Cartas para um Ladrão de Livros FOTO: DIVULGAÇÃO
Trama Fantasma e Cartas para um Ladrão de Livros – O estilista e o ladrão
Assistir aos dois filmes em sessões seguidas evidencia os impasses do cinema brasileiro para ser autossustentável
Quem imaginaria que Reynolds Woodcock e Laéssio Rodrigues de Oliveira poderiam estar lado a lado algum dia? Eles habitam universos distantes, um, suntuoso, o outro, singelo. Só mesmo contingências de programação seriam capazes de aproximar o mundo da alta costura londrina, nos anos 50, das quebradas de São Paulo e do Rio de Janeiro, nesta década de 2010.
Uma única sessão diária, espremida entre duas de Trama Fantasma, e com apenas 20 minutos de diferença, a morbidez de Woodcock (Daniel Day-Lewis) é separada da alegria de Laéssio, o ladrão de livros do documentário de Carlos Juliano Barros e Caio Cavechini. Morbidez e alegria que resultam, ambas, pouco convincentes.
O prepotente Woodcock, do filme escrito e dirigido por Paul Thomas Anderson, parece ter motivos suficientes para estar satisfeito consigo mesmo, mas deixa-se aprisionar em uma relação doentia e se oferece em holocausto, vítima da vingança perversa de sua amada parceira. O presunçoso Laéssio, por sua vez, ri das suas próprias transgressões, sem que se saiba exatamente por quê. Ele declara sentir prazer em roubar; abandona na rodoviária malas contendo garrafas de água mineral cheias com sua própria urina; e pretende pôr fogo na Biblioteca Nacional. Preso e solto, mais de uma vez, durante os cinco anos das gravações, está na cadeia de novo quando Cartas para um Ladrão de Livros termina. Seus malfeitos e brincadeiras de mau gosto por acaso justificam suas risadas?
A exibição no mesmo cinema, em sessões intercaladas, de Trama Fantasma e Cartas para um Ladrão de Livros torna evidente uma das raízes do conhecido impasse que impede o cinema brasileiro de se tornar autossustentável. Enquanto o filme de Anderson é um produto de luxo, cujo custo de produção alcançou 35 milhões de dólares, o modesto documentário de Barros e Cavechini pode ter custado menos do que 1% desse valor. Mas, pelos mesmos 35,80 (trinta e cinco reais e oitenta centavos), o consumidor pode ter acesso a qualquer um dos dois filmes. Mal comparando, é como se fosse possível comprar pelo mesmo preço um Bristol 405 castanho, igual ao que Woodcock dirige em Trama Fantasma, cujo valor pode chegar a cerca de 800 mil reais, e um Volks Gol, avaliado em pelo menos 37 mil reais. Quem em sã consciência optaria pelo carro fabricado no Brasil? Daí, independentemente da qualidade ou deficiência do filme brasileiro, não seria possível competir com o estrangeiro.
É claro que filmes e carros não são produtos similares. A comparação serve, porém, apesar de forçada, para ilustrar os termos desiguais da competição entre o filme importado e o brasileiro, mesmo no mercado interno. Prova disso, é Cartas para um Ladrão de Livros ter estreado no Rio em um cinema com uma sessão diária, enquanto Trama Fantasma, na segunda semana em cartaz, estava sendo exibido em dezenove salas, com inúmeras sessões, sem mencionar outras tantas país afora. No dia da estreia, quatro pessoas assistiram ao documentário brasileiro na sala de 150 lugares, enquanto cerca de trinta viram o filme de Anderson, na mesma sala, na sessão anterior.
O valor artístico de um filme, subjetivo por definição, não guarda relação direta com seu orçamento, nem deriva do resultado de sua carreira comercial. Trama Fantasma e Cartas para um Ladrão de Livros são bons exemplos disso. O filme de Anderson é um investimento milionário que até o momento não demonstrou potencial para cobrir seu custo no circuito de salas. Para tanto precisaria render mais de 100 milhões de dólares, meta difícil de alcançar, tendo arrecadado cerca de 39 milhões após dois meses em exibição mundial. Apesar de estar em patamar de custo muito inferior, o documentário de Barros e Cavechini ao estrear sequer deu sinais de ter algum apelo comercial.
Diferentes em quase tudo, além da aproximação fortuita na mesma tela, um após o outro, Trama Fantasma e Cartas para um Ladrão de Livros guardam entre si outros traços comuns – a mesma soberba de Woodcock e Laéssio, pela qual ambos pagam caro. Além de fracassarem na bilheteria, os dois filmes resultam desastrosos artisticamente. A ausência de qualquer dimensão dramática crível de seus personagens centrais, torna ambos figuras patéticas, dignas de comiseração. Não mais do que isso.
Terem dado o Oscar de Melhor Figurino a Mark Bridges por Trama Fantasma – cujo personagem principal é um estilista –, além de ser um pleonasmo é um típico prêmio de consolação que mais ofende do que gratifica.
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