram projeções diretas de estruturas internas, inerentes ao humano e, por assim dizer, “antinaturais”. Nada há no domínio da natureza que se assemelhe à forma de um quadrado perfeito. Aquilo consiste numa abstração pura, que não encontra referencial no mundo lá fora. Passa a existir nele somente como rastro da ação humana. As figuras zoomórficas do paleolítico eram o fruto de um jogo de remissões entre a memória e as sugestões que a própria pedra propunha à imaginação do artista: ou seja, eram o produto de uma delicada interação entre homem e natureza. As figuras geométricas, por outro lado, podem ser lidas antes como simples externalizações de imagens internas. Elas ignoram a pedra, a própria caverna. Já não remetem a nada, a não ser à própria presença humana. Estabelecem mais uma imposição do que um diálogo. Representam um princípio de domínio.

Olho em volta e vejo que o mundo foi praticamente soterrado por quadrados. Ruas, prédios, janelas, placas, embalagens…a tela do computador. A presença humana se impôs de tal forma que é cada vez mais difícil encontrar brechas que nos ponham novamente em contato com aquilo que não foi feito por nós. Nos anos 1950, o físico Werner Heisenberg escreveu que a tecnologia não mais aparecia “como o fruto de um esforço da consciência humana para ampliar o poder material, mas antes como um desenvolvimento biológico da espécie humana no qual estruturas inatas do organismo humano são transplantadas numa proporção cada vez maior para o ambiente do homem”. De algum modo tudo já está contido ali, naquele quadrado pintado na parede de Lascaux.

Assine nossa newsletter

Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí