Caxambu, em Minas Gerais, e Colniza, em Mato Grosso, são separadas por mais de 2 mil km. Entre uma cidade e outra, a paisagem muda da Mata Atlântica, passa pelos campos do Cerrado até chegar na Floresta Amazônica, numa transição que corta o polo produtor agropecuário brasileiro.
Apesar da distância e da paisagem que as separam, ambas apresentam dados socioeconômicos similares: têm população na casa dos 20 mil habitantes e um Produto Interno Bruto per capita próximo – 17 mil reais no município mineiro e 20 mil reais no mato-grossense. As equivalências que poderiam sugerir realidades parecidas para seus habitantes não ocorre na prática, de acordo com o Índice de Progresso Social, o IPS, divulgado nesta quarta-feira (3).
O estudo compilou dados dos 5.568 municípios brasileiros para analisar a qualidade das cidades sob dois aspectos: o desempenho social e ambiental. A equipe com cerca de vinte pesquisadores se debruçou sobre dados públicos, incluindo ministérios da Saúde e da Cidadania, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o Conselho Nacional de Justiça, entre outros, para estabelecer a pontuação em 53 critérios que vão além do PIB e do Índice de Desenvolvimento Humano, o IDH. O trabalho foi coordenado pela Imazon, o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia, em parceria com Amazônia 2030, Fundación Avina, Anattá Pesquisa e Desenvolvimento e o Centro de Empreendedorismo da Amazônia e Social Progress Imperative.
Os resultados estão divididos em três tópicos: necessidades humanas básicas, fundamentos para o bem-estar e oportunidades. Todos têm especificidades, como análise de moradia, qualidade do meio ambiente, acesso ao conhecimento básico, liberdades individuais, inclusão social, entre outras referências. No fim, cada critério recebe uma pontuação que, somada, dá a nota final do município. Caxambu atingiu nota de 69,69 e está entre os vinte melhores municípios do país, à frente de capitais como São Paulo, Belo Horizonte e Florianópolis. Colniza somou 44,96 pontos e está entre as cinquenta piores.
Em todas as três dimensões consideradas no índice, Caxambu tem ótimo desempenho, com o mapa pintado de azul: necessidades humanas básicas são atendidas, a cidade oferece bem-estar aos moradores, assim como oportunidades no acesso à educação e aos direitos individuais. Em Colniza, a mesma avaliação resulta em uma cartografia avermelhada, quando os critérios tiveram baixa pontuação. Os únicos indicadores satisfatórios no município mato-grossense são os de Nutrição e Cuidados Médicos Básicos e Inclusão Social, que ficaram acima da média nacional.
“O IPS se abstém dos dados da economia, mas claro que ela é muito importante. Se o município não tem base econômica boa, não consegue fazer investimento. Mas dinheiro não é suficiente. E sim: como ele está sendo aplicado? Em benefício de quem? Tem saneamento, educação?”, disse à piauí Ricardo Chaves, professor de Economia da Universidade Federal de Pernambuco e um dos consultores da pesquisa.
A existência de Caxambu depende principalmente de um recurso natural: água. A descoberta das primeiras fontes minerais, um século antes, atraiu até a família real para a região e ditou o desenvolvimento da cidade. Registros históricos narram a visita em 1868 da Princesa Isabel e seu marido, Conde D’Eu, às fontes termais. “Isso colaborou para que Caxambu se tornasse um dos principais destinos do turismo naquela época, junto com Petrópolis. Aqui não tinha ouro, mas, por estar no caminho da Estrada Real e ter fontes de água mineral, a cidade viveu uma grande pujança”, afirma Filipe Condé, secretário municipal de Turismo.
A herança desse tempo é perceptível até hoje, sobretudo no Centro da cidade. O nome da princesa batiza um dos pavilhões que abrigam, no total, doze fontes de águas minerais. Cada uma delas contém propriedades que vão de alcalinas, ferruginosas, gasosas, sulfurosas ou magnesianas. Protegidas dentro do Parque das Águas de Caxambu, cuja entrada é gratuita para moradores em horários determinados, elas permanecem um atrativo para turistas e novos residentes – idosos aposentados, na maioria.
Essa movimentação se reflete na arrecadação da cidade: o setor de serviços e o comércio são a principal fonte de recursos. Cerca de 80% do PIB do município deriva, direta ou indiretamente, da presença de turistas. “Temos uma rede grande de hotéis pelo nosso tamanho. Isso movimenta toda a cadeia que oferece serviços junto com o turismo”, comenta Amaro Gadbem, secretário municipal de Governo e Desenvolvimento Econômico.
Para os administradores, o progresso social medido no IPS está diretamente ligado à relação que a cidade construiu com suas fontes termais e o que consegue extrair delas economicamente. Toda vez que o acesso às tais fontes foram ameaçadas por interesses de grandes empresas, a população se mobilizou. Em 2018, por exemplo, com apoio da sociedade civil, o governo criou uma Área de Proteção Ambiental Municipal no entorno do parque para preservar as águas superficiais, minerais e o patrimônio histórico da região.
Das doze fontes minerais, apenas uma pode ser explorada comercialmente. “Cuidamos do nosso bem mais precioso”, afirma Gadbem. Nas torneiras das casas, o serviço de abastecimento é outro destaque na avaliação do IPS. A componente “água e saneamento” atingiu 91,36. A captação do recurso natural é feita pela Companhia de Saneamento de Minas Gerais, Copasa, no Rio Baependi, e 100% do esgoto gerado recebe tratamento. Esse é um dos melhores índices do estado, apontam dados recentes do IBGE.
Ainda de acordo com o levantamento, Caxambu supera os índices nacionais em 11 dos 12 critérios avaliados, com destaque para Moradia (94,20), Acesso ao Conhecimento Básico (76,47), Segurança Pessoal (74,82) e Liberdades Individuais (72,84).
Colniza, no noroeste de Mato Grosso, é acompanhada pela reputação de cidade violenta. O município está entre os quinze com as maiores taxas de violência extrema na Amazônia Legal entre 2020 e 2022, aponta o estudo Cartografias da Violência na Amazônia feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
O cenário se reflete no componente “segurança pessoal” medido pelo IPS. Dos 100 pontos possíveis, Colniza marcou 20,01. De todos os indicadores considerados neste quesito, a alta taxa de feminicídio é a que mais pesou. O estado de Mato Grosso é considerado o mais violento para mulheres, com 2,5 mortes para cada grupo de 100 mil mulheres, quase o dobro da média nacional.
Inserida na área de maior remanescente da Floresta Amazônica do estado, o patrimônio natural também está na raiz dos conflitos. Desmatamento ilegal, grilagem de terras, trabalho análogo à escravidão e comércio clandestino de madeira alimentam a economia e a violência.
“Colniza reúne todos os desafios que um município na Amazônia pode ter: conflito fundiário, presença de povos indígenas isolados, floresta, assentados, ilegalidade”, disse à piauí Vinicius Silgueiro, coordenador de inteligência territorial do Instituto Centro de Vida (ICV), baseado na capital Cuiabá.
Em 2023, o município registrou a maior área desmatada em Mato Grosso, com 149,2 km2. A única reserva extrativista do estado, a Guariba Roosevelt, localizada parcialmente em Colniza, também não escapou do avanço da destruição.
Inácio Werner, ex-agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e atual presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos, afirma que o clima de desconfiança e medo assola a população. “Já existiram tentativas do poder público e da Justiça em mudar a situação, mas a tensão é grande. O conflito por terra é extremo, assim como a disputa por minérios e madeira”, explicou ele à piauí.
Werner lembrou o crime ocorrido na cidade e que ficou conhecido como chacina de Taquaruçu do Norte, ocorrido em 2017, quando nove homens foram assassinados na gleba de mesmo nome por um grupo de extermínio. A motivação, segundo o Ministério Público Estadual, era a exploração dos recursos naturais e, para isso, o mandante teria encomendado a “limpeza” da terra a fim de ocupá-la. No ano passado, um júri popular condenou a duzentos anos de prisão um dos integrantes da quadrilha.
“Colniza é conhecida por ser uma terra de ninguém. Está na região do arco do desmatamento. É uma cidade violenta, com altos índices de suicídio. É uma violência ligada à questão da terra, o que faz cair o bem-estar das pessoas por causa dos riscos sociais que existem. E tem os riscos ambientais”, avalia Carolina Joana da Silva, professora da Universidade Estadual de Mato Grosso (Unemat) e especialista em biodiversidade e conservação.
Para Kennedy Marques Dias, secretário adjunto de Direitos Humanos da Secretaria de Estado de Assistência Social e Cidadania, a explicação para o baixo progresso social medido no IPS é complexa. Ele atua na implantação do recente Programa de Proteção às Vítimas e Testemunhas Ameaçadas em Mato Grosso, mas, por motivos de segurança, preferiu não revelar se a iniciativa atende moradores de Colniza. “Os serviços públicos chegam na cidade. Lá tem delegacia e os órgãos ambientais atuam”, justifica Dias, alegando que o estado financia projetos ligados à defesa dos direitos humanos no município.
Todo o conjunto de infraestrutura urbana apresenta uma baixa performance no IPS. As lacunas são grandes na rede de distribuição de água, esgotamento sanitário e coleta de lixo. Na educação, os indicadores também são ruins. Mas nenhum componente perde para a “qualidade do meio ambiente”: a pontuação foi 16,62, o 15º pior município brasileiro no quesito.
Beto Veríssimo, coordenador do IPS Brasil, destaca que o fenômeno observado no Norte de Mato Grosso é agravado por uma questão: o desmatamento avança territorialmente, mas produz pouco. O boi, em sua maioria, ocupa o terreno para “consolidar” o uso da terra ocupada após as queimadas.
O Mato Grosso é o estado brasileiro com o maior número de cabeças de gado, com 34,2 milhões de animais (14,6% do efetivo nacional), segundo dados da Pesquisa Produção da Pecuária Municipal 2022 divulgada em setembro do ano passado. Colniza é o quarto município do estado com o maior número de cabeças de gado (cerca de 851 mil).
“No Sul do Pará e no noroeste de Mato Grosso os dados mostram que estamos desmatando para nada. Em geral, não tem grão, tem só fumaça. À medida que aproximamos a imagem do mapa, vemos que esses lugares têm as piores notas no IPS”, diz Veríssimo.
Para o economista e pesquisador Ricardo Chaves, o Índice de Progresso Social pode ser visto como um mapa para as cidades que buscam melhorar critérios com avaliação abaixo da média e seguir avançando em pontos cuja nota seja eficaz. “Você olha para a nota do IPS e sabe onde estão os problemas. Para o gestor, não tem nada melhor do que o monitoramento. É por isso que o índice pode ser um ótimo guia para formulação de políticas públicas.”