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    Ilustração: Carvall

questões indígenas

“Somos estrangeiros em nossas próprias terras”

Lideranças de povos tradicionais criam um parlamento para combater ataques a seus direitos enquanto o PL 490 avança no Congresso

Hellen Guimarães | 09 jul 2021_16h01
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arentes, vamos abrir essa câmera?”, conclamou Telma Taurepang no último dia 30 de junho, durante a segunda reunião oficial do Parlaíndio Brasil, realizada virtualmente. Ela é a primeira mulher eleita tuxaua (chefe) por sua comunidade, a dos Taurepang, que se encontra em Roraima, na fronteira com a Venezuela e a Guiana. “A gente precisa desse fortalecimento”, justificou Telma. A consciência de que as populações originárias do país necessitam se unir gerou, em outubro de 2017, o embrião de um parlamento indígena nacional, que agora sai do papel. Àquela altura, num encontro em Luziânia (GO), lideranças tradicionais buscavam uma solução para a falta de representatividade no Congresso. O parlamento foi proposto pelo cacique Raoni Metuktire, indicado ao Prêmio Nobel da Paz em 2020 por sua luta pela preservação da Amazônia e dos povos indígenas. A coordenação executiva do movimento coube a Almir Narayamoga Suruí, um dos principais líderes dos Paiter Suruí, de Rondônia. Ele já havia fundado um parlamento para sua própria comunidade em 2010.

Além de buscar maior representatividade na política institucional, o Parlaíndio pretende valorizar, entre os próprios indígenas, as vozes de anciãos, pajés e caciques mais antigos, detentores dos saberes e da espiritualidade ancestrais. A ideia é que eles possam ter protagonismo e participar das assembleias pela internet, diretamente de suas aldeias. A câmara recém-lançada orgulha-se de ser estruturada “à moda indígena”. Trata-se de uma instituição democrática, aberta a todos os povos originários do Brasil e que recusa as exigências burocráticas dos não indígenas. Seu funcionamento se inspira na organização social das populações tradicionais, regida pelo diálogo com todos os membros das comunidades e por decisões tomadas em consenso. As reuniões do Parlaíndio ocorrem uma vez por mês. A primeira, também virtual, se deu em maio, e a segunda, em junho. A Embaixada da França financiou a criação do parlamento. Agora, as lideranças estão em busca de outras parcerias que lhes possibilitem manter o trabalho. 

Não é difícil entender os motivos para colocar em prática, neste momento, a estratégia de conquistar maior representatividade política. Em 2017, quando a ideia do Parlaíndio surgiu, antes de a atual deputada federal Joenia Wapichana (Rede-RR) se eleger, o único indígena a chegar ao Congresso Nacional era o cacique Mário Juruna, numa candidatura à Câmara apoiada pelo antropólogo e educador Darcy Ribeiro há exatos 35 anos. Hoje, Joenia sofre ataques em Brasília enquanto o projeto de lei 490/2007 avança, com o apoio barulhento da bancada ruralista. Se aprovado, o PL vai alterar radicalmente as regras de demarcação das terras indígenas no país.

Em 23 de junho, na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ), Joenia defendeu adiar a votação sobre o projeto de lei, já que, primeiro, os povos tradicionais deveriam ser consultados por meio de uma audiência pública. Ela baseou seu argumento na própria Constituição e na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. Atual presidente da CCJ, a deputada Bia Kicis (PSL-DF) interrompeu e impediu a fala da colega. O deputado José Medeiros (Podemos-MT) questionou a legitimidade de Joenia e afirmou que ela não representa os indígenas. Antes disso, Joenia havia relatado que, na véspera, foi atacada verbalmente nos corredores da Casa pela deputada Carla Zambelli (PSL-SP). A policiais legislativos, a parlamentar bolsonarista gritou que a colega não os defende. A Joenia, disse que “seus índios são assassinos”.

Também no dia 22, a polícia reprimiu, com bombas de efeito moral, gás de pimenta e gás lacrimogêneo, um protesto do Levante pela Terra. Organizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), o acampamento tem 850 representantes de 43 etnias e se instalou diante do Congresso para se manifestar diariamente contra o PL 490. Na linha de frente do Levante e na coordenação geral da Apib, está uma das primeiras lideranças a aderir ao Parlaíndio, o cacique Kretã Kaingang. Durante o conflito, “por causa do gás”, Kicis suspendeu a sessão da CCJ. No dia seguinte, a comissão aprovou o projeto por 40 a 21 votos. 

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), se mostrou favorável à pauta. “[Precisamos] ter coragem de debater o tema da exploração em terra indígena. Não é possível que nós vamos ficar de olhos fechados quanto a isso. Não tem só um lado da história, não. Tem dois, tem três, tem quatro”, afirmou o deputado. Quando ainda candidato à presidência, Jair Bolsonaro disse que, se dependesse dele, “não demarcaria um centímetro quadrado”. O ex-capitão partilha da visão de que a demarcação traz insegurança jurídica ao agronegócio. “Qual a segurança para o campo? Um fazendeiro não pode acordar hoje e, de repente, tomar conhecimento, via portaria, de que ele vai perder sua fazenda para uma nova terra indígena”, disse, em entrevista ao programa Brasil Urgente, da Band. Mesmo se aprovados, no entanto, os processos de demarcação passam por longa e burocrática tramitação, o que impossibilita o cenário descrito por Bolsonaro.

A bancada ruralista, que apoia o projeto de lei, questiona o tamanho das demarcações e alardeia que “há muita terra para pouco índio”. Também põe em xeque a competência da Funai para decidir sobre o assunto e a legitimidade da posse dos territórios pelos povos tradicionais. Argumenta, ainda, que os indígenas vivem “em condições de miserabilidade”. “Como os índios vivem hoje? Com fome, com miséria e, quando brigam com o cacique, são expulsos das suas aldeias e, através de uma ONG ou através da Funai, eles são instigados a invadir determinadas áreas. Índio não precisa mais de terra no Brasil. Precisa de dignidade. Índio precisa de orientação para que possa explorar suas terras de forma racional, de forma sustentável”, defendeu o deputado Giovani Cherini (PL-RS) durante a sessão que aprovou o PL 490 na CCJ. O deputado Kim Kataguiri (DEM-SP) seguiu o mesmo raciocínio, considerando que o projeto traria mais liberdade aos povos originários para “se desenvolverem economicamente”.

Lideranças tradicionais, porém, avaliam que os argumentos desconsideram sua cultura ao medi-la com a régua não indígena. “O diálogo é muito importante, mas os não indígenas se recusam a nos ouvir. O grande problema é que eles não entendem a nossa forma de viver. A proteção dos povos indígenas é necessária para que outros modos de vida existam. O sistema deles nos agride quando cria normas que vão contra os nossos direitos. Para nós, a Funai já funcionou como uma embaixada. Agora, não funciona mais. A todo tempo, parece que somos imigrantes, que não temos o direito de viver em nossos territórios. Somos estrangeiros nas nossas próprias terras”, lamenta Telma Taurepang.


Vamos ganhar de goleada hoje. Isso se a decisão dos ministros a nosso favor não for unânime”, previu Toni Lotar, vice-presidente da Fundação Darcy Ribeiro, no início da segunda reunião do Parlaíndio Brasil. O militante apostava que a força das mobilizações indígenas em todo o país levaria o Supremo Tribunal Federal a derrubar a tese do marco temporal, pilar de sustentação do PL 490. O assunto estava na pauta do STF naquele 30 de junho. A tese, defendida por ruralistas, consiste na ideia de que os indígenas só podem reivindicar os territórios que ocupavam na data de promulgação da Constituição (5 de outubro de 1988). A própria Carta Magna, no entanto, determina que, como os indígenas são povos originários, seu direito à terra é anterior à chegada dos portugueses ao Brasil.

“Estou confiante. Espero que os magistrados tenham a compreensão de que o marco temporal é um prejuízo não só para os indígenas, mas para o país. Por enquanto, deposito muita fé na Justiça. Sei que o STF está recebendo uma enorme pressão, mas o que vale é a compreensão que cada magistrado terá sobre a Constituição”, avaliou Almir Suruí.

“Os indígenas estão promovendo atos no Brasil inteiro. Vejo esses três fatores como essenciais para a nossa vitória: mobilização da base, qualidade das lideranças e determinação de todos. É uma luta de vida ou morte. As ameaças deixaram de ser políticas e se tornaram concretas. Nossos adversários estão indo para as vias de fato, um negócio jamais visto. Não dava para esperar nada da CCJ, por causa da influência dos ruralistas e da bancada da bala. Mas acho que hoje a gente vai dormir feliz com a decisão do STF”, continuou Lotar.

Juristas e analistas, porém, consideravam pouco provável a votação da pauta naquela data. É que havia outras quatro pautas previstas para o mesmo dia, todas relatadas pelo ministro Marco Aurélio Mello. Elas seriam priorizadas em função de sua iminente aposentadoria. Não bastasse, a sessão de 30 de junho foi a última antes do recesso de julho. “Houve uma vigília de madrugada, com velas acesas em frente ao STF. Os indígenas cantaram e fizeram pajelança a noite inteira. Espero que o Supremo não nos decepcione. O marco temporal é tão inconstitucional que acho impossível não o derrubarem”, reiterou Lotar. Sua previsão, no entanto, não se cumpriu. Os ministros abdicaram de se posicionar sobre o tema antes do recesso. Na prática, enquanto o PL 490 avança rapidamente no Congresso, o julgamento do marco temporal está paralisado no Supremo desde junho de 2020. E assim se manterá, no mínimo, até agosto. Caso aprovado no plenário da Câmara, o projeto irá ao Senado e, em seguida, ao aval de Bolsonaro.

O PL 490 não exige apenas que os indígenas comprovem que ocupavam, em 5 outubro de 1988, os territórios a ser demarcados — o que ignora o fato de que muitos desses povos foram expulsos de seus domínios. O projeto também proíbe a ampliação de áreas já demarcadas, anula demarcações que não obedeçam aos critérios do marco temporal e permite a exploração econômica de terras indígenas por garimpeiros, fazendeiros e pelo Estado. De autoria do então deputado federal Homero Pereira, hoje falecido, o PL foi barrado na Câmara, em 2009, pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM). O órgão concluiu que ele não representava “nenhum avanço na salvaguarda dos direitos indígenas” e que, se transformado em lei, propiciaria “a postergação do processo de demarcação” das áreas reivindicadas pelos povos originários. De acordo com o Instituto Socioambiental (Isa), as terras indígenas totalizam 13,8% do território nacional. No país, segundo o Censo 2010, vivem mais de 900 mil indígenas, pertencentes a 305 povos distintos, que falam 274 línguas.

“O que está acontecendo não é de agora. Foi sempre assim. Eu me recordo bem da demarcação das terras dos Suruí, nos anos 1970. Muito sofrimento, muita ameaça, muito assassinato. É isso que me lembra o que está acontecendo neste momento. Eu fico com muito medo porque quem viu aquele sofrimento não esquece. Olho ao nosso redor e vejo nossos parentes aceitando proposta do governo, aceitando garimpo e agricultura nas nossas terras. Isso me preocupa muito… A gente não deve aceitar”, afirmou o cacique Gaami Anine Suruí durante a assembleia do dia 30 de junho.

O texto aprovado na CCJ, de autoria do deputado Arthur Oliveira Maia (DEM-BA), substitui o projeto de Homero Pereira e treze propostas semelhantes. Diferentemente do original, o novo PL não transfere a demarcação de terras indígenas do Executivo para o Legislativo. Mas transforma o marco temporal em lei, criando outras exigências para a demarcação. Prevê, ainda, que o governo intervenha em terras demarcadas quando houver “relevante interesse público da União”, sem a necessidade de avisar os povos tradicionais. Isso permitirá tanto a mineração em territórios indígenas quanto a construção de hidrelétricas, ferrovias e estradas. Também possibilitará que fazendeiros assinem contratos com os indígenas para plantar soja ou criar gado. A Constituição proíbe tais acordos, já que as terras dos povos originários devem ser de usufruto exclusivo deles. Por fim, o PL admite que não indígenas possam quebrar o isolamento voluntário dos indígenas “para intermediar ação estatal de utilidade pública”.

O próprio Estado será o responsável por determinar o que significa “relevante interesse público da União” ou “ação estatal de utilidade pública”. A autodeterminação dos povos tradicionais, portanto, está sob ameaça. Para ambientalistas, a Amazônia também está, já que as terras indígenas conservam a maior parte dos biomas nacionais. “Nosso objetivo é ocupar os espaços políticos em prol de nossa população. Mas, ao defender os direitos dos indígenas, estamos defendendo o direito de todo o povo brasileiro. Vivemos um momento de mudança climática, e a floresta dá equilíbrio para o planeta. Este governo é inimigo da floresta. Tem atacado o meio ambiente e afetado a vida indígena. Sem a floresta, o ser humano não é nada”, destacou Almir Suruí na assembleia. Adepto do isolamento, ele vive com a esposa na aldeia dos Paiter Suruí em Rondônia, mas já morou na cidade. À época, não havia energia elétrica nem internet na aldeia, o que o obrigou a se mudar para dirigir a Associação Metareilá e estudar biologia aplicada na PUC Goiás.

Durante a primeira reunião do Parlaíndio, em maio, as lideranças discutiram os objetivos do novo parlamento e a periodicidade das assembleias. Também aprovaram, por unanimidade, a proposta de o movimento entrar com uma ação na Justiça pedindo a exoneração do presidente da Funai, delegado Marcelo Xavier. Os indígenas dizem que ele solicitou recentemente à Polícia Federal a abertura de um inquérito contra Almir Suruí e Sônia Guajajara, coordenadora executiva da Apib, sob a alegação de que os dois difamaram o governo federal. A PF não levou o pedido adiante. “A Funai deveria garantir a proteção dos indígenas brasileiros. Só que, atualmente, faz o inverso. O inquérito pretendia intimidar e criminalizar os povos tradicionais. O presidente da Funai tem histórico anti-indígena. O lugar dele não é na Funai”, protestou Almir Suruí.

Na segunda assembleia, em junho, uma das pautas foi justamente o encaminhamento do processo contra o delegado. Toni Lotar ressaltou que, independentemente do resultado, propor a ação já constitui um ato político importante. Ele lembrou que, em 2016, Xavier atuou como acusador numa CPI contra a Funai. O delegado foi convidado para a tarefa por ruralistas, grupo com o qual mantém ligação.

As lideranças também debateram as mobilizações em relação ao PL 490, além de aprovarem uma moção de apoio à deputada Joenia Wapichana e a redação de uma carta à OIT denunciando a violação da Convenção 169. Os participantes discutiram, ainda, uma lista com novos nomes para integrar o Parlaíndio e a promoção de um evento em 9 de agosto que celebrará o Dia Internacional dos Povos Indígenas e divulgará as pautas do parlamento. As principais são a luta contra o desmatamento, o garimpo ilegal e os projetos de mineração e hidrelétricas em terras indígenas; o combate à poluição dos rios por mercúrio; a adoção de barreiras sanitárias para proteger os povos isolados da Covid-19; a preservação da Amazônia e dos demais biomas nacionais; a retomada da demarcação das áreas indígenas; o desaparelhamento da Funai e a revitalização da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).

“O Parlaíndio foi criado para que possamos ecoar nossas vozes. A gente observa que as caravelas continuam trazendo a pandemia da destruição até nós. Hoje não lutamos mais com a borduna, mas com a caneta, e essa caneta precisa ter tinta”, concluiu Telma Taurepang na reunião de junho.

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