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    Crédito: ICIJ-Inkyfada-Tayma Ben Ahmed

pandora papers

Trilhões, crimes e segredos

Documentos inéditos revelam que mais de 330 políticos e funcionários públicos de 90 países guardam dinheiro em paraísos fiscais; criminosos, bilionários e celebridades também integram a lista

Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos | 03 out 2021_13h30
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Esta reportagem faz parte dos Pandora Papers, projeto do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, o ICIJ, com sede em Washington, DC. A partir de documentos vazados obtidos pelo ICIJ, mais de 600 profissionais de 150 organizações jornalísticas em 117 países e territórios investigaram  proprietários de offshores em paraísos fiscais. Integram o projeto no Brasil a revista piauí, os sites Poder360 e Metrópoles e a Agência Pública.

 

Milhões de documentos vazados de escritórios administradores de offshores em todo o mundo revelam segredos financeiros de mais de 330 políticos e funcionários públicos de alto nível, incluindo líderes mundiais, ministros e embaixadores de 91 países – além de um elenco global de fugitivos, estelionatários e assassinos. Mais de dois terços dessas empresas foram estabelecidas nas Ilhas Virgens Britânicas (IVB), jurisdição há muito conhecida como peça chave no sistema offshore. Os documentos secretos expõem negociações offshore do rei da Jordânia, dos presidentes da Ucrânia, Quênia e Equador, do primeiro-ministro da República Tcheca e do ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair. Entre as autoridades cujos nomes aparecem nos documentos vazados estão o ministro da Economia do Brasil, Paulo Guedes, e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. Os arquivos também detalham as atividades financeiras do “ministro oficioso da propaganda” do presidente russo, Vladimir Putin, e de mais de 130 bilionários da Rússia, Estados Unidos, Turquia  e outros países. 

O Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ na sigla em inglês) obteve o conjunto de 11,9 milhões de arquivos confidenciais – os Pandora Papers, referência à mitológica “caixa de Pandora”, que, uma vez aberta, espalhou pecados, doenças e segredos. Na maior parceria de jornalismo da história, o consórcio liderou uma equipe de mais de 600 jornalistas de 150 veículos de notícias que passaram dois anos examinando os documentos, rastreando fontes e vasculhando arquivos judiciais e outros registros públicos de dezenas de países.

Os registros vazados mostram que muitos dos poderosos que poderiam ajudar a acabar com o sistema offshore na verdade se beneficiam dele – escondendo ativos em empresas e fundos sigilosos enquanto seus governos pouco fazem para desacelerar o fluxo global de dinheiro ilícito que enriquece criminosos e empobrece nações.

Entre os tesouros escondidos revelados nos documentos estão:

  • Um castelo de 22 milhões de dólares na Riviera Francesa, com cinema e duas piscinas, comprado por meio de empresas offshore pelo primeiro-ministro populista da República Tcheca, um bilionário que protestava contra a corrupção das elites econômicas e políticas.
  • Mais de 13 milhões de dólares guardados em um fundo secreto nos Estados Unidos por um descendente de uma das famílias mais poderosas da Guatemala, dinastia que controla um conglomerado de cosméticos acusado de prejudicar os trabalhadores e a terra.
  • Três mansões à beira-mar em Malibu (Califórnia), ao custo de 68 milhões de dólares, compradas por meio de três empresas offshore pelo rei da Jordânia depois que os jordanianos encheram as ruas durante a Primavera Árabe, em protesto contra o desemprego e a corrupção.

 

Em uma era de autoritarismo e desigualdade crescentes, a investigação dos Pandora Papers oferece uma perspectiva inigualável sobre como o dinheiro e o poder atuam no século XXI – e como o estado de direito foi violado em todo o mundo por um sistema de sigilo financeiro autorizado pelos Estados Unidos e outros países ricos. As descobertas do ICIJ e seus parceiros de mídia destacam quão profundamente as finanças sigilosas se infiltraram na política global – e dão uma ideia de por que governos e organizações globais fizeram pouco progresso para acabar com os abusos financeiros offshore. Os registros vazados vêm de 14 firmas de serviços offshore de todo o mundo, que abriram empresas de fachada e outros esquemas para clientes que geralmente buscam manter suas atividades financeiras às escuras.

Pelo menos 11,3 trilhões de dólares são mantidos “offshore”, de acordo com um estudo de 2020 da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), com sede em Paris. Devido à complexidade e ao sigilo do sistema offshore, não é possível saber quanto dessa riqueza está vinculada à sonegação de impostos e a outros crimes, nem quanto disso envolve fundos que vieram de fontes legítimas e foram relatados às autoridades competentes.

 

Muito além dos coqueiros, no centro do poder

Na imaginação popular, o sistema offshore é frequentemente visto como uma série de ilhas espalhadas, cheias de coqueiros. Os Pandora Papers mostram que a máquina de fazer dinheiro offshore opera em todos os cantos do mundo, incluindo as maiores democracias, onde esse sistema inclui instituições de elite – bancos  multinacionais, firmas de advocacia e escritórios de contabilidade sediados nos EUA e na Europa.  

Um documento dos Pandora Papers mostra, por exemplo, que bancos do mundo todo ajudaram seus clientes a abrir pelo menos 3.926 empresas offshore com a ajuda da Alemán, Cordero, Galindo & Lee, escritório de advocacia panamenho comandado por um ex-embaixador nos Estados Unidos.  A firma – também conhecida como Alcogal – criou pelo menos 312 empresas nas Ilhas Virgens Britânicas para clientes do gigante americano de serviços financeiros Morgan Stanley. Um porta-voz do Morgan Stanley disse: “Não criamos empresas offshore… Esse processo é independente da empresa e fica a critério e orientação do cliente”.

A investigação dos Pandora Papers também destaca como a Baker McKenzie, a maior firma de advocacia dos Estados Unidos, ajudou a criar o sistema offshore moderno e é um esteio dessa economia subterrânea. E lucrou com o trabalho feito para pessoas e empresas ligadas  a fraude e corrupção, constatou o relatório do ICIJ. Entre elas, o oligarca ucraniano Ihor Kolomoisky, que, segundo as autoridades americanas, lavou 5,5 bilhões de dólares por meio de um emaranhado de empresas de fachada. A Baker McKenzie também trabalhou para Jho Low, financista fugitivo acusado por autoridades de vários países de planejar o desvio de mais de 4,5 bilhões de dólares em um fundo de desenvolvimento econômico da Malásia conhecido como 1MDB. 

Um porta-voz da Baker McKenzie disse que a empresa busca fornecer a melhor consultoria a seus clientes e se esforça para “garantir que nossos clientes cumpram tanto a lei quanto as melhores práticas”. O porta-voz não abordou diretamente o papel da Baker McKenzie na economia offshore, citando a confidencialidade do cliente e o privilégio legal. Ele disse que a empresa realiza verificações rigorosas de antecedentes de todos os clientes potenciais.

 

De criminosos a celebridades

A investigação dos Pandora Papers fornece mais informações do que normalmente está disponível para órgãos judiciais e governos sem dinheiro. Entre as pessoas vinculadas pelos documentos secretos a ativos offshore estão desde celebridades (o superastro do críquete indiano Sachin Tendulkar, a diva da música pop Shakira e supermodelo alemã Claudia Schiffer) até o mafioso italiano Raffaele Amato, conhecido como “Lell, o Gordo”. O mafioso está vinculado a pelo menos uma dúzia de assassinatos. Os documentos fornecem detalhes sobre uma empresa de fachada registrada no Reino Unido que Amato usou para comprar terras na Espanha. Amato, cuja história ajudou a inspirar o elogiado filme “Gomorra”, está cumprindo uma sentença de 20 anos de prisão.

O advogado de Amato não respondeu a pedidos de comentários. O advogado de Tendulkar disse que o investimento do jogador de críquete é legítimo e foi declarado às autoridades fiscais. O advogado de Shakira disse que a cantora declarou suas empresas, que, segundo ele, não oferecem vantagens fiscais. Os representantes de Schiffer disseram que a supermodelo paga corretamente seus impostos no Reino Unido, onde mora.

Na maioria dos países, não é ilegal ter ativos offshore ou usar empresas de fachada para fazer negócios além das fronteiras nacionais. Empresários que operam no plano internacional dizem precisar de offshores para realizar negócios.  Mas esses negócios geralmente significam transferir lucros de países com impostos elevados, onde foram obtidos, para empresas que existem apenas no papel em jurisdições com impostos baixos. O uso de refúgios offshore é especialmente controverso para figuras políticas, porque muitas vezes as ajuda a manter longe da vista do público atividades politicamente impopulares ou mesmo ilícitas.

Onde estão os 336 políticos dos Pandora Papers? Veja no gráfico abaixo:

“Você sabe quem”: o rei da Jordânia

A investigação Pandora Papers é maior e mais global do que a investigação Panama Papers, também do ICIJ, que abalou o mundo em 2016, provocando nova legislação em dezenas de países e a queda de primeiros-ministros na Islândia e no Paquistão. Os Panama Papers vieram dos arquivos de um único provedor de serviços offshore: o escritório de advocacia panamenho Mossack Fonseca. 

Os Pandora Papers fazem um corte muito mais amplo dos advogados e intermediários que estão no cerne da indústria offshore, além de fornecer mais que o dobro de informações sobre a propriedade de empresas offshore. Os novos documentos revelam os verdadeiros proprietários de mais de 29 mil empresas offshore. Os proprietários são de mais de 200 países, sendo os maiores contingentes de Rússia, Reino Unido, Argentina e China. Os 150 veículos de notícias integrantes da parceria investigativa incluem The Washington Post, BBC, The Guardian, Radio France, Oštro Croatia, Indian Express, The Standard (Zimbábue), Le Desk (Marrocos) e Diario El Universo (Equador). Houve necessidade de uma equipe global porque os 14  provedores offshore que são a fonte dos documentos vazados estão sediados em todo o mundo, do Caribe ao Golfo Pérsico e ao Mar da China Meridional. Três dos provedores pertencem ou são administrados por antigos funcionários graduados de governos, incluindo um ex-ministro e conselheiro presidencial do Panamá e um ex-procurador-geral de Belize, que controla dois provedores.

Por algumas centenas ou alguns milhares de dólares, os provedores offshore podem ajudar clientes a criar uma empresa cujos verdadeiros proprietários permanecem ocultos. Ou, por algo entre 2 mil e 25 mil dólares, eles podem montar um fundo que, em alguns casos, permite que seus beneficiários controlem seu dinheiro enquanto assumem a ficção jurídica de que não o controlam – um pouco de criatividade burocrática que ajuda a proteger bens de credores, agentes da lei e ex-cônjuges. Os operativos offshore fazem parcerias com outros provedores de sigilo em todo o mundo para criar camadas interligadas de empresas e fundos. Quanto mais complexos os acordos, mais altas as taxas – e mais sigilo e proteção os clientes podem esperar.

Os Pandora Papers mostram que um contador inglês na Suíça trabalhou com advogados nas Ilhas Virgens Britânicas para ajudar o rei Abdullah II, da Jordânia, a comprar secretamente 14 casas de luxo, no valor de mais de 106 milhões de dólares, nos Estados Unidos e no Reino Unido. Os conselheiros o ajudaram a montar pelo menos 36 empresas de fachada de 1995 a 2017. Em 2017, o rei comprou uma propriedade de 23 milhões de dólares na Califórnia por meio de uma empresa nas Ilhas Virgens Britânicas. E pagou a mais para que outra empresa das IVB atuasse como diretora “nominal” da empresa das IVB que comprou a propriedade.

Rei Abdullah, da Jordânia (o quarto da esquerda para a direita), em evento com senadores americanos no Capitólio em julho deste ano – Foto:  Jabin Botsford/The Washington Post

 

No mundo offshore, os diretores nominais são pessoas ou empresas pagas para servir de fachada para quem está realmente por trás de uma empresa. Os formulários de inscrição enviados aos clientes pela Alcogal, o escritório de advocacia que trabalha em nome do rei, dizem que o uso de diretores nominais ajuda a “preservar a privacidade, evitando que a identidade do verdadeiro diretor… seja acessível ao público”. Em e-mails, os consultores offshore usaram um codinome para o rei: “Você sabe quem”.

Os advogados do rei no Reino Unido disseram que ele não é obrigado a pagar impostos sob a lei jordaniana e que tem razões de segurança e de privacidade para possuir propriedade em empresas offshore. Eles disseram que o rei nunca fez mau uso de fundos públicos. Também disseram que a maioria das empresas e propriedades identificadas pelo ICIJ não tem ligação com o rei ou não existem mais, mas se recusaram a fornecer detalhes.

Especialistas dizem que, como governante de um dos países mais pobres e dependentes de ajuda do Oriente Médio, o rei tem motivos para evitar ostentar sua riqueza. “Se o monarca jordaniano exibisse sua riqueza mais publicamente, não apenas antagonizaria seu povo, como irritaria os doadores ocidentais que lhe deram dinheiro”, disse Annelle Sheline, especialista em autoridade política no Oriente Médio, ao ICIJ.

 

Façam o que eu digo, não o que eu faço…

No vizinho Líbano, onde questões semelhantes sobre riqueza e pobreza estão ocorrendo, os Pandora Papers mostram que importantes figuras políticas e financeiras também adotaram o uso de paraísos offshore. Entre elas, o atual primeiro-ministro, Najib Mikati, e seu antecessor, Hassan Diab, bem como Riad Salameh, que dirige o banco central libanês e está sob investigação na França por suposta lavagem de dinheiro.

Marwan Kheireddine, ex-ministro de Estado do Líbano e presidente do Banco Al Mawarid, também aparece nos arquivos secretos. Em 2019, ele repreendeu seus ex-colegas parlamentares pela inércia em meio a uma terrível crise econômica. Metade da população vivia na pobreza, lutando para encontrar comida, enquanto padarias e mercearias fechavam. “Há evasão fiscal e o governo precisa resolver isso”, disse Kheireddine.

Naquele mesmo ano, revelam os Pandora Papers, Kheireddine assinou documentos como proprietário de uma empresa nas Ilhas Virgens que possui um iate de 2 milhões de dólares. O Al Mawarid Bank foi um dos muitos no país que restringiram os saques em dólares americanos por clientes para conter o pânico econômico.

Kheireddine e Diab não responderam a pedidos de comentários. Em uma resposta por escrito, Salameh disse que declara seus bens e cumpriu todas as obrigações fiscais sob a lei libanesa. O filho de Mikati, Maher, disse que é comum as pessoas no Líbano usarem empresas offshore “devido ao fácil processo de incorporação”, mais que pelo desejo de sonegar impostos.

Outras figuras políticas também se manifestaram contra o sistema offshore, enquanto vivem cercados por nomeados e outros apoiadores que possuem ativos guardados offshore. Alguns usam o sistema eles próprios. “Os bens de todos os servidores públicos devem ser declarados publicamente para que as pessoas possam questionar e perguntar – o que é legítimo?”, disse o presidente do Quênia, Uhuru Kenyatta, a um entrevistador da BBC em 2018. “Se você não consegue se explicar, inclusive eu mesmo, então tenho um caso para responder”.

Agora, os Pandora Papers listam Kenyatta e sua mãe como beneficiários de uma fundação secreta no Panamá. Outros membros da família, incluindo seu irmão e duas irmãs, possuem cinco empresas offshore com ativos de mais de 30 milhões de dólares, mostram os registros. Kenyatta e sua família não responderam aos pedidos de comentários.

O primeiro-ministro da República Tcheca, Andrej Babis, um dos homens mais ricos de seu país, subiu ao poder prometendo reprimir a evasão fiscal e a corrupção. Em 2011, à medida que se envolvia mais com a política, Babis disse aos eleitores que queria criar um país “onde os empresários façam negócios e fiquem felizes em pagar impostos”.

Os registros vazados mostram que em 2009 Babis injetou 22 milhões de dólares em uma série de empresas de fachada para comprar uma extensa propriedade, conhecida como Chateau Bigaud, em um vilarejo no topo de uma colina em Mougins, na França, perto de Cannes.

Babis não revelou a propriedade dessas empresas de fachada e do castelo nas declarações de bens que ele deve apresentar como funcionário público, de acordo com documentos obtidos pelo parceiro tcheco do ICIJ, Investigace.cz. Em 2018, um conglomerado imobiliário controlado indiretamente por Babis comprou com discrição a empresa de Mônaco que possuía o castelo.

Babis não respondeu a pedidos de comentários. Um porta-voz do conglomerado disse ao ICIJ que a empresa cumpre a lei. Ele não respondeu às perguntas sobre a aquisição do castelo. “Como qualquer outra entidade empresarial, temos o direito de proteger nossos segredos comerciais”, escreveu.

 

“Um paraíso de golpes”

Em fevereiro, um comentário do Instituto Tony Blair para Mudança Global instou os legisladores a buscar, entre outras medidas, impostos mais altos sobre terras e residências. Blair, fundador e presidente-executivo do instituto, falou sobre como os ricos e bem relacionados evitavam pagar sua parte nos impostos já em 1994, quando fez campanha para se tornar o líder do Partido Trabalhista do Reino Unido. “Para aqueles que podem empregar os contadores certos, o sistema tributário é um paraíso de golpes e vantagens… e lucros”, disse ele durante um discurso em West Midlands, na Inglaterra. “Não devemos fazer de nossas regras fiscais um playground para abusadores de impostos que pagam pouco ou nada, enquanto outros pagam mais do que sua parte.”

Os Pandora Papers mostram que em 2017 Blair e sua mulher, Cherie, tornaram-se proprietários de um edifício vitoriano de 8,8 milhões de dólares ao adquirir a empresa das Ilhas Virgens Britânicas que detinha a propriedade do lugar. O prédio em Londres hospeda hoje o escritório de advocacia de Cherie Blair. Ela e seu marido, que serviu como diplomata no Oriente Médio após deixar o cargo de primeiro-ministro em 2007, compraram a imobiliária offshore da família do ministro da Indústria e Turismo do Bahrein, Zayed bin Rashid al-Zayani.

Ao comprar as ações da empresa em vez do prédio, os Blairs se beneficiaram de um acordo legal que os salvou de ter que pagar mais de 400 mil dólares em impostos sobre a propriedade. Os Blairs e os al-Zayanis disseram que inicialmente não sabiam sobre o envolvimento um do outro no negócio.

Cherie Blair disse que seu marido não estava envolvido na transação e que seu objetivo era “trazer a empresa e o prédio de volta ao regime fiscal e regulatório do Reino Unido”. Ela também disse que “não queria ser dona de uma empresa nas IVB”. A empresa agora está fechada. Por meio de seu advogado, al-Zayanis disse que suas empresas “cumpriram todas as leis do Reino Unido no passado e no presente”.

“Essas são brechas que estão disponíveis para pessoas ricas, mas não para outras pessoas”, disse Robert Palmer, diretor-executivo da Tax Justice UK, ao The Guardian. “Os políticos precisam consertar o sistema tributário para que todos paguem sua parte justa.”

 

Ministro da Economia do Brasil também tem offshore

Em junho, o ministro da Economia do Brasil, Paulo Guedes, propôs um pacote de reforma tributária que incluía um imposto de até 30% sobre os lucros auferidos por meio de entidades offshore. Especialistas estimam que os mais ricos do Brasil detêm quase 200 bilhões de dólares em fundos não tributados fora do país.

“Não se pode ter vergonha de ser rico”, disse Guedes. “Você deve ter vergonha de não pagar impostos.” Depois que banqueiros e líderes empresariais se opuseram ao aumento de impostos na legislação, Guedes, um ex-banqueiro milionário, concordou em remover o imposto sobre os lucros offshore. As negociações sobre a legislação continuam.

Os Pandora Papers revelam que Guedes criou a offshore Dreadnoughts International Group em 2014 nas Ilhas Virgens Britânicas. Em resposta a perguntas de um parceiro do ICIJ no Brasil, a revista piauí, um porta-voz de Guedes disse que o ministro relatou a existência da empresa às autoridades brasileiras. O porta-voz não forneceu registros para confirmar essa afirmação e não respondeu a uma pergunta sobre a retirada do imposto offshore da legislação.

 

Paraísos fiscais dentro dos Estados Unidos

Em dezembro de 2018, as Bahamas promulgaram legislação exigindo que as empresas e certos fundos fiduciários declarem seus verdadeiros proprietários a um registro governamental. A nação insular estava sob pressão de países maiores, incluindo os Estados Unidos, para que tentasse bloquear os sonegadores de impostos e criminosos do sistema financeiro.

Alguns políticos das Bahamas se opuseram à medida. Eles reclamaram que o registro desencorajaria clientes latino-americanos ricos de fazer negócios no Caribe. Meses depois, no início de 2019, a família do ex-vice-presidente da República Dominicana Carlos Morales Troncoso abandonou as Bahamas  como santuário para suas riquezas. Como novo refúgio, escolheram um lugar a 2.560 quilômetros de distância: Sioux Falls, na Dakota do Sul (norte dos EUA).

A família montou fundos em Dakota do Sul, mostram os registros que vazaram, para guardar vários ativos, incluindo ações que detinham em uma empresa açucareira dominicana. A família não respondeu a perguntas sobre os bens transferidos das Bahamas para Dakota do Sul.

Os Pandora Papers fornecem detalhes sobre dezenas de milhões de dólares transferidos de paraísos offshore no Caribe e na Europa para Dakota do Sul, estado americano de baixa densidade populacional que se tornou um importante destino de ativos estrangeiros. Na última década, Dakota do Sul, Nevada e mais de uma dúzia de outros estados dos Estados Unidos se transformaram em líderes na oferta de sigilo financeiro. Enquanto isso, a maioria das políticas e esforços de repressão judicial dos países mais poderosos do mundo se concentraram em paraísos offshore “tradicionais”, como Bahamas, Cayman e outras ilhas paradisíacas.

Os Estados Unidos são um dos maiores players no mundo offshore. E também o país mais bem situado para pôr fim aos abusos financeiros offshore, graças ao importante papel que exerce no sistema bancário internacional. Por causa do status do dólar americano como moeda global de fato, a maioria das transações internacionais entra e sai de operações bancárias sediadas em Nova York. As autoridades americanas tomaram medidas nas últimas duas décadas para forçar os bancos da Suíça e de outros países a entregar informações sobre cidadãos americanos com contas no exterior.

Mas os Estados Unidos estão mais interessados em forçar outros países a compartilhar informações sobre os bancos americanos offshore do que em compartilhar informações sobre a movimentação de dinheiro por meio de contas bancárias, empresas e fundos americanos. Também se recusaram a aderir a um acordo de 2014 apoiado por mais de cem jurisdições, incluindo as Ilhas Cayman e Luxemburgo, que exigiria que as instituições financeiras americanas compartilhassem as informações que possuem sobre os ativos estrangeiros.

Ano após ano em Dakota do Sul, legisladores estaduais aprovaram regras oferecendo cada vez mais proteções e outros benefícios para clientes nos Estados Unidos e no exterior. Os ativos dos clientes em trustes da Dakota do Sul mais que quadruplicaram na última década, para 360 bilhões de dólares. “Como cidadã, estou muito triste porque meu estado foi o que abriu a caixa de Pandora”, disse Susan Wismer, uma ex-legisladora, ao ICIJ.

Em 2020, 17 das 20 jurisdições menos restritivas do mundo para trustes eram estados americanos, de acordo com um estudo do acadêmico israelense Adam Hofri-Winogradow. Em muitos casos, disse ele, as leis dos EUA tornaram mais difícil para os credores colocarem as mãos sobre o que lhes é devido, incluindo pagamentos de pensão alimentícia de pais ausentes. Usando documentos dos Pandora Papers, o ICIJ e The Washington Post identificaram cerca de 30 trustes com sede nos Estados Unidos ligados a estrangeiros pessoalmente acusados de má conduta ou cujas empresas foram acusadas de contravenção.

O milionário latino-americano Guillermo Lasso, banqueiro eleito presidente do Equador em abril, montou trustes em Dakota do Sul. Registros vazados mostram que Lasso moveu recursos para o estado norte-americano em dezembro de 2017, três meses depois que o parlamento equatoriano aprovou uma lei proibindo funcionários públicos de manterem ativos em paraísos fiscais. Lasso disse que cumpriu a lei equatoriana.

Dakota do Sul atraiu outro rico latino-americano, Federico Kong Vielman, cuja família é uma das potências econômicas da Guatemala. Em 2016, Kong Vielman transferiu 13,5 milhões de dólares para um consórcio em Sioux Falls. Parte do dinheiro veio da empresa de sua família, que fabrica ceras para pisos e outros produtos. 

Na década de 1970, reportagens identificaram a família como aliada do general Carlos Manuel Arana Osorio, ex-ditador guatemalteco. Em 2016, o hotel de luxo da família na Cidade da Guatemala ofereceu um presente de cem noites ao então presidente Jimmy Morales. A mídia guatemalteca noticiou a suspeita de um possível pagamento por “favores políticos”. Kong Vielman se recusou a responder a perguntas sobre o fundo na Dakota do Sul.

Trustes constituídos em vários estados norte-americanos continuam envoltos em sigilo, apesar da promulgação neste ano da Lei de Transparência Corporativa dos Estados Unidos, que torna mais difícil para os proprietários de certos tipos de empresas ocultar suas identidades. Outra isenção gritante, dizem os especialistas em crimes financeiros, é que muitos advogados que criam trustes e empresas de fachada não têm a obrigação de examinar as origens da fortuna de seus clientes. “Claramente, os Estados Unidos são uma grande brecha no mundo”, disse Yehuda Shaffer, ex-chefe da unidade de inteligência financeira israelense. “Os Estados Unidos estão criticando todo o resto do mundo, mas em seu próprio quintal esse é um problema muito, muito sério.” 

 

“Despesas extraordinárias”

O império de construção do bilionário turco Erman Ilicak teve um grande ano em 2014. A empresa do magnata, Rönesans Holding, concluiu a construção de um palácio presidencial de 1.150 quartos para o líder belicoso de seu país, Recep Tayyip Erdogan. Outro evento notável envolvendo a família Ilicak aconteceu em 2014, desta vez longe do brilho do público. A mãe do titã corporativo de 74 anos, Ayse Ilicak, tornou-se dona de duas empresas offshore nas Ilhas Virgens Britânicas, de acordo com os Pandora Papers. Ambas as empresas foram chefiadas por diretores e acionistas nominais. Uma delas, a Covar Trading Ltd., detinha ativos do conglomerado de construção da família, dizem os registros vazados. 

Durante seu primeiro ano completo de operação, a Covar Trading teve receitas de 105,5 milhões de dólares em dividendos, de acordo com demonstrações financeiras confidenciais. O dinheiro foi guardado em uma conta na Suíça. NMa não por muito tempo. Naquele mesmo ano, segundo mostram os relatórios, a empresa pagou quase todos os 105,5 milhões de dólares como uma “doação” listada em “despesas extraordinárias”. As declarações não descrevem quem ou o que recebeu o dinheiro. Ilicak não respondeu a perguntas para esta reportagem.

Ilicak e os outros bilionários dos Pandora Papers vêm de 45 países, sendo o maior número da Rússia (52), Brasil (15), Reino Unido (13) e Israel (10). Os bilionários americanos mencionados nos documentos secretos incluem dois magnatas da tecnologia, Robert F. Smith e Robert T. Brockman, cujos fundos têm sido alvo de investigações por autoridades americanas. Smith concordou no ano passado em pagar às autoridades dos Estados Unidos 139 milhões de dólares para liquidar uma investigação fiscal.  Um júri dos Estados Unidos indiciou Brockman, mentor e financiador de Smith, no que os promotores descreveram como a maior fraude fiscal da história dos EUA.

Smith não quis comentar. Brockman se declarou inocente. 

 

Um sistema que se adapta muito rápido

A ativista de direitos humanos e combate à pobreza Mae Buenaventura aderiu à luta para garantir a devolução aos cofres públicos de bilhões de dólares do falecido ditador das Filipinas Ferdinand Marcos, sua família e amigos, escondidos em contas suíças e outros locais difíceis de rastrear.  O escândalo de Marcos foi didático para o mundo, incentivando esforços cada vez maiores para descobrir dinheiro ilícito e punir quem o esconde. Nos últimos 20 anos, líderes políticos prometeram “erradicar” os paraísos fiscais. Chamaram as empresas de fachada e lavagem de dinheiro de “ameaças à democracia”. Aprovaram novas leis e assinaram acordos internacionais. Mas o sistema offshore é extremamente adaptável, e o crime financeiro internacional, a evasão fiscal e a desigualdade continuam prosperando.

Quando um provedor ou jurisdição offshore é exposto ou sofre pressão das autoridades, outros usam isso como oportunidade para abocanhar clientes que fogem para refúgios mais seguros. Uma análise do ICIJ identificou centenas de empresas offshore que encerraram seus relacionamentos com a firma de advocacia Mossack Fonseca, depois do lançamento da investigação dos Panama Papers. Outros provedores assumiram como agentes offshore das empresas.

Uma destas era controlada por um fundo offshore cujos beneficiários incluíam a mulher de Jacob Rees-Mogg, membro do Partido Conservador britânico e atual líder da Câmara dos Comuns. Os Pandora Papers indicam que uma holding e um fundo que beneficiavam sua mulher, Helena de Chair, possuíam “quadros e pinturas” no valor de 3,5 milhões de dólares.

Nas Filipinas, o dinheiro que se movimenta nas sombras continua sendo um problema. As figuras políticas filipinas nos Pandora Papers incluem Juan Andres Donato Bautista, que serviu de 2009 a 2015 como presidente da Comissão Presidencial de Boa Governança – painel criado para rastrear os bilhões de Marcos. Um mês depois de ser nomeado para chefiar a comissão, Bautista criou uma empresa de fachada nas IVB, que tinha uma conta bancária em Cingapura, segundo documentos secretos. Bautista foi escolhido mais tarde para liderar a agência eleitoral do país, mas os legisladores decidiram por seu impeachment em 2017 depois que sua mulher afirmou que ele acumulou milhões de dólares em contas bancárias não declaradas no país e no exterior.

Ao ICIJ, Bautista disse que criou sua empresa nas IVB a conselho de banqueiros. A conta bancária foi aberta antes que ele entrasse para o governo, disse ele, acrescentando que a conta nunca recebeu depósitos significativos e que ele revelou seus interesses às autoridades. Bautista negou desvios e afirmou que não há acusações formais contra ele.

Apesar dos fracassos das Filipinas e de outros países em conter o fluxo de dinheiro encoberto, Buenaventura e ativistas veem motivos para esperança – a única virtude escondida na caixa mitológica. Manifestações de rua ajudaram a derrubar líderes nacionais na Islândia e no Paquistão após os Panama Papers. As Filipinas se juntaram a dezenas de países que agora exigem que as empresas revelem seus verdadeiros proprietários. As autoridades filipinas recuperaram cerca de 4 bilhões de dólares roubados por Marcos e seu círculo, usando-os para comprar terras para agricultores sem terra e para indenizar famílias de vítimas de assassinato ou “desaparecimento forçado” pelo regime de Marcos.

Muitos obstáculos permanecem. Grandes bancos, escritórios de advocacia e outros grupos poderosos geralmente se opõem a regras de transparência e fiscalização mais rígidas contra abusos no exterior. E nas Filipinas, como em muitos outros países, ativistas anticorrupção enfrentam ameaças legais, prisões e violência. Buenaventura disse que ela e outros ativistas de base continuarão trabalhando para expor a riqueza que está “escondida profundamente”. “Nosso slogan é: A verdade aparecerá.”

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Colaboradores: Michael W. Hudson, Scilla Alecci, Will Fitzgibbon, Agustin Armendariz, Sydney P. Freedberg, Margot Gibbs, Malia Politzer, Delphine Reuter, Emilia Díaz-Struck, Gerard Ryle, Ben Hallman, Dean Starkman, Fergus Shiel, Serdar Vardar e Pelin Ünker (DW Turquia), Elyssa Christine Lopez e Karol Ilagan (Centro de Jornalismo Investigativo das Filipinas), Pavla Holcová (Investigace, República Tcheca), Hala Nassredine (Daraj, Líbano), Allan de Abreu (revista Piauí, Brasil), Leo Sisti e Paolo Biondani (L’Espresso, Itália), Simon Goodley (The Guardian, Reino Unido), Ritu Sarin (The Indian Express), Nassos Stylianou (BBC, Reino Unido), Francisco Rodriguez e Enrique Naveda (Plaza Pública, Guatemala), Debra Cenziper (Washington Post , EUA), Jelena Cosic, Spencer Woodman, Brenda Medina, Maggie Michael, Richard HP Sia, Kathleen Cahill, Joe Hillhouse, Mia Zuckerkandel, Asraa Mustufa, Hamish Boland-Rudder, Miguel Fiandor Gutiérrez, Pierre Romera, Madeline O’Leary, Tom Stites, Kathryn Kranhold, Margot Williams, Antonio Cucho Gamboa, Soline Ledésert, Bruno Thomas, Anne L’Hôte, Madeline O’Leary, Maxime Vanza Lutaonda, Denise Hassanzade Ajiri, Jesús Escudero, Marcos García Rey, Mago Torres, Karrie Kehoe, Sean McGoey, Anisha Kohli, Fakhar Durrani, Carlos Monteiro, Douglas Dalby e Laura Bullard.

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O projeto Pandora Papers é uma colaboração global entre a revista piauí e a organização sem fins lucrativos Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos. Se você gosta desse tipo de jornalismo, faça uma doação ao ICIJ para apoiá-lo.

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Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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