Atualizado às 18h07 de 20 de dezembro de 2023
O ministro do Supremo Tribunal Federal José Antonio Dias Toffoli suspendeu a multa de 10,3 bilhões de reais do acordo de leniência do grupo J&F – para o qual sua esposa, Roberta Rangel, advoga. A decisão foi concedida na manhã desta quarta-feira, dia 20, o primeiro dia do recesso dos ministros do STF, que vai até 31 de janeiro. Em razão de ter sido adotada na estreia do recesso judiciário, a decisão de Toffoli não passará pela revisão dos ministros que estarão de plantão durante o mês de janeiro. Qualquer recurso que venha a ser impetrado contra a suspensão da multa será julgado pelo próprio Toffoli.
Foram três os pedidos da companhia dos irmãos Joesley e Wesley Batista deferidos por Toffoli. O primeiro: a autorização para ter acesso à íntegra das mensagens da operação Spoofing, que trata do vazamento de conversas entre integrantes da Operação Lava Jato. O segundo, e mais importante, é justamente “a suspensão de todas as obrigações pecuniárias decorrentes (multa) do acordo de leniência entabulado entre J&F e MPF”, até que o grupo possa analisar o material da operação. O objetivo da empresa é tentar buscar a revisão, repactuação ou revalidação do acordo de leniência nas instâncias adequadas.
Por fim, Toffoli autorizou que a J&F, perante a Controladoria-Geral da União (CGU), reavalie os anexos do acordo de leniência que a empresa firmou com o Ministério Público Federal a fim de corrigir possíveis “abusos que tenham sido praticados, especialmente (mas não exclusivamente) no que se refere à utilização das provas ilícitas declaradas imprestáveis no bojo desta reclamação, para que no âmbito da CGU apenas sejam considerados anexos realmente com ilicitude reconhecida pela Requerente”.
Um quarto pedido feito pela empresa foi negado. Era o que dizia respeito a anulação de “negócios jurídicos de caráter patrimonial decorrentes da situação de inconstitucionalidade estrutural e abusiva em que se desenvolveram as Operações Lava Jato e suas decorrentes, Greenfield, Sépsis Cui Bono”. O objetivo da empresa, com esse pedido, era anular a venda da Eldorado Celulose, fabricante de papel, para o grupo indonésio Paper Excellence. As duas empresas brigam há cinco anos pelo comando da Eldorado.
Roberta Maria Rangel, a esposa do ministro Dias Toffoli, que é advogada do grupo J&F, não assina o pedido que o marido julgou, mas trabalha em ações relacionadas. Estão em seu escopo as ações movidas pela empresa com o objetivo de anular a arbitragem que decidiu que o controle da Eldorado Celulose deve ser transferido para a Paper Excellence. Para esta mesma causa, a J&F contratou o ex-ministro Ricardo Lewandowski assim que ele se aposentou.
A decisão de Dias Toffoli, porém, pode ajudar a J&F na causa em que Roberta trabalha. Com acesso às conversas dos bastidores da Lava Jato, os advogados poderão procurar informações que deem suporte às alegações de que a venda para o grupo Indonésio deve ser anulada, que podem ser usadas em diferentes instâncias, inclusive na do STF, onde deliberação será feita por Toffoli.
Na manhã desta quarta-feira, após a divulgação da suspensão da multa, a Transparência Internacional Brasil publicou no Twitter: “Depois de anular as provas da Odebrecht, o maior esquema de corrupção internacional da história, Toffoli agora suspende o pagamento da multa de 10 bilhões da J&F, um caso que não tinha relação alguma com a petição original que ele herdou de Lewandowski. Mais uma decisão com imenso impacto sistêmico e internacional, tomada por um juiz com evidentes conflitos de interesses.”
A J&F é a holding que controla empresas como a JBS, maior fabricante de carne do mundo, a Eldorado Celulose e a Âmbar Energia, que recebeu recentemente a aprovação do governo para importar energia da Venezuela.
A tomada de decisões sobre processos no período do recesso – o que garantirá a Toffoli julgar também os recursos do caso – não é um expediente comum no Supremo. Há precedentes, mas de natureza distinta. O ministro Alexandre de Moraes, por exemplo, continuou relatando o chamado Inquérito das Fake News, e o ministro Ricardo Lewandowski seguiu relatando ações relacionadas à vacinação da população durante a pandemia de covid-19. Nas duas situações, no entanto, tratava-se, claramente, de questões de amplo interesse público, e não de interesse privado – no qual há um evidente potencial conflito de interesses, dada a relação do ministro com uma das advogadas do grupo.
Ao manter a ação sob seu controle, Toffoli garante que um eventual recurso contra a sua decisão seja julgado por ele mesmo, e não pelo plantão da Presidência do STF. O plantão será dividido em dois períodos. O primeiro, durante a primeira quinze de janeiro, estará sob responsabilidade do ministro Edson Fachin. O outro, na segunda quinzena de janeiro, será comandado pelo ministro Luís Roberto Barroso, presidente do tribunal.
O acordo de leniência (nome que se dá à colaboração premiada de empresas) da J&F foi o maior da história do país, assinado com o Ministério Público Federal (MPF) em 2017. Previa o pagamento de multa de R$ 10,3 bilhões, parceladas em 25 anos, pelo envolvimento da empresa em casos de corrupção. Nos últimos anos, porém, o grupo tem buscado a revisão desse valor, alegando que os cálculos dos custos, com os quais concordou na época, não foram adequados.
O caso gerou uma crise interna no MPF. Durante a gestão de Augusto Aras na Procuradoria-Geral da República, houve decisões ora a favor e ora contra o pedido da empresa. Em maio deste ano, o coordenador da 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, Ronaldo Albo, aprovou a redução da multa para 3,53 bilhões de reais. Procuradores apontaram que Albo não tinha competência para tomar a decisão, que acabou sendo anulada em julgamentos colegiados posteriores. Dessa forma, o desconto de mais de 6 bilhões de reais que Albo concedera foi suspenso, e multou voltou a ficar em 10,3 bilhões – agora com pagamentos suspensos, pela decisão de Toffoli.
Esta reportagem foi atualizada no fim da tarde desta quarta-feira, depois que a piauí teve acesso à integra da decisão do ministro Dias Toffoli. No documento de 64 páginas o magistrado escreve que “a declaração de vontade em acordos de leniência deve ser produto de uma escolha livre, sem coerção ou influência indevida” – sem demonstrar que isso tenha acontecido nesse caso.
“Tenho que, a princípio, há, no mínimo, dúvida razoável sobre o requisito da voluntariedade da requerente ao firmar o acordo de leniência com o Ministério Público Federal que lhe impôs obrigações patrimoniais, o que justifica, por ora, a paralisação dos pagamentos, tal como requerido pela autora”, escreveu o ministro.
No pedido feito ao Supremo, os advogados da J&F disseram, sem apresentar qualquer prova, que houve “efetivo conluio da Lava Jato com a TI [Transparência Internacional] para forçar o grupo a realizar vendas de ativos” no processo de “alforria” da operação. E afirmam o seguinte: “(…) a Requerente, por estar a mercê dos abusos da Lava Jato, viu-se forçada a realizar diversos negócios jurídicos patrimoniais desvantajosos. A título de exemplo, pode-se citar as vendas da Eldorado, da Vigor e da Alpargatas, que, à época, somavam quantia de aproximadamente 24 bilhões”.
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