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    Ilustração: Carvall

anais da mineirice

Trem do engano

Deslindando a intrincada falsificação de honraria da Unesco para dois compositores que projetaram Minas e o Clube da Esquina para o mundo

Claudio Leal  | 07 fev 2022_14h07
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Os compositores do Clube da Esquina esbanjavam reconhecimento crítico internacional naquele 26 de novembro de 2021. Os amigos e familiares do letrista Fernando Brant, parceiro de Milton Nascimento em canções como Travessia e Canção da América, se reuniam para celebrar a memória de Brant, que completaria 75 anos em outubro. Mas, nas mesas do restaurante Dona Lucinha, em Belo Horizonte, o movimento mineiro ficaria ainda mais universal. 

Numa das mesas, o poeta e advogado Lucas Guimaraens, de 42 anos, leu um poema de Murilo Antunes e fez um anúncio especial. Em voz alta, ele contou que, em Paris, no dia anterior, a assembleia da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) concedera o título de Patrimônio Imaterial da Humanidade à obra de Brant e Tavinho Moura, dois artistas da trupe do Clube da Esquina. Em seu perfil no Instagram, ao reproduzir uma foto do encontro, Guimaraens acrescentaria um verso de Para Lennon e McCartney, de Lô, Márcio Borges e Brant: “Sou do mundo, sou Minas Gerais.”

Um mês depois, o título assumiu a forma de ofício com logotipo da Unesco, da Cátedra Unesco de Filosofia da Cultura e das Instituições e da Universidade Paris 8. A carta dirigida a Tavinho e Brant (in memoriam) formalizava, enfim, a notícia ventilada no restaurante de comida tradicional. “Após sete anos de pesquisas e reuniões com o senhor embaixador Lucas Guimaraens e sua equipe, vimos, por meio deste, informar que vossa obra poético-musical foi reconhecida como Patrimônio Imaterial da Humanidade no dia 25 de novembro de 2021, com a unânime aprovação da Assembleia Geral da Unesco”, dizia o primeiro parágrafo.

“Melodias, formas de tocar o violão, ritmos, células rítmicas se conectam como uma única obra com os poemas das canções que nos levam também das mazelas de Minas Gerais e do Brasil até sua possibilidade de emancipação”, acrescentava.

O texto mal ajambrado chamava Guimaraens de embaixador, fazendo uma menção obscura às suas relações com o Círculo Universal de Embaixadores da Paz, sem peso no mundo diplomático. Nas entrelinhas, causava estranheza que a Unesco ignorasse Milton Nascimento, Lô Borges, Beto Guedes, Márcio Borges, Toninho Horta, Wagner Tiso ou Ronaldo Bastos, outros nomes relevantes do Clube da Esquina. Havia mais um grão de esquisitice: por que não celebrar essa geração em seu conjunto de compositores? Um dos grandes movimentos musicais do país no século XX, ao lado da bossa nova e do tropicalismo, ele condensava influências brasileiras e externas, do jazz ao rock, da música erudita à folclórica, sem escapar ao impacto de Tom Jobim e João Gilberto.

Até 2019, no Brasil, a Unesco só reconheceu como patrimônio imaterial expressões da cultura e religiosidade populares, como o bumba meu boi do Maranhão, a roda de capoeira, o Círio de Nazaré, o frevo, as expressões orais e gráficas dos Wajapis, o samba de roda do Recôncavo Baiano e o Yaokwa, ritual do povo Enawene Nawe para a manutenção da ordem social e cósmica. Apesar da relevância da trajetória de Brant e Tavinho Moura, parceiros em Paixão e Fé e Serra da Maravilha, a concessão do título a personalidades fugiria dessa tendência histórica.

De todo modo, a dispersão do fim do ano atrapalhou a checagem dos fatos junto à sede da Unesco, em Paris. Pelo WhatsApp, a novidade se espalhou. O ofício digital alcançou Tavinho Moura, a família de Fernando Brant e os demais integrantes do Clube da Esquina. O vice-governador de Minas, Paulo Brant, irmão de Fernando, comemorou a distinção mundial em depoimento ao jornal O Tempo. No dia 30 de dezembro, o assunto virou manchete na mídia mineira e ganhou as redes sociais.

 

A Unesco seria a última a saber da homenagem prestada pela Unesco. Em 4 de janeiro, procurada pelo jornal O Estado de Minas, o escritório da instituição em Brasília reagiu ao anúncio do título: “A notícia não é verdadeira. Jornais e sites receberam um documento falso.” Sem autorização, foram manipuladas as assinaturas do diretor-geral adjunto de Cultura, Ernesto Ottone, e do ex-titular da cátedra Unesco de Filosofia da Cultura e das Instituições Jacques Poulain. Além disso, a obra dos artistas não fora avaliada na última reunião do Comitê Intergovernamental para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, em dezembro de 2021. Os logotipos oficiais serviram para dar ares de autenticidade, mas, do início ao fim, a peça oscilava entre a ficção e a fraude. Sem demora, a representação da Unesco no Brasil alertou a sede em Paris.

No retorno de uma viagem à Barra do Guaicuí, na cidade mineira de Várzea da Palma, na região do Alto São Francisco, Tavinho Moura foi avisado pela filha de que sua premiação não passava de uma mentira. Moura se sentiu agredido. Na origem dos envios do tal documento estava seu amigo Lucas Guimaraens, ex-superintendente mineiro de Bibliotecas Públicas e Suplemento Literário da Secretaria de Cultura. Bisneto do poeta mineiro Alphonsus de Guimaraens, Lucas é um escritor e gestor cultural atuante em Minas.

Segundo registra o website da Université Paris 8, o estudante de filosofia política e estética ingressou no doutorado com o projeto A escrita poética como patrimônio imaterial da humanidade, em 2015. Guimaraens é autor de cinco livros, dentre os quais Onde (poeira pixel poesia), editado pela 7 Letras, e o estudo Michel Foucault et la dignité humaine, lançado pela francesa L’Harmattan. Ainda jovem, ele ficou amigo de Milton Nascimento, a quem passou a acompanhar em eventos e auxiliar em projetos e questões jurídicas. Não tinha intimidade com Fernando Brant, morto em 2015. Dos mestres do Clube da Esquina, seu grande amigo era Tavinho Moura, que musicou seu poema Vila dos Pássaros durante a quarentena.

 

Foi um desenho de sol

e os cílios da criança a despertar

na vila dos pássaros que sonham

Foi um desenho de sol

e os cílios da criança a despertar

na vila dos pássaros que sonham

Uma canção que canta soluços

Um coro, ciranda nua

 Leves passos que não

ferem a carne do chão.

Foi um desenho de sol

 

Entre jornalistas, escritores e músicos mineiros, Guimaraens era visto como uma fonte confiável. Assim que a Unesco divulgou uma nota de desmentido, ele foi questionado por uma jornalista mineira sobre a origem do arquivo pdf com a carta falsa. Em resposta pelo WhatsApp, o poeta sustentou que o documento fora enviado pelo catedrático francês Jacques Poulain.

Invocado em falso no título fake, Jacques Poulain, de 79 anos, é professor emérito da Universidade Paris 8 e doutor em filosofia. Autor de uma dezena de livros, o acadêmico realizou estudos sobre lógica e religião, linguagem, democracia e globalização. De 1996 a 2020, ocupou a cátedra da Unesco em Filosofia da Cultura e Instituições. Durante a prisão de Lula, esteve entre os acadêmicos franceses que defenderam a libertação do ex-presidente brasileiro.

Procurado pela piauí, Poulain agradeceu a oportunidade de se pronunciar sobre o episódio e reafirmou a falsidade do documento. Numa resposta por e-mail, o filósofo advogou a inocência de Guimaraens. E informou que seu telefone, e-mail e redes sociais, assim como os de outros membros da cátedra Unesco (que deixou de existir em 2020), foram “aparentemente” hackeados em dias recentes. Poulain acrescentou que pode “prestar homenagem e testemunhar as atividades do sr. Guimaraens e, face às incoerências que surgiram na imprensa devido à informação transmitida antes da divulgação da Nota da Unesco, gostaria de salientar que este documento foi apenas uma armadilha que levou o sr. Guimaraens a ser suspeito como o autor deste documento”.

O professor francês lamentou o efeito reverso da falsificação. Em vez de celebrar a obra de compositores relevantes na história da música popular brasileira, a fraude jogou constrangimento sobre quem nunca pediu confete da Unesco. “O que me impressionou logo foi perceber que a natureza desse comunicado teria a infeliz consequência de impor uma humilhação pública aos srs. Moura e Brant, bem como a suas famílias, assim que sua ilegitimidade fosse reconhecida, ainda que suas obras tenham contribuído tanto para a criatividade e influência da cultura de Minas Gerais e do Brasil”, declarou Poulain. “A emissão e divulgação deste comunicado constituem um verdadeiro maltrato a suas personalidades e suas obras, pois, ao falsificar uma maneira de homenageá-los em nome da Unesco, produziram o contrário ao fazer com que todos reconhecessem que eles ainda não o são.”

O filósofo lembrou que as obras de Moura e Brant não poderiam ser avaliadas como patrimônio imaterial antes de 2022, uma vez que a lista de contemplados foi finalizada em 17 de novembro de 2021. “Isto prova, de fato, que este desconhecido estava muito bem informado do interesse das pesquisas do sr. Guimaraens e que queria lhe fazer assumir a responsabilidade de ser o autor deste documento para que Lucas Guimaraens pudesse ser condenado às sanções cabíveis a este tipo de investigação. Usando o título da tese A escrita poética como patrimônio imaterial [de Guimaraens] como padrão desse falso documento, o estranho esperava poder fazer crer a todos que o sr. Guimaraens era o único que poderia estar na origem desses atos.”

Poulain também atestou as atividades acadêmicas de Lucas Guimaraens, em Paris, e sua participação em discussões e eventos da cátedra Unesco. “Sendo professor emérito da Universidade de Paris 8, reconheci imediatamente que o desconhecido que estava na origem desse desvio do título de ‘patrimônio imaterial’ queria acusar fraudulentamente um de nossos melhores doutores em filosofia estética e política”, elogiou o professor.

Numa segunda troca de mensagens, ele reagiu à informação de que Guimaraens dissera a uma jornalista de Minas que recebera dele o documento falso. “Há sim jornalistas bolsonaristas que desdobram esse tipo de história como a imagem que você recebeu. Eles são especialistas nesse tipo de truque, mas eu nunca cedi a eles”, acusou Poulain. Entretanto, a jornalista não é bolsonarista e sempre manteve contatos amistosos com Guimaraens, sua fonte em assuntos culturais.

Permanecem pontos obscuros. Em 30 de dezembro, Guimaraens reivindicou a autoria do pedido junto à Unesco para que o título de patrimônio imaterial fosse concedido à obra conjunta dos dois compositores. “Em resumo, há ainda vários desdobramentos possíveis para o que conseguimos desenvolver ao longo desses anos. O mais relevante é que, no dia 25 de novembro de 2021, a obra conjunta de Tavinho Moura e Fernando Brant pôde ser apreciada e aprovada como Patrimônio Imaterial da Humanidade”, declarou Guimaraens numa nota comemorativa.

No dia 4, no rastro do desmentido da Unesco, o repórter Bruno Mateus, do jornal O Tempo, o questionou sobre a falsificação. “Não posso comentar a validade de documentos que me atribuem. Isso diz respeito apenas à Unesco e cabe exclusivamente à Unesco lançar luz sobre este assunto”, ele disse. Citado na reportagem de Mateus, seu post sobre o encontro com a família Brant foi apagado no Instagram, mas um print continuaria a circular.

A princípio esquivo à proposta de entrevista, alegando razões de saúde, Lucas Guimaraens aceitou apresentar sua versão sobre o episódio, numa conversa pelo WhatsApp. “Ocorre que do dia 4 para o dia 5 de setembro de 2021 fui internado com AIT [ataque isquêmico transitório] e, depois disso, ocorreram 5 novos episódios (1 ontem à noite) [27 de janeiro]. Então, é compreensível que eu esteja tentando cuidar da minha saúde (além da diabetes com a qual já nasci), não é verdade? O que eu não preciso hoje é de uma midiatização nociva e que pode agravar este quadro. Mas vamos lá.”

De saída, Guimaraens não desmentiu por completo suas declarações à imprensa mineira, mas ponderou. “Primeiramente, tenho que dizer que nem tudo o que foi escrito foi efetivamente falado ou, se foi falado, pode ter sido descontextualizado. Por isso, peço a gentileza de tentar não alterar ou editar as informações entre os diversos outros que suas fontes tenham te passado.”

Ele se tornou suspeito da falsificação em virtude de seu anúncio informal da “homenagem” da Unesco no restaurante Dona Lucinha e do envio do documento falso a amigos e jornalistas de Minas. Guimaraens contestou as suspeitas e negou envolvimento com a falsificação do título da Unesco, mas admitiu ter difundido o documento pelo WhatsApp. “Minha única mea culpa é não ter me certificado, antes de ter me surpreendido e ficado extremamente contente com aquilo que viria posteriormente a se configurar ou como falso ou como não ratificado pela entidade responsável, das fontes de tudo e de todos os procedimentos”, ele disse. “Se eu o tivesse feito, certamente eu não teria participado de nenhuma publicidade sobre o assunto. Antes de qualquer confirmação, em linha de regra, independente do grau de institucionalidade que estejamos falando, há que se deixar todo o procedimento ocorrer e a informação ter (ou não) sua validade confirmada.”

Guimaraens insistiu que “imaginava-se, sim, que o trabalho de pesquisa sobre os artistas, feito com o Jacques Poulain, poderia ser objeto de uma análise da Organização”. Ele não comentou sua referência a uma reunião deliberativa da entidade em Paris. “Se procedimentos ocorreram ou não dentro da Unesco, não sou a pessoa apta a ratificar ou retificar esta posição da própria entidade da qual não faço parte a não ser eventualmente pelo sr. Jacques Poulain (Cátedra) e eventualmente por ações com o sistema das nações unidas realizadas pelo Cercle Universel des Ambassadeurs de la Paix – Lei 1901, entidade que possui uma ligação com a ONU.”

Na troca de mensagens, o poeta especulou sobre as razões da falsificação. “Creio que há diversas forças envolvidas (nacionais? Internacionais?) para chegarmos nesses absurdos de narrativas, cada uma com deturpações ou falta de humanidade ou ética. Se o momento oportuno chegar, obviamente que estarei disponível para você”, afirmou Guimaraens.

Mais adiante, lançou suspeitas. “Agora, subsistem alguns pontos de análise: em um jogo de força e poder, quem ganha e quem perde com tudo isso? Certamente eu não ganho. Como eu disse, isso fez e me faz muito mal. Além disso, pelo menos meia centena de pessoas e autoridades já tiveram acesso a assinaturas, papéis etc. que foram utilizados no referido documento. Eu mesmo jamais poderia, numa primeira vista, entendê-lo como falso. Diversas autoridades regionais têm acesso a todas as informações. Há até mesmo quem oportuniza deste momento para explicitar que irá entrar com o mesmo pedido junto às autoridades internacionais. Interessante, não?”

 

O compositor Tavinho Moura não quis opinar sobre a trapaça de que foi vítima. “Ainda me sinto muito agredido por tudo que aconteceu e estou aguardando a Unesco se pronunciar”, afirmou. A Unesco, que não tem poderes de polícia, procurou se informar sobre o episódio e seus bastidores antes de se pronunciar.

“A Unesco enviou um ofício ao sr. Lucas Guimaraens, solicitando que ele imediatamente se abstenha de apresentar-se como Embaixador da Unesco e também de usar o nome da Organização em qualquer atividade ou documento de sua autoria, caso contrário, medidas legais serão tomadas”, informou a assessoria de comunicação à piauí. “O sr. Lucas Guimaraens não é Embaixador da Unesco. A informação contida na carta falsificada não é verdadeira. No passado, o sr. Lucas Guimaraens participou de reuniões com a presença de membros da equipe da Unesco, sem que isso significasse qualquer tipo de vínculo com a Organização.”

“O sr. Lucas Guimaraens não tem qualquer vínculo institucional com a Unesco, embora tenha realizado pesquisas sob a orientação do professor Jacques Poulain, que era o responsável pela Cátedra de Filosofia da Cultura e das Instituições. Cabe ressaltar que a referida Cátedra não teve seu credenciamento renovado e hoje não possui vínculos com a Unesco.”

Na carta falsificada, chegou-se a mencionar um show no teatro principal da organização, em Paris, “com a presença de Tavinho Moura e quem ele escolher, bem como dos herdeiros de Fernando Brant”. O espetáculo também ficou no ar.

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