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A Trama, retrospectiva 2016-2019

Série sobre prisão e libertação de Lula perde força ao professar inexistente neutralidade

Eduardo Escorel | 29 jun 2022_09h01
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Fiquei motivado ao saber que A Trama vai estrear no VOD a partir da próxima sexta-feira (1/7). A série de seis episódios, cinco de 58 minutos e o sexto um pouco mais longo, de 67 minutos, é dirigida por Carlinhos Andrade e Otávio Antunes. Trata, segundo o release, do “papel das forças políticas, das mídias e do Judiciário nos acontecimentos que marcaram a história do Brasil […] entre 2016 e 2019” – período que vai, em resumo, da condução coercitiva do ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, para prestar depoimento à Polícia Federal, decretada pelo juiz Sergio Moro em 4 de março de 2016, até Lula ser libertado em 8 de novembro de 2019, depois de passar 580 dias preso, graças à decisão do Supremo Tribunal Federal sobre prisão após condenação em segunda instância.

Sendo esse o escopo da série, achei que poderia ser uma contribuição a mais, além da que foi dada por Amigo Secreto (comentado aqui em 15 de junho), para orientar decisões entre as alternativas a serem oferecidas na próxima eleição presidencial.

Admito, porém, ter me decepcionado, antes mesmo de concluir a leitura do release e assistir à série, diante da extensa lista de entrevistados, não por eles mesmos, mas por incluir 41 nomes – pessoas, com certeza, ilustres, respeitáveis e qualificadas, embora em demasia. Ficou evidente que A Trama devia ser mais um exemplar padrão de pretensos documentários produzidos, em grande parte, no âmbito do jornalismo televisivo, fiéis ao modelo desgastado que preconiza intercalar reportagens com cabeças falantes. Constatei depois que algumas eram de políticos conhecidos, de Dilma Rousseff e Fernando Haddad a Jaques Wagner e Guilherme Boulos, entre outros, que, como bons profissionais, de maneira geral costumam falar mais o que convém e menos o que pensam de fato; outros entrevistados, dada a brevidade de suas intervenções, sem oportunidade de revelar quem são e o que pensam, limitam-se a encadear algumas frases que serão rapidamente esquecidas; finalmente, além de jornalistas, convém não esquecer os chamados especialistas, cujas palavras soam como se fossem expressão de verdades irretorquíveis – advogados criminalistas, um jurista, um diplomata, um professor de história econômica, o presidente do Instituto Vox Populi etc. –, algo discrepante da boa prática que nas últimas décadas passou a definir a produção mais relevante do que se considera um verdadeiro documentário.

Pesquisadora em comunicação, Nina Santos é uma das 41 entrevistadas no documentário – Foto: Divulgação

 

Agrava ainda mais esse acúmulo de entrevistas a ausência total de interação entre quem dirige a gravação e quem está diante da câmera, criando barreira difícil de transpor entre espectadores e entrevistado.

Outra e maior decepção se deu quando comecei a assistir ao primeiro episódio (A Lei do Golpe – 2016). Nos segundos iniciais, logo após os créditos das empresas produtoras e dos diretores, surge a seguinte legenda em letras brancas sobre fundo preto: “Essa obra é uma reconstituição histórica independente, que estuda a participação do judiciário, da mídia e das redes sociais nos processos políticos do Brasil entre 2016 e 2019.” Segue-se outra legenda: “Os comentários e opiniões, colhidos em entrevistas ou material disponível na internet, não expressam necessariamente a opinião dos autores da obra.” E, finalmente, uma terceira legenda esclarece que “todas as entrevistas foram realizadas em 2019, portanto antes da pandemia de Covid 19.”

Começando pelo fim, além da restrição já feita quanto ao excesso de entrevistados, o fato de as gravações terem sido feitas antes da pandemia acabou condenando A Trama a sofrer de envelhecimento precoce ao deixar de incluir eventos políticos e implicações decorrentes da pandemia a partir de 2020. O espectador está diante de uma série da era a.P. (antes da pandemia), desatualizada por definição. Esse é um dado incontestável a ser lamentado, mas que não cabe discutir, embora chame atenção um personagem que chegou a ser central, como o ex-juiz e ex-ministro da Justiça, Sergio Moro, ter se tornado mero figurante do processo político. 

O que pode e deve ser arguido são as afirmações feitas nas duas legendas anteriores, diante das quais, confesso, meu primeiro impulso foi não continuar assistindo ao episódio. Fora a impropriedade pretensiosa de chamar a própria série de “obra” e afirmar que ela “estuda” a participação do Judiciário etc., o que seria uma “reconstituição histórica independente” feita de “comentários e opiniões”? Os termos “reconstituição” e “independente” são errôneos – entrevistas, depoimentos e testemunhos sobre a história política recente são relatos parciais e subjetivos, sendo duvidoso que possam constituir por si só uma “reconstituição histórica”. Além disso, o que atestaria a suposta independência dessa pretensa “reconstituição histórica” quando a série se revela, na verdade, um filme-exaltação, direcionado para enaltecer as qualidades e grandiosidade de Lula – opção legítima da dupla de realizadores, mas contraditória com a declaração de intenções contida nas legendas introdutórias.

Resulta estranho ademais pretender que “os comentários e opiniões […] não expressam necessariamente a opinião dos autores da obra”, em especial com a inclusão desse “necessariamente”, e ainda por cima depois de ter constatado, assistindo à série, o viés hagiográfico predominante. Qual a razão dessa advertência prévia se a posição dos realizadores transparece sem a menor sombra de dúvida?

 

ATrama é mais do que tudo uma antologia, semelhante às que a televisão costumava fazer ao fim de cada ano (ou continuará fazendo sem que eu saiba?). Toma partido, mesmo negando de modo explícito que o faça. Perde força e interesse ao pretender se eximir dessa responsabilidade, professando suposta neutralidade ou ser “independente”. No final do sexto e último episódio, aliás, surge um subtítulo revelador, até então omitido – a série, na verdade, se chamaria A Trama – a história da prisão de Lula, revelando assim seu verdadeiro foco.

Embora a série falhe ao deixar de contribuir para formar uma visão histórica menos superficial e mais equilibrada, poderá valer a pena assistir aos episódios de A Trama nas plataformas Vivo Play, Looke e Claro+ para ter presente alguns fatos políticos do período 2016-2019.

Conforme escrevemos na coluna sobre Amigo Secreto (15/6), permanece enigmático, porém, mesmo após assistir à série A Trama, como foi possível 57.797.847 de brasileiros e brasileiras terem eleito o atual presidente da República, notoriamente desqualificado para a função.

*

Por curioso acaso, estreia amanhã (30/6) As Verdades, produção esmerada dirigida por José Eduardo Belmonte a partir do roteiro de Pedro Furtado. O valor relativo da verdade, questão ignorada pelos realizadores de A Trama, está na origem de As Verdades, além de estar presente em inúmeras obras literárias e filmes.

O roteiro de Furtado retoma o tema consagrado de Rashomon (1950), de Akira Kurosawa, adaptação de Dentro de um bosque (1922) e partes de Rashomon (1915), ambos contos de Ryūnosuke Akutagawa. No filme do grande mestre nipônico, um crime é contado em flashback por quatro testemunhas, cada uma revelando sua própria versão. Em As Verdades, são três histórias divergentes sobre um mesmo ato brutal, contadas por dois participantes e pela própria vítima que vem a falecer, seguindo-se os desdobramentos decorrentes da agressão na vida dos personagens.

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